Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

A censura está de volta

Nos 20 anos em que durou o regime militar, não era necessário ser de extrema esquerda para se defrontar com a censura a cada passo – como empresário editorial, profissional de imprensa ou mesmo como leitor.


As notícias proibidas pelos censores não podiam ser deixadas em branco no jornal, assim como não era permitido fazer menção no próprio veículo censurado às restrições impostas às Redações, onde um censor tinha sempre cadeira cativa.


Foi quando surgiram os famosos trechos de Os Lusíadas, de Camões, no Estado de S.Paulo e as receitas culinárias no Jornal da Tarde em substituição aos parágrafos eliminados pela censura.


Na televisão, os produtores precisavam assistir aos programas novos, ainda não exibidos, com um censor sempre ao lado, que poderia interromper a exibição a qualquer momento para esclarecimentos e exigência de mudanças.


No programa Vox Populi, criado por mim e Carlos Queiroz Telles na TV Cultura na década de 1970, a entrevista sensação seria a de um metalúrgico carismático, líder sindical de São Bernardo do Campo (SP), em sua estreia na televisão.


Era o primeiro programa de entrevistas na TV permitido pelo regime militar, que partia do princípio de que, ao aprovar um programa como aquele, em emissora com audiência restrita, estaria mostrando certa liberalidade em relação ao controle que exercia sobre as mídias, ao mesmo tempo em que corria risco tolerável, não tão grande quanto se a transmissão fosse numa emissora comercial.


Olhos do regime


Aquele Vox Populi era aguardado com expectativa pelas autoridades do governo, que desejavam descobrir o que passava na cabeça daquele líder que julgavam de extrema esquerda, chamado Lula, e que riscos estariam correndo quando ele expusesse seus pontos de vista e a sua oratória na TV.


No estúdio da TV Cultura, num domingo à noite, com a emissora quase deserta, enquanto se aguardava, por via das dúvidas, o início da transmissão do programa já gravado, irrompe um oficial do corpo de paraquedistas exigindo, enérgico, a fita do programa, que, segundo ele, não iria ao ar de forma alguma.


Depois de vários telefonemas para as autoridades que aguardavam a transmissão, mais a interferência do governador de São Paulo, o programa foi oficialmente liberado e exibido ao impaciente oficial, que precisou se conformar, bastante irritado, com a situação de fato, embora ele fosse um livre atirador, agindo por conta de um grupo que não concordava com esse tipo de abertura.


Outro fato testemunhado por inúmeros jornalistas foi o enterro de Vladimir Herzog, conduzido com muita rapidez para evitar incidentes e presenciado por alguns presos que estavam sendo torturados nos quartéis, simultaneamente a Herzog, e que foram conduzidos à cerimônia, por tempo reduzido, apenas para provar que estavam vivos.


No culto ecumênico de sétimo dia de Herzog, na catedral da Sé, ninguém estranhou quando um ‘acidente’ interrompeu o trânsito na Avenida Nove de Julho e limitou o grande afluxo de pessoas que se dirigiam à Sé.


Assim como foi considerado compatível com a situação política alguns andares de um edifício comercial contíguo à catedral estarem ocupados por uma dezena de fotógrafos oficiais, cuja missão era fazer o registro de todos os que chegavam à missa.


Direito conspurcado


Todas essas peripécias precisavam ser encaradas, na época, por aqueles que deviam conviver com as restrições, por obrigação profissional, num regime de exceção.


Mas agora, num Estado democrático de Direito, torna-se quase impossível entender a censura imposta há três meses ao jornal O Estado de S. Paulo, proibido de divulgar informações sobre Fernando Sarney – filho do senador José Sarney –, indiciado pela Polícia Federal por falsificação de documentos para favorecer empresas em contratos com estatais.


Uma clara violação do direito de livre expressão, garantido pela Constituição brasileira e por convenções internacionais subscritas pelo Brasil. O processo foi transferido para a Justiça Federal de primeira instância do Maranhão, capitania em que a família Sarney exerce reconhecida influência.


Fica assim conspurcado o direito da sociedade brasileira à livre informação sobre assuntos de interesse público, numa situação esdrúxula, em que a censura prévia dos tempos da ditadura parece ressurgir das cinzas, com renovado e descarado vigor, em pleno regime democrático.

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Jornalista, escritor e presidente da Aner (Associação Nacional dos Editores de Revistas); foi presidente da TV Cultura de São Paulo (1986 a 1995) e ministro-chefe da Secretaria da Comunicação Social (1995, governo FHC)