Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

A conexão verde-amarela do bom velhinho

As últimas imagens de Augusto Pinochet, vivo, enganam. Mostram um velhinho simpático de 90 anos, sorridente, gentil, rosto inchado de um Papai Noel sem barbas, rodeado de crianças, recebendo ursinho de presente, movimentando-se penosamente em cadeiras de rodas, amparado em bengalas e nos braços rijos de seus encorpados seguranças.

Mas era apenas o outono do patriarca da mais feroz, sangrenta ditadura da América Latina dos anos 70, quando os generais de todas as bandeiras do Cone Sul formavam, ombro a ombro, a trincheira de ferro contra o comunismo, a ‘baderna’, a ‘subversão’. O Pinochet que vai ficar na história tem uma imagem bem mais sinistra. A que melhor retrata – para sempre – o general de voz esganiçada, aguda, quase feminina, é aquela em que ele aparece sentado, dias após o golpe, de óculos escuros, carranca de malvado, braços cruzados, boca de nojo, olhar arrogante, emoldurado por militares igualmente carrancudos.

O modelito do ditador que se prenunciava ganhava mais efeitos cenográficos com a longa capa cinza-ditadura que só deixava os sapatos negros à mostra e lembrava uma sinistra personagem da Transilvânia, um Nosferatu fardado prestes a exibir os dentes sedentos de sangue.

Este é o Pinochet que vai ficar cravado na jugular da História, menos pelo figurino das roupas lúgubres, mais pela obra concreta de repressão, que torturou e matou mais de 3.000 chilenos, confinou 40 mil em campos de concentração, exilou outros tantos, assombrou milhões, dentro e fora do Chile. Promulgando auto-anistia, esculpindo cargo de senador vitalício, inventando atestado médico para rebater depoimentos e juízos criminais, Pinochet passou os últimos meses de sua existência escafedendo-se da justiça, da lei, da humanidade. Morreu impune, mas devidamente julgado e condenado pela História como um de seus algozes mais emblemáticos, com vaga eterna no panteão dos carrascos que integram a galeria mais negra dos verdugos de todos os tempos.

Além da tortura e dos assassinatos, Pinochet passou pelo constrangimento de ser denunciado pelo uso de passaportes falsos, posse de dezenas de contas clandestinas nos Estados Unidos, com saldo estimado em mais de US$ 25 milhões, e acusações até de tráfico de cocaína.

‘Há três fontes de poder no Chile: Pinochet, Deus e a DINA’, informava ao Pentágono o adido aeronáutico da Embaixada americana em Buenos Aires, em fevereiro de 1974, cinco meses depois do golpe. Dias antes, Pinochet havia criado a terceira ponta da Santíssima Trindade chilena: a Dirección de Inteligência Nacional (DINA), sob as ordens de um obscuro e rechonchudo coronel da Engenharia do Exército, de fala mansa e gentil, chamado Manuel Contreras, um católico fervoroso que os íntimos tratavam por ‘Mamo’. Nem Deus, nem general algum se intrometiam entre Pinochet e Contreras. DINA começou rasgando: em seu primeiro ano de vida passaram por seus calabouços cerca de 4 mil pessoas. Destas, 421 morreram.

Em março, Contreras peregrinou à Terra Santa: foi à sede da CIA em Langley, na Virgínia, para uma conversa com o vice-diretor, general Vernon Walters, que nos idos de março de 1964 conspirara com os generais brasileiros quando adido militar do embaixador Lincoln Gordon no Rio de Janeiro. Meses depois da conversa com Contreras, oito especialistas da CIA desembarcaram em Santiago para um curso, encerrado em meados de agosto de 1974, que treinou os agentes da DINA recrutados entre os melhores oficiais das Forças Armadas chilenas. A revelação foi feita pelo próprio Contreras em 2002 ao jornalista chileno Amaro Gómez-Pablo e publicada pelo ex-correspondente do The Washington Post, John Dinges, em seu livro Os Anos do Condor.

Não se sabe bem onde o próprio Contreras afiou as garras, mas o FBI desconfia. Um amigo pessoal do coronel, o americano Robert Scherrer, que cuidava do escritório do Bureau em Buenos Aires, dizia que Contreras treinou no Brasil e um relatório da CIA, de 6 de setembro de 1974, informava: ‘Sabe-se que os serviços de segurança têm mandado oficiais ao Brasil para receber treinamento de Inteligência e que alguns oficiais brasileiros estavam no Chile como conselheiros durante os primeiros meses do governo da Junta (de Pinochet)’.

O Brasil dá uma mãozinha

Os agentes do SNI foram ao Chile depois do golpe para interrogar esquerdistas brasileiros, enquanto oficiais chilenos vinham ao Brasil para treinamento na ESNI, Escola Nacional de Informações – que serviu de inspiração a Contreras na formatação de sua DINA. Comandava o SNI um grande amigo do chileno: o general João Batista Figueiredo, que cinco anos depois realizaria em Brasília o sonho que o amigo Contreras nunca realizou em Santiago – arrebatar a presidência da República.

Na batelada de 24 mil documentos secretos da Inteligência americana sobre o Chile, desclassificados do sigilo no Governo Clinton, foi pescado um memorando secreto que Walters, o vice da CIA, mandou em 25 de julho de 1975 ao assessor de Segurança Nacional do presidente Ford, Brent Scowcroft. Ele retransmitia um apelo de Pinochet para a Casa Branca vetar qualquer tentativa de expulsar o Chile da ONU, por conta das torturas, e no Item 3 explicitava: ‘Os chilenos sabem que não conseguem obter ajuda direta por causa da oposição do Congresso (americano). Querem saber se há algum modo de conseguir essa ajuda indiretamente, via Espanha, Taiwan, Brasil ou República da Coréia’.

Por coincidência, todos os países sob ditaduras anticomunistas. Dois meses depois, em setembro, Pinochet e o vice-diretor da DINA, o coronel da Força Aérea Mario Jahn, discutiram a expansão internacional da repressão chilena. Na conversa na sala de jantar do general, presenciada por um civil amigo de Pinochet, Jahn pedia mais verbas: ‘Os americanos estão ajudando por meio do Brasil. Este é o momento de se mover, avançar e levar a luta para o nível mundial’, disse o coronel, segundo a fonte civil, que ouviu o Brasil ser definido como o ‘canal de treinamento’ de técnicas de interrogatório e tortura pelos agentes da DINA.

Em meados do mês, 16 de setembro, Contreras mandou a Pinochet um memorando pedindo US$ 600 mil dólares adicionais no orçamento do ano que se encerrava, a serem usados no pagamento de 10 agentes infiltrados em embaixadas chilenas de sete países: Itália, Bélgica, Costa Rica, Venezuela, Argentina, Peru – e Brasil, a quem caberiam mais dois agentes. O outro motivo da mordida extra era claro no documento: ‘Despesas adicionais para neutralização dos principais adversários’ no exterior, especialmente México, Argentina, Costa Rica, Estados Unidos, França e Itália. Estava lançada a semente da transnacional do terror, a Operação Condor. Sempre com a digital brasileira.

Em 1999, os repórteres José Meirelles Passos, Florência Costa e Sandra Boccia revelaram, no jornal O Globo, uma destinação adicional ao pedido de verbas: o custeio dos oficiais da DINA que faziam um curso no Comando de Operações na Selva e Ações Antiguerrilha (COSAG) do Exército, em Manaus.

Operação Condor

O Brasil era um dos membros seletos do restrito clube de seis países criadores da Operação Condor, fundada em 26 de novembro de 1975, numa manhã amena de primavera na capital chilena. O próprio Pinochet abriu a reunião secreta de quatro dias numa elegante mansão decadente da Avenida Alameda, a mais larga de Santiago, onde funcionava a Academia de Guerra do Exército. Eram 15 oficiais – entre coronéis, majores e capitães -, a nata dos arapongas das ditaduras do Cone Sul, reunidos sob o pomposo nome de I Encontro Interamericano de Inteligência Nacional, dirigido por Contreras.

O documento final, devidamente firmado pelos chefes da arapongagem continental, era uma das jóias que acabou preservada na incrível descoberta de 1992 no Paraguai: o ‘Arquivo do Terror’, um tesouro de mais de 60 mil documentos, pesando quatro toneladas e totalizando 593 mil páginas micro filmadas, que um descuidado agente paraguaio amontoou numa sala de um abandonado prédio policial da cidade de Lambaré, nas proximidades de Assunção. Estavam lá, intactos, diários, arquivos, fotos, fichas, correspondência e a rotina da Operação Condor e seus seis sócios fundadores.

No ato inaugural de 1975, Contreras explicou que a Condor teria três etapas. A Fase 1 seria a criação de um arquivo comum para troca de informações. A Fase 2 saía da teoria para a prática, prevendo seqüestros e troca de prisioneiros entre os países do clube. A Fase 3, mais ousada, assustou até os veteranos da repressão: Contreras previa vigilância e assassinatos fora da América Latina. ‘O Chile propôs operações para eliminar inimigos em todo o mundo’, revelou ao jornalista americano Dinges um dos chefes presente, o coronel de Exército José Fons, que firmou o documento final pela comitiva do Uruguai. O capitão da Marinha Jorge Casas assinou pela Argentina, o major de Exército Carlos Mena pela Bolívia, o coronel do Exército Benito Guanes pelo Paraguai e o próprio Contreras pelo Chile.

A comitiva do SNI, esperta, não assinou o documento e não deixou nomes para a história porque disse estar o Brasil ali como ‘observador’, segundo relatório da CIA citado por Dinges. O próprio Figueiredo deveria estar lá, mas ele recusou o convite de Contreras, entregue em mãos em Brasília, e preferiu mandar um representante pessoal. O SNI de Figueiredo só ingressou formalmente na Condor na segunda reunião, realizado em junho do ano seguinte, 1976, também em Santiago.

O anônimo subchefe da delegação uruguaia, um coronel da Força Aérea, acabou sugerindo o nome do grande carniceiro dos Andes, abutre típico do país-sede, para batizar a operação multinacional do terror. Condor foi aprovado por unanimidade.

No segundo encontro plenário da Operação Condor, em 1976, uma trânsfuga da guerrilha chilena, Luz Arce, que agora trabalhava para a DINA, conseguiu identificar a nacionalidade dos participantes de três países: Argentina, Uruguai e Brasil.

Numa palestra na USP, em junho do ano passado, o jornalista John Dinges ressaltou a esperteza brasileira na Operação Condor: ‘O Brasil foi sutil e diplomático. Atuou especialmente na troca de informações, sem participação na Fase 3, que envolvia assassinatos’.

Prova da importância que ele dedicava ao Brasil, Contreras indicou seu braço direito, o tenente-coronel Pedro Espinoza, futuro chefe de operações da DINA, para ser o elo de ligação com o SNI em Brasília. Um ano depois, num sábado de junho de 1976, Espinoza teria um encontro numa estrada deserta da periferia de Santiago com o agente Michael Townley, o chileno-americano que, em 21 de setembro, nas barbas da CIA, grudou uma bomba de plástico sob o banco do carro dirigido por Orlando Letelier nas ruas de Washington.

A explosão que matou o ex-chanceler de Allende e sua secretária foi a mais ousada operação da Fase 3 da Condor. A tecnologia unia cada vez mais o grupo. Um sistema de telex cifrado, chamado ‘Condortel’, passou a dar mais segurança na comunicação do bando. Chile, a sede, era Condor 1. Os aliados eram Condor 2 (Argentina), 3 (Uruguai), 4 (Paraguai) e 5 (Bolívia). O Brasil era Condor 6. Um agente da segurança boliviano, Juan Carlos Fortun, ouviu a explicação de seu chefe sobre a máquina que codificava as mensagens: ‘Ela foi especialmente fabricada para o Sistema Condor pelo Departamento de Logística da CIA’.

A ousadia americana da Condor já estava sendo rastreada pelo Governo americano – e a conivência brasileira, também. Quase sete semanas antes da explosão em Washington, o secretário de América Latina do Departamento de Estado, Harry Shlaudeman, mandou um relatório perturbador ao secretário Henry Kissinger, em 3 de agosto. Com base na avaliação de seus embaixadores na área, Shlaudeman alertava que os governos militares estavam se coordenando para operar ‘mutuamente’ no território de seus países. E escrevia: ‘Estabeleceram a Operação Condor para descobrir e matar os terroristas da Junta Coordenadora Revolucionária (JCR) em seus próprios países e na Europa. À exceção das operações de assassinato, o Brasil está cooperando’.

O americano esclarecia que o inimigo era tão vagamente definido que poderia incluir ‘quase todo mundo que se opõe à política do governo’. Shlaudeman alertava em agosto de 1976: ‘Estão planejando as próprias operações antiterroristas na Europa. A Argentina, o Chile e o Uruguai são os líderes; o Brasil é cauteloso, mas está fornecendo algum apoio técnico’. Na segunda semana de agosto, três novos relatórios da CIA mostram que a Condor começava a levantar vôo. Os americanos descobrem que Argentina, Chile e Uruguai treinavam em Buenos Aires uma equipe de assassinos para operar na Europa, a partir da França, santuário dos exilados. O SNI tomou conhecimento dos planos, mas decidiu não tomar parte na aventura européia. O Brasil saiu à francesa da confusão no Velho Mundo.

Mas, aqui por perto, não havia muito constrangimento. Um documento da CIA de 19 de julho de 1976, obtido pelo jornalista Dinges, flagra uma operação conjunta entre o Brasil de Geisel e a Argentina de Videla: ‘Uma fonte confiável brasileira descreveu um acordo Brasil-Argentina através do qual os dois países caçam e eliminam terroristas que tentam fugir da Argentina para o Brasil’. A parceria Brasil-Chile funcionava também. No ‘Arquivo do Terror’ do Paraguai brotou uma correspondência fraterna entre os amigos Figueiredo e Contreras.

O brasileiro escreveu no dia 21 de agosto de 1975 e o chileno respondeu uma semana depois. Agradece as informações recebidas e se mostra preocupado com a iminente vitória de Jimmy Carter nas eleições presidenciais, lembrando que dois inimigos comuns se beneficiariam da vitória democrata: o chileno Orlando Letelier e o brasileiro Juscelino Kubitschek. Um ano depois, JK morre em acidente de automóvel. Um mês mais tarde, Letelier morre na explosão de seu automóvel. Eram tempos perigosos, aqueles.

A carta do coronel ao general acabou engrossando a papelada do juiz espanhol Baltazar Garzón, que investiga a Operação Condor e um bando de generais – os argentinos Videla e Galtieri, o uruguaio Gregório Alvarez, o boliviano Hugo Banzer e, graças aos correios, o brasileiro Figueiredo. O emissário da carta pode ter sido o próprio adido militar chileno em Brasília na época: o coronel Sérgio Arredondo Gonzalez tinha sido braço direito de Contreras e chefe da seção internacional da DINA. Envolvido na ‘caravana da morte’, que matou 73 pessoas no Chile dias após o golpe, acabou em prisão domiciliar enquanto responde na Justiça.

O Brasil não participava da Fase 3, mas se esbaldava nas etapas 1 e 2, com troca de informações e de prisioneiros na fronteira. Em dezembro de 1975, a pedido do general Stroessner, do outro lado da fronteira, agentes (sem uniforme) do CIEx, Centro de Informação do Exército, seqüestraram quatro paraguaios que viviam em Foz do Iguaçu. Ali mesmo, no Parque Nacional do Iguaçu, foram presos, torturados e mortos seis integrantes da VPR (Vanguarda Popular Revolucionária), que vieram da Argentina e entraram no Brasil em julho de 1974 sob a liderança de Onofre Pinto, o homem que recrutara Carlos Lamarca para a guerrilha.

O grupo foi atraído para uma emboscada do Exército a partir das informações de um agente infiltrado, o ex-sargento da Brigada gaúcha Alberi Vieira dos Santos, que atuava em Buenos Aires sob as asas da Condor. O jornalista e exilado Aluízio Palmar, que esclareceu a história no livro ‘Onde foi que vocês enterraram nossos mortos?’, ainda levantou novos documentos mostrando a cumplicidade na época entre o SNI e o Exército com os órgãos de repressão do Paraguai e Argentina.

Ao longo de cinco anos, entre 1975 e 1980, a Condor abriu suas asas negras sobre centenas de operações clandestinas, prendendo, torturando e levando à morte milhares de opositores às ditaduras do Cone Sul, num sobrevôo que ultrapassou os Andes e chegou aos Estados Unidos e à Europa. O único flagrante da Condor, com testemunhas, acabou acontecendo justamente no Brasil, em novembro de 1978, quando dois jornalistas brasileiros surpreenderam um comando do Exército uruguaio em Porto Alegre, sob a cumplicidade do DOPS gaúcho, armando uma ratoeira para exilados no apartamento de Lílian Celiberti. A operação havia sido combinada entre o Departamento 2 do Estado-Maior do Exército uruguaio, comandado pelo coronel Calixto de Armas, e o CIEx brasileiro, então chefiado pelo general José Luís Coelho Netto.

O fiasco do seqüestro, que evitou que Lílian, seus dois filhos e Universindo Dias fossem mortos, obrigou a uma operação de emergência para proteger os seqüestradores. O chefe do SNI, Figueiredo, já indicado para suceder Geisel como presidente, mandou seu braço-direito, general Octávio Medeiros, duas vezes ao sul para uma operação de blindagem dos seqüestradores acuados pela imprensa e pela Justiça. Foi a primeira e única incursão da Condor uruguaia no Brasil. E continua sendo seu fracasso internacional mais retumbante. O velho Pinochet devia ter ficado ainda mais carrancudo.

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Jornalista