As bolsas de valores de todo o mundo vivem semanas de vertiginoso sobe-e-desce. A crise financeira que abala os Estados Unidos, desencadeada pela débâcle do setor imobiliário, inquieta investidores e cidadãos. O programa Observatório da Imprensa na TV, exibido na terça-feira (30/9) pela TV Brasil e pela TV Cultura, discutiu a cobertura dos meios de comunicação e como o trabalho da imprensa pode afetar os mercados. O economista Luiz Gonzaga Belluzzo participou do debate ao vivo no estúdio em São Paulo. No Rio, o programa contou com as participações dos jornalistas Altamir Tojal e Noênio Espínola.
O jornalista Alberto Dines comentou dois fatos de destaque nos últimos dias na coluna ‘A Mídia na Semana’, exibida antes do debate ao vivo. Bandidos cariocas armados compraram todas as edições do jornal Extra disponíveis na Baixada Fluminense. O diário listava os deputados que, apesar de receber remuneração, não comparecem às sessões da Assembléia Legislativa. ‘O poder econômico do crime organizado aliado às milícias inventou uma das formas mais originais de censura. O Extra reimprimiu a denúncia na edição seguinte. A banda podre da Assembléia Legislativa está perdendo esta parada’, afirmou.
Em seguida, comentou o ‘escândalo da maleta’, na Argentina. Para Dines, a imprensa brasileira não está acompanhando o caso. ‘Os 800 mil dólares que Hugo Chávez teria despachado para ajudar a campanha eleitoral de Cristina Kirchner cresceram para 4 milhões de dólares. Como o caso está correndo na Justiça dos EUA, o ex-presidente Néstor Kirchner teria pedido à Casa Branca para abrandar o ímpeto dos procuradores de Justiça americanos. Impossível: nos Estados Unidos como no Brasil o Ministério Público é um poder independente.’
Não ao economês
Ainda antes do debate ao vivo, em editorial [ver íntegra abaixo], Dines comentou a trégua no mercado financeiro internacional na terça-feira (30/9). O jornalista disse que a atual crise é produto da bolha hipotecária americana, mas esta não foi a primeira bolha. ‘A mídia não inventa as bolhas, a mídia apenas sopra e as agiganta. Uma boa notícia pode rapidamente converter-se em euforia e da euforia passar ao delírio quando é noticiada de forma acrítica, sem pontos de interrogação e sem dúvidas’, disse. Para Dines, a imprensa brasileira ‘tem urticária só de ouvir as palavras regulação e controle público’ e deveria fiscalizar mais o setor financeiro.
George Vidor, colunista do jornal O Globo e comentarista da Globonews, e o correspondente internacional Sílio Boccanera gravaram entrevistas para o Observatório. Vidor afirmou que o Brasil não está envolvido diretamente na crise, mas como os Estados Unidos são a maior economia do mundo, outros países poderão ser afetados. O jornalista avaliou que a imprensa está atenta e tem acompanhado os desdobramentos, apesar de o Brasil ser um ‘ator ator coadjuvante’.
Para Sílio Boccanera, a cobertura reflete os altos e baixos da crise em si. O jornalista destacou que as próprias autoridades financeiras mundiais no início afirmavam que a crise era séria, mas poderia ser resolvida com 100 bilhões de dólares. Após sucessivas injeções de dólares e períodos de calmaria, atualmente o Fundo Monetário Internacional (FMI) estima em cerca de 1 trilhão de dólares o montante necessário para sanar o problema.
Boccanera relembrou que quando explodiu a crise da dívida externa latino-americana, em 1982, tanto a mídia brasileira quanto a internacional estavam despreparadas para a cobertura. Com o passar do tempo e a ocorrência de outras crises, a mídia se aperfeiçoou. George Vidor acredita que a situação do Brasil hoje é mais confortável que em 1982, quando estava ‘no olho do furacão’, e que isso se reflete no comportamento da imprensa.
Sílio Boccanera disse que os jornalistas evitam o uso da linguagem técnica – o chamado ‘economês’ – para passar as informações à população, mas que não há como evitar o uso de algumas terminologias. Com artigos, análises e entrevistas a mídia tenta atender tanto aos leitores não familiarizados com economia quanto aos que têm interesses nas minúcias do assunto.
O perigo do sensacionalismo
Uma cobertura sensacionalista, na opinião de George Vidor, pode gerar pânico porque a área financeira é muito sensível. O jornalista ressaltou que a mídia tem consciência de que a legislação é severa para quem desencadeia pânico no setor financeiro com notícias falsas, ou para quem alardeia boatos. A imprensa brasileira não estaria diminuindo ou exagerando a intensidade da crise. ‘É uma situação complexa. Você tentar explicar isso para o cidadão comum em pouquíssimas palavras e segundos é difícil’, ponderou.
No debate ao vivo, Dines comentou um recente artigo de Luiz Gonzaga Belluzzo sobre a rejeição ao pacote de socorro financeiro proposto pelo governo dos Estados Unidos. Existiria uma confusão conceitual entre ‘livre mercado’ e ‘liberdades democráticas’. Belluzzo explicou que as regras da economia nem sempre são congruentes e afirmou que a mídia às vezes não consegue perceber singularidades típicas da sociedade em que vivemos.
Os legisladores americanos, sobretudo os republicanos, avaliaram que a intervenção do Estado, indispensável nessa situação, seria um atentado às regras do livre mercado. A percepção do capitalismo como um processo econômico autônomo e sem regras seria fruto de uma insistência ideológica que a mídia ‘comprou’ desde a época do Muro de Berlim. ‘As concepções econômicas do liberalismo são míticas. Desde o mercantilismo passando pelo estado liberal, o Estado – por ação ou omissão – teve um papel importante no desenvolvimento do capitalismo’, disse Belluzzo.
O economista explicou que a regulação do capitalismo é um debate sempre presente e se mostrou preocupado com a ‘idéia da mídia’ de que existam verdades absolutas: ‘É como se existissem verdades absolutas, a-históricas, atemporais. Esse tipo de preconceito não consegue subsistir. A crise se encarrega de torná-lo subsistente’.
Altamir Tojal citou o conceito do ‘homem endividado’ formulado pelo filósofo francês Gilles Deleuze e afirmou que o apelo consumista está ligado à mídia. Um dos benefícios da crise seria a percepção de que não existe um sistema perfeito: ‘A mídia tratou o sistema de mercado como divino e deixou de fazer a crítica’.
Qual a extensão da crise?
Chama a atenção de Tojal na cobertura da crise a ignorância do ‘tamanho do buraco’ dos bancos e da crise como um todo. O jornalista afirmou estar impressionado com o fato de vivermos em um sistema que é capaz de explorar e controlar detalhes, como a sonegação de 100 reais no imposto de renda, e ao mesmo tempo ser tão complacente. ‘A imprensa não exercitou a desconfiança de que a história estava bonita demais’, disse.
A mídia não é culpada pelo ‘dispara e despenca’ das bolsas, na avaliação de Noênio Espínola. A imprensa é um registro, uma fotografia dos fatos, e estes têm impacto sobre a população. O jornalista observou que há um ‘deslocamento psicológico’ entre o que as empresas representam, a realidade dessas empresas e a volatilidade dos mercados. ‘Se uma manchete diz que a bolsa está desabando, eu vendo, vou embora’, disse. Espínola acredita que é necessário um estudo sobre como os meios de comunicação se comportam diante da crise do ponto de vista da psicologia de massas. ‘Nós da imprensa estamos nos esquecendo de que o sujeito que lê um jornal é sensível a uma manchete’, alertou.
***
A imprensa e a crise
Alberto Dines # editorial do Observatório da Imprensa na TV nº 480, no ar em 30/9/2008
Bem-vindos ao Observatório da Imprensa.
Hoje [terça, 30/9] foi dia de trégua no mercado financeiro internacional. Trégua não significa reversão, o desfecho do turbilhão ainda não é visível mas perfeitamente previsível: nada será como antes.
Está claro, porém, que o crash de ontem começou como bolha. A bolha hipotecária não foi a primeira. Antes dela, no fim dos anos 1990, tivemos a bolha da internet, antes ainda a bolha da globalização. Mas como se fabrica uma bolha? Como é que um modismo se transforma em tendência e esta numa bola de neve incontrolável?
A mídia não inventa as bolhas, a mídia apenas sopra e as agiganta. Uma boa notícia pode rapidamente converter-se em euforia e da euforia passar ao delírio quando é noticiada de forma acrítica, sem pontos de interrogação e sem dúvidas.
Quando a mídia americana lembrou-se de questionar a febre hipotecária, já era tarde. Quando alguns analistas começaram a reclamar contra os altos bônus pagos aos executivos das instituições financeiras, o mal era irreversível. Quando os grandes veículos começaram a admitir que o mercado financeiro precisava ser regulado, já não havia mais retorno. Isto vale, inclusive, para a grande imprensa brasileira que tem urticária só de ouvir a palavra regulação e controle público.
A imprensa nunca tem culpa, a não ser quando esquece que a função da imprensa é fiscalizar.
******
Jornalista