É conhecida a estória da moça enviada pelos deuses aos homens num tempo remoto com um presente de grego. Cheia de dons, entre eles a curiosidade, a bela Pandora trouxe o presente com todo o mistério que esconde, sugere e está implícito numa caixa.
A modernidade também trouxe uma caixa. Tão grande em seu significado que aos poucos foi sendo amplamente reconhecida e passou a ocupar o centro das atenções da sala de estar dos lares: para ela estão voltados os sofás, as cadeiras, os olhos e mentes dos brasileiros 3 horas e meia em média todos os dias, e ela está presente na quase totalidade das casas do Brasil.
É a teleinvasão: entra sem pedir licença, está presente e não se questiona seu conteúdo, as idéias que veicula, os rumos para os quais aponta, as verdades que revela. É a telefissão, que divide e separa, uns preferem uns programas, outros, outros, e assim vai-se vivendo junto e tornando-se cada vez mais desconhecido, mais estranho. Como não desaparecer o entendimento?
Solidão mutilada
A Caixa dá de 10 a zero na leitura. Uma imagem vale por mil palavras, uma mentira dita mil vezes torna-se verdade etc. etc. A média de leitura no Brasil não chega a dois livros/habitante por ano, enquanto na Europa é de 7, por exemplo; 48% da nossa população ganha um salário familiar mensal inferior a R$ 500, menos de 1/3 da população com mais de 25 anos tem Ensino Médio por aqui…
Qual a relação da Caixa com a realidade? Segundo ela própria diz, tudo a ver. Qual sua ligação com a sexualidade, as drogas, os estereótipos, as dificuldades de aprendizagem e de articulações, as mazelas que atingem o corpo, a mente e o espírito, a manutenção do status quo, o capitalismo, a violência?
Segundo Fellini, a Caixa mutilou nossa capacidade de solidão, violou nossa dimensão mais íntima, mais privada, mais secreta. Acorrentados por um ritual invasor, fixamos um quadro luminoso que vomita milhares de coisas que se anulam mutuamente, numa vertiginosa espiral. A paz só vem quando se desliga. Às onze horas, à meia-noite, pesa sobre nossos ombros um grande e obrigatório cansaço. Vamos para nosso leito carregados de uma vaga má consciência e, no escuro, os olhos fechados, tentamos restabelecer o vínculo, como um fio rompido, do silêncio interior que nos pertencia…
“Coitado desse menino”
Outra estorinha, esta atual, conta que professora Ana Maria pediu aos alunos que fizessem uma redação e escrevessem o que eles gostariam que Deus fizesse por eles. À noite, corrigindo as redações, ela se depara com uma que a deixa muito emocionada. O marido, nesse momento, acaba de entrar, a vê chorando e diz: “O que aconteceu?” Ao que ela responde: “Leia”. Era a redação de um menino.
“Senhor, esta noite te peço algo especial: me transforme em um televisor. Quero ocupar o seu lugar. Viver como vive a TV de minha casa. Ter um lugar especial para mim, e reunir minha família ao redor… Ser levado a sério quando falo… Quero ser o centro das atenções e ser escutado sem interrupções nem questionamentos. Quero receber o mesmo cuidado especial que a TV recebe quando não funciona, passa novela ou futebol.
E ter a companhia do meu pai quando ele chega em casa, mesmo que esteja cansado.
E que minha mãe me procure quando estiver sozinha e aborrecida, em vez de me ignorar. E ainda que meus irmãos “briguem” para estar comigo. Quero sentir que a minha família deixa tudo de lado, de vez em quando, para passar alguns momentos comigo. E, por fim, que eu possa divertir a todos.
“Senhor, não te peço muito… Só quero viver o que vive qualquer televisor!”
Naquele momento, o marido de Ana Maria exclama atônito: “Meu Deus, coitado desse menino! Nossa, que coisa esses pais…”
Ela olha para ele e revela: “Pois é, essa redação é do nosso filho”.
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Professor de Filosofia, 26 anos , Ijuí, RS