Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

A contramão dos direitos e liberdades na internet

Proteção, sim; violação de privacidade, não. Esse é o desejo dos consumidores brasileiros que navegam na internet. E esse é o mote – mais que o mote, o alerta – que orienta a campanha lançada pelo Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) na última terça-feira (2/8), contra o Projeto de Lei 84/99, que trata de crimes cibernéticos. A campanha “Consumidores contra o PL Azeredo” pretende chamar a atenção da sociedade para a ameaça que o PL 84 representa ao direito à privacidade e liberdade na rede, aos direitos dos consumidores no acesso aos produtos e serviços e no direito fundamental de acesso à cultura, à informação e à comunicação. “Para os consumidores, a aprovação do projeto traz consequências drásticas”, prevê advogado do Idec.

No Congresso desde 1999, o PL 84/99 segue na Câmara dos Deputados nos termos do texto substitutivo proposto pelo deputado Eduardo Azeredo (PSDB-MG). O PL Azeredo tramita em caráter de urgência na Casa e está prestes a ser votado no início de agosto, quando termina o recesso parlamentar. Se aprovado, desviando-se de sua pretensa função de combater os crimes na internet, o projeto vai instaurar um cenário de vigilância e monitoramento na rede, restringindo sensivelmente os direitos e liberdades e criminalizando condutas que são cotidianas dos cidadãos no mundo virtual.

Para os consumidores, a aprovação do projeto traz consequências drásticas, especialmente se considerarmos que a internet é inteiramente permeada por relações de consumo. Desde a conexão até o acesso a conteúdos em sites, produtos e serviços via comércio eletrônico, passando pela utilização de e-mails, plataformas colaborativas e redes sociais, em menor ou maior grau, tudo é relação de consumo e deve entendido na lógica da defesa dos direitos consagrados pelo Código de Defesa do Consumidor (CDC).

Marco Civil da internet

Há 20 anos, esse mesmo CDC tenta fazer valer um de seus princípios básicos: a boa-fé. Pressupõe-se que todos são legítimos titulares de direitos e praticam seus atos cotidianos com base na legalidade, na confiança e no respeito. Por óbvio, essa premissa é válida também para a internet. O que o PL Azeredo faz, no entanto, é inverter essa lógica. No lugar da presunção da boa-fé, instaura-se a constante suspeita. No lugar do respeito à privacidade dos dados e informações dos usuários, o projeto determina a sua vigilância constante, como se a qualquer momento fossem praticar um crime, um ato de vandalismo, uma atitude ilícita. Para o PL Azeredo, como norma penal que é, na internet todos passam a ser suspeitos até que se prove o contrário.

Para possibilitar esse monitoramento, o texto do substitutivo dá aos provedores de acesso à internet um “poder de polícia virtual”, coletando obrigatoriamente vários dados dos usuários e guardando-os pelo período exacerbado de três anos. Durante esse período, não se sabe exatamente o limite de utilização desses dados, pois não há regulamentação a respeito. Hoje, como inexiste no Brasil uma norma específica sobre proteção de dados pessoais, atribuir tamanho poder de manipulação de informações a esses atores dá margem a violações de privacidade e uso indevido dos dados, inclusive com interesses comerciais. Um fenômeno que já ocorre hoje – evidente em contratos e políticas de privacidade abusivas das empresas –, como apontou pesquisa recente do Idec, e que deve ganhar dimensões incontroláveis se não houver regulação específica anterior ao PL em tramitação.

Outra inconsistência extremamente prejudicial, que coloca a carroça do PL na frente dos bois, é a inversão da própria lógica jurídica sobre o estabelecimento de direitos na internet. Como ultima ratio, o direito penal serve para criminalizar condutas que atinjam bens jurídicos protegidos e atentem contra direitos. Porém, antes de qualquer criminalização, por uma questão lógica, é preciso estabelecer quais são esses direitos. O Marco Civil da internet, colocado em consulta pública pelo Ministério da Justiça e discutido abertamente pela sociedade, traz um avançado arcabouço civil para regulamentar não apenas direitos, mas princípios, valores, deveres e responsabilidades na rede. Sem essa determinação do espectro da cidadania virtual, é impossível estabelecer com exatidão as condutas passíveis de pena. Porém, é exatamente isso que o PL Azeredo faz.

PL restringe um direito potencial

E, assim, desastrosamente, passa a criminalizar ações triviais e cotidianas dos consumidores na internet. Atos que praticamos todos os dias, a todo momento. Objetivando enquadrar os grandes criminosos da rede, o PL concede o status de criminoso a todo aquele que: desbloquear aparelhos que já adquiriu legitimamente (como iPods e celulares) para utilizá-lo com aplicativos de outra empresa; habilitar programas específicos de comunicação na rede, como os de voz sobre IP (ex: Skype), muitas vezes bloqueados indevidamente pelas empresas de banda larga; e digitalizar músicas e filmes pelos quais já pagou, para uso em plataformas diferentes (como DVD players, softwares diversos e aparelhos portáteis). Todas essas ações, diga-se, completamente amparadas no direito à fruição integral dos produtos e serviços, à liberdade de escolha e à não subserviência a práticas abusivas, conforme disposto nos incisos II e IV do art. 6, do Código de Defesa do Consumidor (CDC). Porém, atropelando o CDC, o PL Azeredo impõe a pena de 1 a 3 anos de reclusão a todos esses “criminosos”, que somos nós, consumidores. O deputado Eduardo Azeredo (PSDB-MG) pede urgência na aprovação da lei de crimes digitais.

O cerceamento a direitos pelo PL 84/99 – que não por acaso recebeu a alcunha de AI-5 Digital, em alusão ao ato que suspendeu direitos civis na ditadura militar –, entretanto, não para por aí. Num país que ainda possui uma longa caminhada para garantir a inclusão digital da população, o PL vai no sentido oposto, restringindo, de antemão, um potencial direito: o direito à internet banda larga, universalizada, em todos os territórios brasileiros. Com imensas barreiras econômicas e geográficas para a infraestrutura de rede em várias regiões, poderíamos contar com políticas públicas de acesso via redes sem fio, de forma eficiente e desburocratizada. Porém, a obrigação imposta pelo PL, de cadastro obrigatório de todos os acessos e de concentração das informações nas mãos dos provedores, como explica o professor Tulio Vianna, burocratiza o processo e elimina sumariamente essa possibilidade.

Direitos à liberdade e à privacidade

Por fim, talvez o maior retrocesso trazido pelo PL Azeredo esteja no campo cultural. Primeiro, em seu aspecto mais estrito, de produção artística e cultural. O caráter recrudescedor e punitivo do projeto acaba limando as possibilidades de trocas simbólicas, de compartilhamento, de liberdade de acesso a informações e conteúdos trazidos pela internet e pelas tecnologias digitais – inclusive com repercussões muito negativas no que tange à inovação, conforme apontou estudo do Centro de Tecnologia e Sociedade, da Fundação Getúlio Vargas.

Depois, na esfera cultural mais ampla, que se refere ao comportamento dos indivíduos e à própria cultura de utilização da rede. Para o direito do consumidor, uma interferência muito séria e perniciosa. Durante todos os anos que antecederam a Internet, o consumidor permaneceu numa posição passiva, de simples recepção e assimilação dos produtos, serviços, conteúdos e informações, sem qualquer possibilidade de questionamento.

Com o advento da cultura digital, baseada na liberdade, interatividade, construção colaborativa e comunicação em rede, o consumidor passa a ocupar uma posição política ativa, não apenas de questionamento do que recebe, mas igualmente de produção de informação e conteúdos. Na rede, a cultura consumerista adquire potencial crítico e os consumidores passam a ser protagonistas de suas relações, possuindo mais ferramentas para exercer a cidadania e exigir seus direitos. Isso tudo, naturalmente, se lhes for garantido os direitos fundamentais à liberdade e à privacidade. Justamente os direitos que lhe são arrancados pelo PL Azeredo. E aqui, o principal motivo para não ser aprovado. Se o for, teremos fatalmente uma lei na contramão dos direitos e liberdades na internet.

 

Leia também

O AI-5 digital – Paula Thomaz

***

[Guilherme Varella é advogado do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor, especialista em direito autoral e acesso à cultura e ao conhecimento]