– Por favor, gostaria de autorização pra fazer umas imagens no Cemitério do Paquetá.
– É matéria pro Halloween?
– Não, é por causa do Dia de Finados…
O curto diálogo foi travado na quinta-feira (27/10) entre a produtora do telejornal do qual sou repórter e um integrante da assessoria de imprensa da Prefeitura de Santos (SP).
No cemitério do Paquetá, o mais antigo da cidade, estão os restos mortais de pessoas destacadas em seu tempo, como o governador paulista Mário Covas (1930-2001, santista), o médico e poeta Martins Fontes (1884-1937, também da terra) e o pintor Benedicto Calixto (1853-1927, nascido em Itanhaém, na Baixada Santista). A matéria não teria a visitação a seus túmulos como enfoque. Entretanto, a curiosidade motivada pelo pedido para filmagem (‘É matéria pro Halloween?’) é de causar desgosto.
Nada de sentimentos antiamericanos. A mídia colaborou, sim, para transformar 31 de outubro, o Dia das Bruxas, em acontecimento. Até nas escolas particulares e públicas. Na mesma quinta em que se ouviu a indagação do(a) assessor(a), um dos títulos principais da página na Prefeitura de Santos na internet era ‘FSS [Fundo Social de Solidariedade] promove Halloween para crianças do Caruara’ – bairro da Área Continental próximo à vizinha Bertioga, cercado por parte do que resta de Mata Atlântica no estado de São Paulo e onde mais provavelmente se acharia o Saci-Pererê ou o Curupira do que uma bruxa numa vassoura ou um esfaimado vampiro. Ah, o que havia para comer na festa? Cachorro-quente (‘hot dog’)…
Tem razão o assessor
O artigo 221 da Constituição Federal expressa que ‘A produção e a programação das emissoras de rádio e televisão atenderão aos seguintes princípios: (I) preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas; (II) promoção da cultura nacional e regional e estímulo à produção independente que objetive sua divulgação: (III) regionalização da produção cultural, artística e jornalística, conforme percentuais estabelecidos em lei (…)’.
Ainda há aldeias na Baixada Santista. Só se mencionam os nativos ali residentes quando alguém se lembra de que o poder público mal os vê ou, como numa rara e recente ocasião, mantêm reféns funcionários da Fundação Nacional do Índio (Funai). Jamais ouvi falar neles entre 1985 e 1996, época em que estudei da pré-escola ao antigo segundo grau. E nenhum jornal lhes deu destaque, nem à sua cultura, que me marcassem a infância e a juventude.
As mídias local e nacional, que quase exaltam o 31 de outubro, praticamente sepultaram o 22 de agosto, o Dia do Folclore. Esse conjunto de usos e costumes nacionais não é tão celebrado com festa como há uma ou duas décadas. Antes dele, as festas juninas, tão desanimadas nos dias de agora, a ponto de ‘quadrilha’ ter virado coisa de bandido.
Sem querer, parece ter razão o(a) jornalista da assessoria de imprensa da Prefeitura: cemitério é coisa de ‘Halloween’. E o folclore brasileiro deveria ser lembrado em 2 de novembro – Dia de Finados.
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Repórter do jornal Diário do Litoral, de Santos (SP), e do telejornal Band Cidade, na TV Bandeirantes