Em breve o Supremo Tribunal Federal deverá julgar um caso que envolve uma decisão sobre a constitucionalidade da Lei Complementar nº 135, a chamada Lei da Ficha Limpa. A fim de que se tenha clareza quanto ao que vai ser decidido pela Suprema Corte, é oportuno apresentar uma síntese da situação jurídica e dos questionamentos que deverão ser objeto da decisão do Judiciário.
Em primeiro lugar, é importante assinalar que o Capítulo IV da Constituição trata ‘Dos Direitos Políticos’ e ali se encontra o artigo 14 que, no parágrafo terceiro, faz a enumeração das condições de elegibilidade, ou seja, os requisitos para que alguém possa ser eleito para um cargo político, recebendo o mandato do povo. O parágrafo 7º trata expressamente das situações que tornam uma pessoa inelegível, como, por exemplo, os parentes próximos de uma autoridade, que não podem ser eleitos para substituí-la. E o parágrafo 9º dispõe, com minúcia, sobre as inelegibilidades numa visão mais ampla, prevendo textualmente: ‘Lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para o exercício do mandato, considerada a vida pregressa do candidato e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta.’
Com base nesse dispositivo constitucional foi aprovada a Lei Complementar número 64, de 18 de maio de 1990, estabelecendo outros casos de inelegibilidade, lei que passou a ser conhecida como Lei das Inelegibilidades e que foi parcialmente alterada pela Lei Complementar número 81, de 13 de abril de 1994. Mais recentemente, a partir de iniciativas de segmentos da sociedade brasileira, foi aprovada pelo Congresso Nacional uma nova lei fixando outros casos de inelegibilidade, como previsto na Constituição. Trata-se da Lei Complementar número 135, de 4 de junho de 2010. Desde logo se verifica que o estabelecimento de novos casos de inelegibilidade por meio dessa lei é de inquestionável constitucionalidade, pois essa hipótese está expressamente prevista no artigo 14, parágrafo 9º, da Constituição.
Exigência de moralidade
As dúvidas suscitadas pelos interessados, e que deverão ser dirimidas pelo Supremo Tribunal Federal, referem-se aos casos de condenação em órgão judicial colegiado, ou seja, em órgão com mais de um julgador, num processo de apuração de abuso do poder econômico ou político. Uma das alegações é que a Lei Complementar nº 35 não poderia ser aplicada às eleições deste ano porque a Constituição proíbe a aplicação de uma nova lei a uma eleição que ocorra até um ano depois de sua entrada em vigor. Como a Lei da Ficha Limpa entrou em vigor no dia 7 de junho deste ano, que foi a data de sua publicação, seria inconstitucional aplicá-la às eleições do próximo dia 3 de outubro.
Na realidade, a proibição constitucional não tem a extensão que se pretende dar a essa interdição e não impede a aplicação imediata, nestas eleições, da Lei da Ficha Limpa. Com efeito, o que diz, textualmente, o artigo 16 da Constituição é que ‘a lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorra até 1 (um) ano da data de sua vigência’. Ora, processo, como bem esclarece o notável processualista José Frederico Marques, é um conjunto de atos concatenados, que devem ser praticados numa sequência pré-estabelecida, servindo de instrumento para o exercício da função jurisdicional. Ora, o que a Lei da Ficha Limpa faz é, simplesmente, estabelecer condições de inelegibilidade, sem qualquer interferência no processo eleitoral, que continua a ser exatamente o mesmo anteriormente fixado por lei. Não há, portanto, qualquer inconstitucionalidade.
Outra alegação é que a aplicação da Lei da Ficha Limpa a situações estabelecidas anteriormente seria contrária à regra constitucional que proíbe a retroatividade. Também nesse caso está ocorrendo um equívoco. De fato, a Constituição proíbe a aplicação retroativa da lei penal, encontrando-se essa interdição em disposição expressa do artigo 5º, inciso XL, segundo o qual ‘a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu’. Ora, não há como confundir uma lei que estabelece condições de inelegibilidade, uma lei sobre as condições para o exercício de direitos políticos, com uma lei penal. Veja-se que a própria Constituição, no já referido artigo 14, parágrafo 9º, manda que seja considerada a vida pregressa do candidato, ou seja, o que ele fez no passado, para avaliação de suas condições de elegibilidade. Assim, pois, não ocorre a alegada inconstitucionalidade da Lei da Ficha Limpa, porque ela não fixa pena, mas apenas torna explícito um dos aspectos da vida pregressa que podem gerar a inelegibilidade.
Em conclusão, a Lei da Ficha Limpa não afronta qualquer disposição constitucional e, mais do que isso, complementa a exigência constitucional de moralidade para o exercício do mandato.
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Jurista, professor emérito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo