Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A barbárie duplicada

O STF tomou a decisão mais importante de sua história pós-1988. Maioria estreita (6×5), literalmente revogou a Lei dos Crimes Hediondos. Providência típica das revogações: vigora para o futuro. Decisão triste. Equívoco jurídico, político, moral. Alguma decisão era necessária. Desde a origem juízes defraudam a lei, por convicção ou por conveniência, esta quase compreensível. A progressão rapidíssima para a liberdade é dura necessidade do administrador do caos. Sem válvula de vazão o sistema penitenciário torna-se bomba-relógio. A conseqüência política é desastrosa: absolve-se imemorial irresponsabilidade de Estados e da União na modernização do sistema penitenciário. O Judiciário assume o ônus da ‘vazão’ da superpopulação carcerária.

O ministro Marco Aurélio Mello festeja a revogação porque ‘teremos um alívio na superpopulação das penitenciárias’. Resolve o problema dos governos, mas libera os governantes de investirem na verdadeira ‘dignidade humana’ do preso que deve ficar preso. E como penitenciária não dá voto, o caos reproduz o caos e o legitima. Decisão de conveniência inadmissível no STF: toma de empréstimo – indebitamente – a soberania do Parlamento.

A auto-imagem do Supremo, plasmada segundo a Suprema Corte norte-americana, faz da Constituição aquilo que o STF diz que ela é. Corrige a soberania do povo onde acha que erramos. Desafia a tradição de rigidez do sistema brasileiro, necessária à sobrevida da Constituição diante de maiorias parlamentares oportunistas. Rigidez que tradicionalmente se apresenta no princípio de boa origem, ou presunção de constitucionalidade, que obriga o intérprete – antes de rejeitar a lei, a procurar sentido adequado ao espírito da Constituição.

Equívoco jurídico: porque a lei dos hediondos não viola o princípio constitucional da individualização da pena. O princípio privilegiado pelo STF está na Lei de Execuções Penais, que estabelece a regra da progressão de regime. Lei especial, para classe especial de crimes que o constituinte criou, pode afastar regra geral, sem ferir princípio algum da Carta. O STF derroga a Constituição que devia guardar interpretando-a de baixo para cima.

Soco certeiro

Autor filosófica e juridicamente pobre, mas recebido como autoridade no STF, o juiz Zaffaroni é pelo menos sincero quando reclama da lei brasileira dos hediondos. O problema de o conceito estar na Constituição, diz, se resolve com aplicação da doutrina das ‘normas constitucionais inconstitucionais’. Diz até que:

‘Uma boa solução seria a derrogação das leis que classifiquem os crimes como ‘hediondos’. É verdade que, em grande parte, a Constituição ficaria sem aplicação pela falta de lei ordinária’ (Zaffaroni & Pierangeli. Manual de Direito Penal Brasileiro. 2004, pág. 135).

Solução antiliberal, ouvida no STF, que deixa a Constituição sem sentido. A Lei dos Hediondos, diz a maioria, desafia o princípio constitucional da dignidade da pessoa. A Lei dos Hediondos, dizemos os vencidos, foi (triste pretérito) a criação mais democrática do Direito Penal brasileiro.

O constituinte não ignorava a progressão da execução penal, e contra ela, em crimes brutais, se rebelou, estabelecendo a figura constitucional do crime hediondo. Recusou para a criminalidade gravíssima o caráter reeducativo da pena, que já para os ilustrados Kant e Hegel – em crítica a Beccaria – era incompatível com a dignidade humana. Exigiu ‘retribuição’ para os crimes hediondos, critério mais digno para o apenado e para a vítima. Democrática também ao fechar válvula censitária do duplo padrão: os crimes hediondos dos nossos iguais que viram por mágica quase-contravenções. Homicidas cruéis podem ter ‘bons antecedentes’.

Não menos grave é o equívoco humano, a proverbial indiferença moral de juristas diante do sofrimento das vítimas. STF que legisla para criativamente aplicar tábua de ‘direitos fundamentais’ pode estar-se transmudando de guardião em cúpula legislativa, sem mandato e de viés fundamentalista, porque em contradição com princípios democrático-liberais. Adota do fundamentalismo o que ele tem de mais agressivo: incita à violência, à justiça privada.

Equívoco intelectual de quem na pressa adota modismos acadêmicos em voga, sem maior responsabilidade, como garantismo, abolicionismo e outros ismos. Afirma-se: não é para todos, precisa de exame individual, e bom comportamento. Mais um sofisma: sabemos que é para todos, salvo para a clientela de sempre: as classes perigosas. Justiça censitária que se prestigia.

Equívoco dos equívocos, a decisão sobre os hediondos é um soco na boca do estômago de Glória Perez, que liderou a mais triste das jornadas: a luta pela retribuição ao crime brutal. Seu desalento expressa o da comunidade de vencidos, vítimas da barbárie duplicada: a brutalidade do crime e a da impunidade. [Artigo recusado pela seção ‘Tendências/Debates’ da Folha de S.Paulo]

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Não se precisa sempre da mídia. A informação rápida, preferencialmente acoplada a imagens, é superabundante. Eventualmente se precisa da imprensa, para retratar um fato carregado de afetos sociais como ele de fato é percebido.

Um fato como a decisão do STF sobre crimes hediondos divide visceralmente as opiniões dos chamados especialistas ou juristas. Mas não divide opiniões apenas por divergência de inteligências: o que se passa é uma divergência visceral, são quase escolhas existenciais que envolvem modos de enfrentar a vida. Desgostos e paixões dividem tanto os que estão de um lado e de outro que fica difícil adivinhar por que divergem tão fundo os que se debatem em torno do mesmo ideal de dignidade da pessoa.

A cobertura jornalística do julgamento foi essencialmente informativa. Eventualmente um box rapidíssimo registrou o óbvio: a decisão divide os especialistas, agrada ao governo. O silêncio de ‘opiniões’ mais aprofundadas sobre o julgamento do STF no caso dos hediondos é suspeito. Não se percebeu a dimensão do fato para a sociedade? Não se tem competência para ‘garimpar’ matéria para uma cobertura mais completa?

Procurando bem, sobrariam pautas para uma boa cobertura, seja para diagnosticar se existe divergência alinhavada na tradicional topografia política, da direita à esquerda, ou se esta não faz (mais) sentido no caso; se existe uma convergência nos ‘profissionais’ consultados como especialistas e os pontos de vista apresentados como divergentes; se maioria simples é um bom critério de definição, pela Suprema Corte, de inconstitucionalidade, e muito mais.

Assuntos excluídos

Talvez a mídia ainda não tenha encontrado o ‘tom’ da cobertura jornalística sobre fatos ‘judiciais’. Alberto Dines vez que outra comenta essa incompetência para noticiar com profundidade os fatos judiciais. Exige mais profissionalismo, especialidade, como se dá com a cobertura econômica, eventualmente a internacional. O silêncio de opiniões mais aprofundadas sobre o julgamento termina sacralizando o fato bruto, numérico. Seis são mais do que 5. Vencedores vencem, vencidos perdem. Observar criticamente a imprensa também é quebrar-lhe alguns silêncios. Silêncios de incompetência ou opções editoriais?

Não se precisa sempre da mídia, só quando deve aparecer refletida na imprensa uma divergência visceral de opiniões na sociedade acerca de um fato importante. O caso dos hediondos era um fato desses. Bati à porta da imprensa com artigo crítico à decisão do STF, objetivamente adequado ao espaço de tendências e debates de grande jornal de circulação nacional. Recusado por razões editoriais pela Folha de S. Paulo, é publicado agora neste Observatório. Editores são soberanos, como bem sabemos. Mas o que excluem de pauta também é significativo.

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Procurador da República, autor de Democracia ou Fundamentalismo? Esboços de compreensão política (Letras Contemporâneas, Florianópolis, 2004), mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina e em Filosofia pela New School for Social Research (Nova York, EUA)