Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

A crise sem disfarces

Quando o jornalismo é notícia, um dos dois tem problemas. Às vezes são os dois, o jornalismo e a notícia sobre ele.


O antigo ditado está sendo confirmado quase todos os dias. Só se fala nos problemas da imprensa, do jornalismo, da mídia. Neste fim de semana, tivemos em Veja uma grande entrevista do escritor-jornalista americano Gay Talese, no Globo um longo artigo da colunista de economia Miriam Leitão, e no mesmo jornal uma crônica nostálgica de Luis Fernando Verissimo sobre as revoluções tecnológicas [ver íntegras abaixo].


O sofisticado Gay Talese é conhecido internacionalmente, está com um livro novo nas livrarias brasileiras, tem falado pelos cotovelos, mas porque é famoso e falante parece mais arrogante do que é. Ou supúnhamos que fosse. Por exemplo: afirmou que a crise é dos jornais e não do jornalismo.


Seduzido pela própria retórica, não percebeu que ao descrever os pecados cometidos pelos jornais colocava o jornalismo na berlinda. Impossível separar a função de um órgão do seu desempenho. Jornais não falam, são empresas, quem fala neles são os jornalistas por meio do jornalismo que oferecem.


Se o jornalismo que hoje se pratica nos Estados Unidos e aqui se copia fosse de boa qualidade não estaríamos sendo ludibriados pela balela de que o pior da crise econômica global já passou. Não passou e, ainda por cima, sequer começaram a aparecer os seus efeitos sociais e políticos.


A própria crise da imprensa não está sendo devidamente interpretada pelos jornalistas incapazes de apontar as falhas cometidas pelos jornais e empresas jornalísticas na fabricação de bolhas, factóides e simplificações.


É positivo mostrar ao público que os seus veículos de informação estão em crise. Não é bom disfarçar as culpas com truques e sofismas.


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A crise é dos jornais – e não do jornalismo


André Petry # reproduzido de Veja nº 2117, de 17/6/2009


O jornalista e escritor Gay Talese, 77 anos, é uma lenda viva. Como repórter, é autor de perfis memoráveis, e ainda hoje é lembrado pelo texto que escreveu sobre Frank Sinatra, publicado pela revista Esquire em 1966. Como escritor, é autor de onze livros, alguns dos quais marcaram época, como O Reino e o Poder, sobre seu ex-jornal, o The New York Times, e A Mulher do Próximo, uma estupenda reportagem sobre a revolução sexual nos Estados Unidos. Somando o repórter ao escritor, Talese tornou-se um dos mais festejados criadores do ‘novo jornalismo’ – que investiga com as ferramentas de repórter e relata com os recursos literários de escritor. Já ganhou uns 10 milhões de dólares com seus livros e mora numa bela townhouse no elegante East Side de Manhattan. Está escrevendo agora sobre seu casamento de cinquenta anos com Nan, respeitada editora de livros. Em julho, Talese planeja visitar a Festa Literária Internacional de Paraty, para promover Vida de Escritor, lançado há pouco no Brasil, mas nem de longe seu melhor trabalho. Talese recebeu André Petry, correspondente de Veja em Nova York, em sua casa para uma conversa que se estendeu por quase três horas. A seguir, um resumo.


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A lorota do Iraque


‘A imprensa americana caiu na lorota de que havia armas de destruição em massa no Iraque por algumas razões. Primeira: os atentados de 11 de setembro criaram um clima de espanto. Uma coisa é falar de guerra lá longe, na Normandia, no norte da África, falar do general Erwin Rommel, de Mussolini, Hitler. Outra é sofrer hostilidades de forças estrangeiras dentro de Nova York. Era inacreditável, e George W. Bush capitalizou isso. Ganhou enorme poder. Era o nosso defensor contra futuros ataques e o árbitro sobre o que era bom para nós. Fomos induzidos a acreditar que o governo tinha informações que nem o público nem o Congresso conheciam. A imprensa, muito crédula e um pouco ingênua, entrou no clima. Segunda razão: havia um fervor patriótico. A imprensa se sustenta com publicidade, e o pessoal tinha receio de ser percebido como antipatriótico – o que naqueles dias era o mesmo que ser anti-Bush – e acabar financeiramente punido, com os anunciantes debandando. O comediante Bill Maher fez uma brincadeira em seu programa na rede ABC, dizendo que os terroristas podiam ser chamados de tudo, menos de covardes, e foi retirado do ar. Essa atmosfera durou uns dois anos. Terceira: os jornais, Washington Post, The New York Times, efetivamente acreditavam no governo, e, por último, os repórteres que cobriam Washington eram muito diferentes dos repórteres do meu tempo, que cobriram a Guerra do Vietnã nos anos 60. Não eram céticos.’


A nova geração


‘Os repórteres que estavam em Washington em 2002 não tinham o ceticismo, o estranhamento necessário. Foram educados nas mesmas escolas que o pessoal do governo. Eles vão às mesmas festas que o pessoal do governo. Seus filhos frequentam as mesmas escolas. Todos nadam na mesma piscina, pertencem ao mesmo clube de golfe, vão aos mesmos coquetéis. São repórteres prontos para acreditar no governo. É assim hoje, e era assim em 2002. Os repórteres estavam prontos para acreditar no governo sem pedir provas, evidências, nada. Por pouco, não acusaram Saddam Hussein de ter patrocinado os atentados de 2001. Eram como um bando de pombos para os quais o governo jogava milho. Os repórteres de hoje cobrem a guerra dentro dos tanques das tropas americanas. É ridículo. Um repórter deve prestar contas ao seu jornal, e não ao coronel que está protegendo a sua vida. Num evento público, eu me encontrei com o Arthur Ochs Sulzberger, que hoje dirige o Times, e disse a ele que isso estava errado, que repórteres não podiam trabalhar com militares, mas ele acha que estava certo. Na minha geração, éramos diferentes, éramos de fora, como estrangeiros. Podíamos ter nascido nos EUA, nossos pais podiam ter ido à universidade, mas ainda assim nos sentíamos como estrangeiros. Éramos todos de classe social mais baixa. Éramos judeus, irlandeses, italianos, alguns eram negros. Minha geração não era composta de anglo-saxões que estudaram em Harvard, Yale ou Princeton, que formavam e ainda formam a gente que vai trabalhar no governo ou em Wall Street. No meu tempo, James Reston (1909-1995) era chefe da sucursal do Times em Washington. Reston nasceu na Escócia, mas tinha muito orgulho dos Estados Unidos. Abe Rosenthal (1922-2006) era judeu, nascido no Canadá, seu pai era da Rússia. Meu amigo e o melhor repórter da minha geração, David Halberstam (1934-2007), era judeu, seu pai era um médico militar. Halberstam tinha um senso crítico, um ceticismo notável a respeito deste país. Harrison Salisbury (1908-1993) cobriu a II Guerra e, nos anos 50, foi à União Soviética quando Stalin estava no poder. Salisbury não acreditava em nada. Não acreditava em Stalin, nem em Dwight Eisenhower. Salisbury era como todos nós, de fora. No Vietnã, Salisbury foi para Hanói antes dos soldados americanos para pegar histórias do outro lado. Se Halberstam ou Salisbury estivessem vivos e trabalhando em jornalismo, jamais teriam comprado essa lorota do Iraque. O Times não teria tratado como informação o que era apenas desinformação e propaganda.’


A imprensa e o governo


‘O governo usa a imprensa mais do que a imprensa usa o governo. Hoje, devemos ter uns 10 000 repórteres em Washington. Há uma civilização inteira de jornalistas em Washington. Se eu dirigisse um jornal, eliminaria de 50% a 60% da sucursal de Washington e mandaria os repórteres para outros lugares do país, para Califórnia, Nebraska, Flórida. Sabe o que aconteceria? Estaríamos tirando a ênfase sobre o governo e neutralizando sua capacidade de controlar o discurso político. Em vez de ficarmos segurando o microfone para o governo falar, estaríamos trazendo notícia sobre como as decisões do governo são percebidas e como são sentidas longe de Washington. Isso é vida real. É cobrir os efeitos das medidas do governo sobre a economia, a gripe suína, seja o que for, mas longe do governo e perto da sociedade. A multidão em Washington decorre do fato de que as pessoas adoram o poder e ficaram preguiçosas. Jornalista ama o poder, ama lidar com o poder.’


Os males da tecnologia


‘Com as novas tecnologias, e sobretudo com a criação da internet, o público hoje é informado de modo mais estreito, mais direcionado. Na internet, os jovens se informam de modo muito objetivo, no mau sentido. Eles têm uma pergunta na cabeça, vão ao Google, pedem a resposta, e pronto. Estão informados sobre o que queriam, mas é um modo linear de pensar e ser informado, que não dá chance ao acaso. Quem está interessado em saber sobre o presidente do Paquistão vai à internet, fica sabendo que ele andou visitando Washington, quem é o seu principal oponente, essas coisas. Quem lê um jornal impresso lê sobre tudo isso e depois, ao virar a página, lê sobre a mulher do Silvio Berlusconi, depois sobre as chinesas que perderam seus filhos naquele terremoto, depois sobre o desastre do Air France que saiu do Rio para Paris. Enfim, lê histórias que não procurou e, por isso, acaba adquirindo um sentido mais amplo do mundo. Claro que você também pode fazer isso na internet, mas o apelo da internet é o oposto. É oferecer informação rápida. A internet é o fast-food da informação. É feita para quem quer atalho, poupar tempo, conclusões rápidas, prontas e empacotadas. Quem se informa pela internet, de modo assim estreito e limitado, pode ser muito bem-sucedido, ganhar muito dinheiro, mas não terá uma visão ampla do mundo. Para piorar, surgiram esses blogs com blogueiros desqualificados, que apenas divulgam fofoca. São como uma torcida num jogo de futebol que fica o tempo todo gritando para os jogadores, para o juiz. É gente que não apura nada, só faz barulho.’


O politicamente correto


‘O politicamente correto é um veneno para o jornalismo. Em 2006, aconteceu um caso exemplar. Na Carolina do Norte, uma mulher foi contratada para dançar numa festa dos jogadores do time de lacrosse da Universidade Duke e disse que bebeu demais e acabou estuprada por três jogadores. O caso ganhou as primeiras páginas. Os jornais nunca publicaram o nome da moça, e divulgaram fartamente o nome dos rapazes acusados do estupro. Ela era negra. Eles eram brancos. No fim, descobriu-se que ela era uma mentirosa. Os jornais, o Times inclusive, protegeram a mentirosa e expuseram os inocentes. Por que o Times fez isso? Porque queria ser sensível à situação de uma afro-americana. Jayson Blair, que publicou várias mentiras como repórter do Times, é outro exemplo. Ele foi contratado porque o jornal queria ter mais representantes das minorias, e Blair era negro. Foi contratado por Gerald Boyd, o primeiro negro a chefiar a redação do Times. Acima dele estava apenas o diretor de redação, Howell Raines, um branco do sul. Boyd e Raines queriam ser politicamente corretos e contrataram Blair porque era negro. E, porque era negro, faziam vistas grossas para os seus erros, deixavam passar, até que a coisa estourou. Só foram tolerantes com os erros de Blair porque queriam ser politicamente corretos. No jornalismo, isso não funciona. O jornalismo tem de ser vigilante, justo, realista, disciplinado, e não se preocupar em ser ou parecer politicamente correto.’


O futuro do jornalismo


‘A crise dos jornais americanos não é uma crise do jornalismo americano. Moro em Nova York há cinquenta anos. Já vi muitos jornais fechar as portas. Nos anos 60, acabou o The New York Herald Tribune, que era um grande jornal, mas grande mesmo. Antes, fechou o tabloide New York Daily Mirror. Eu cresci lendo revistas como Life, Saturday Evening Post, Look, e nenhuma delas existe mais. Em Nova York havia quinze jornais. Quando cheguei aqui, em 1959, eram sete. As pessoas esquecem que os jornais vão e vêm. O jornalismo, não. As pessoas vão sempre precisar de notícia e informação. Sem informação não se administra um negócio, não se vende ingresso para o teatro, não se divulga uma política externa. Todos os dias, nos jornais das cidades grandes ou pequenas, repórteres vão à rua para fazer o que não é feito por mais ninguém. De todas as profissões, se um jovem estiver interessado em honestidade e não estiver interessado em ganhar muito dinheiro, eu aconselharia o jornalismo, que lida com a verdade e tenta disseminar a verdade. Há mentirosos em todas as profissões, inclusive no jornalismo, mas nós não os protegemos. Os militares acobertam mentirosos. Os políticos, os partidos, o governo, todos fazem isso. O escândalo do Watergate é uma crônica de acobertamento. Os jornalistas não agem assim, não toleram o mentiroso entre eles. Acho uma profissão honrosa, honesta. Tenho orgulho de ser jornalista.’


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A notícia vive


Miriam Leitão # reproduzido de O Globo, 14/6/2009; intertítulos do OI


Tudo está se movendo ao mesmo tempo no mundo da transmissão da notícia. Tanto que nem sei por onde começar esta coluna. A Newsweek numa edição recente avisou que aquele era o primeiro número de uma nova revista, reformulada diante do fato de que ‘a internet está fazendo muito bem o trabalho de dar notícias e análises instantâneas’. O que sobra para um veículo lento como uma revista?


A Newsweek acha que sobra o espaço de reportagens exclusivas e grandes ensaios que tenham um argumento claro e inédito. A revista fechou editorias, somou outras, foi obrigada a se reinventar. No artigo ‘Uma nova revista para um mundo em mudança’, a publicação começa dizendo que ‘não é segredo que o negócio do jornalismo está com problemas’.


A Economist publicou que 70 jornais fecharam na Inglaterra desde o começo de 2008. O Independent depende hoje de investidores estrangeiros. Os jornais franceses estão sendo subsidiados. Todd Gitlin, professor de jornalismo da Columbia, divulgou um texto online sobre ‘As muitas crises do jornalismo’, dizendo que quatro lobos estão às portas da imprensa americana: a queda da receita de anúncios, a queda da circulação, a difusão da atenção do leitor, e uma crise de autoridade. A soma dos dois primeiros acabou com a lucratividade das empresas.


O New York Times teve um prejuízo tão grande neste começo de ano que apressou as providências para, de um lado se livrar do que mais arruína seu balanço, o Boston Globe, e, de outro, encontrar novas formas de receita com o conteúdo que produz. Está em dúvida sobre um novo sistema de assinatura, micropagamentos por conteúdo acessado, pedidos de doação, qualquer coisa que aumente suas receitas.


Vórtice de mudanças


Desde 2001, a circulação dos jornais americanos caiu 13,5% nos dias úteis e 17% nos domingos, sendo cinco pontos percentuais dessa queda só no ano passado. A receita de anúncio caiu 23% em dois anos e o emprego caiu 15%. Foram fechados escritórios em vários estados e países. Um mapa-múndi que assinalava todos os locais onde o Washington Post tinha correspondentes ou escritórios foi retirado da redação do jornal americano. Era constrangedor o sumiço diário de pontos do mapa. A crise que atingiu todos os setores da economia bateu também nas empresas jornalísticas, mas o fato é que a mídia convencional já vinha sendo desafiada por todas as novas formas de transmitir a notícia.


As três maiores redes de TV aberta dos Estados Unidos – ABC, CBS e NBC – sempre tiveram pouca audiência diante das TVs pagas, mas de 1990 para cá, o percentual de americanos que se informa nas redes abertas caiu de 30% para 16%. A Pew Research Center, que tem registrado as estatísticas da audiência de notícia no rádio, TV e jornais, constatou em 2008, pela primeira vez, mais gente recebendo informação via internet do que nas plataformas tradicionais. Apesar disso, quando se pergunta quem só recebe informação online, o dado é de apenas 5%. O mais alarmante da pesquisa foi o aumento de 25% para 34% dos americanos de 18 a 24 anos que não tinham recebido notícia alguma, em qualquer dos veículos, no dia anterior.


Não sou dos que temem as mudanças como um sinal dos tempos. Não é a notícia que está em crise, é a tecnologia que tem ampliado espaços, revolucionado conceitos, criado novas ferramentas para se fazer o que sempre foi feito na humanidade: informar, discutir, analisar. A imprensa tem vivido num vórtice de mudanças intensas, e a sensação de quem vive no mundo da informação é que ele nunca mudou tanto em tão pouco tempo.


Sem alternativas


O Google News não tem um único editor humano. Seu processo de escolher e distribuir informação é feito por robôs. Arianna Huffington é dona de um dos maiores casos de sucesso da internet, o Huffington Post, que reúne 3.000 blogs e tem o dobro de visitantes que o website do New York Post. Outro dia, ao receber o Premio Webby (o Grammy da internet), ela fez um discurso, de poucos toques, como requer os tempos de twitter: ‘Obrigada. Eu não matei os jornais’.


Desde que a Economist publicou, anos atrás, uma célebre capa com o título: ‘Quem matou os jornais?’, os grandes jornais investiram em versões online, aderiram aos blogs e twitter, optaram por não cobrar por conteúdo, depois passaram a cobrar, voltaram a liberar o acesso, agora introduziram sistemas mistos, com textos de livre acesso e outros que exigem assinatura. O Guardian é hoje mais lido do que nunca. Por causa da internet ele tem duas vezes mais leitores fora da Inglaterra do que no seu país.


A notícia não morreu nem vai morrer. Na verdade, ela nunca circulou tanto, nem encontrou fórmulas tão instantâneas de espalhar-se como agora. O que ainda não ficou claro é como as empresas serão sustentáveis financeiramente. A receita de publicidade na internet cresce menos do que a queda da receita dos veículos tradicionais. Muitas respostas terão que ser encontradas pelas empresas e pelos jornalistas para os desafiadores tempos novos. Não resta alternativa a não ser seguir o turbilhão. Afinal, quem não gosta de novidade, jornalista não é.


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O raiar da nossa obsolescência


Luis Fernando Verissimo # reproduzido de O Globo, 14/6/2009; intertítulo do OI


Já contei que fui cobrir minha primeira Copa do Mundo em 1986, no México. Aquela em que a França nos eliminou nos pênaltis. Fui como correspondente da revista Playboy, o que me valeu dois problemas: 1) explicar para quem olhava o meu crachá o que, exatamente, um correspondente da Playboy fazia numa Copa do Mundo, onde sexo e mulheres nuas sem dúvida faziam parte mas não eram o assunto principal, e 2) como escrever para uma revista mensal sobre um evento que ia se redefinindo quase que dia a dia, obrigado a ter a matéria pronta antes de saber como o evento acabava.


Não consegui convencer ninguém que a Playboy não é só sexo e mulheres e que eu estava lá para ver futebol com todo o respeito, e tive que fazer uma ginástica estilística para que a matéria da revista tivesse ao menos algum mérito literário, já que não teria nenhum como reportagem.


Isso depois de resistir à tentação, que seria desastrosa, de adivinhar o resultado – uma final, claro, com a presença do Brasil – e reportá-lo como acontecido. No fim a matéria falava mais sobre o México do que sobre futebol, mais sobre astecas e melecas e os murais do Orozco em Guadalajara do que sobre Zico, Platini e Maradona. Ou sobre sexo e mulheres nuas.


Máquinas primitivas


Lembro como tínhamos inveja dos jornalistas europeus e americanos, que já então usavam laptops, ou coisa parecida, enquanto nós estávamos condenados a perfurar fitas de telex e esperar vagas em barulhentos aparelhos medievais para transmiti-las. Eu também, pois além da matéria única para a Playboy fazia colunas diárias para jornais no Brasil. Enquanto nosso futebol era derrotado em campo nossa imprensa era humilhada pela tecnologia adversária. Em técnica jornalística, os cinturas-duras éramos nós. Na Copa seguinte, no entanto, em Roma, já estávamos empatando. E na última Copa ninguém nos humilhou – pelo menos fora de campo. O vexame na Alemanha teve cobertura tecnicamente perfeita da imprensa brasileira, igual à de qualquer superdesenvolvido. Entramos na zona VIP do silêncio, e hoje só ouvimos o martelar dos aparelhos de telex em pesadelos.


Não tenho a menor ideia de como funciona o uaifai, nem a menor ideia de como consegui viver por tanto tempo sem ele.


Mas mal sabíamos nós que, ao ver aqueles primeiros computadores portáteis no México, estávamos vendo o raiar da nossa obsolescência. O que era para ser instrumento do jornalismo impresso está substituindo o jornalismo impresso. As maiores empresas jornalísticas do mundo sentem a competição da internet e de outros derivados daquelas máquinas primitivas e contemplam um futuro sem papel, ou a morte. A notícia do futuro irá da máquina para a máquina, sem necessidade do jornal como nós o conhecemos, e amamos. Talvez já na Copa de 14.