A criação do gabinete digital pelo Governo do RS nos induz a uma necessária reflexão – que o presente artigo buscará desenvolver – a respeito das potencialidades e riscos do que poderíamos denominar nova cidadania do século XXI, ou cidadania digital.
Essa nova cidadania nos colocará diante da oportunidade de instituirmos um “controle total” do Estado pelo cidadão, muito embora o seu contrário também seja uma possibilidade.
As revoluções tecnológicas das últimas décadas e o desenvolvimento de instrumentos virtuais de participação e transparência nos permitem imaginar um novo republicanismo, capaz de reinventar a própria idéia de democracia.
Mas, claro, há um longo percurso até o advento de um autêntico republicanismo digital, e esse desafio nos coloca diante de três questões-chave a serem enfrentadas pelas democracias do século XXI.
A primeira diz respeito à discussão a sobre os usos e apropriações das ferramentas tecnológicas disponíveis. Trata-se, em última analise, da disputa pelo controle da informação, que pode confrontar abertamente Estado e Sociedade nas próximas décadas. Poderíamos dizer que esse confronto já é perfeitamente visível hoje, por exemplo, no caso do wikileaks.
A segunda questão está relacionada à fluidez da agenda política atual e à instantaneidade da circulação de idéias e informação, que pode tornar ainda mais aguda a crise da representação que perturba as democracias em todo o mundo.
E, por fim, temos de refletir sobre as tensões permanentes no sentido da despolitização da política, desde sempre um desafio ao pensamento democrático e republicano.
Iniciemos, então, a partir do debate sobre os usos e apropriações possíveis de todo instrumental tecnológico disponível e da batalha pelo controle da informação e do conhecimento.
Nova democracia
A gestão pública, a democracia e o Estado moderno – ou pósmoderno – no século XXI estarão permanentemente desafiados a absorver um largo espectro de possibilidades para a expansão da cidadania, tornadas possíveis pela atual revolução no campo da informação e da comunicação.
Diante do esgotamento dos três principais modelos de Estado que nos serviram de referência ao longo do século XX – o liberal ou neoliberal, o Estado Social-Democrata e o de economia planificada – cumpre agora refletir a respeito de uma nova agenda para a governança democrática em escala global.
O caráter global dessa reflexão é decisivo, pois os desafios da democracia apresentam-se, cada vez mais, universais, abrangentes e envolvidos em um ambiente multifacetado, no qual respostas meramente locais e parciais possuem pouca capacidade de agregação e legitimação pública.
E uma das questões mais prementes está exatamente relacionada ao tipo de apropriação que os governos podem fazer dos novos instrumentais de gestão e seu impacto sobre os regimes democráticos contemporâneos.
A internet e as ferramentas de gestão criativa nos possibilitam imaginar uma ampliação da transparência e do acesso às informações públicas sem precedentes, proporcionando a criação de espaços cada vez mais públicos e menos estatais.
Hoje, já seria possível imaginarmos um controle social e cidadão “sem fim” sobre o Estado, na direção de uma espécie de republicanismo radical de novo tipo, que permita levar o cidadão a possibilidades de participação e interferência nos “negócios da cidade” antes impensáveis.
Além disso, ampliam-se as possibilidades de enfrentarmos positivamente o tema da “eficiência” da máquina burocrática do Estado, sob uma perspectiva democrática e socialmente responsável.
Na era da subsunção real, como caracteriza Giuseppe Cocco, a instantaneidade, a velocidade no processamento e reprodução da informação passam a ser um dos critérios fundamentais à percepção de eficiência – tenho insistido que o twitter faz sucesso não pela qualidade da informação, mas sim por sua instantaneidade – e isso deve servir de alerta ante à morosidade que caracteriza tantos serviços públicos.
Tornar ágeis os serviços públicos é um desafio gigantesco para o Estado, porque sua estrutura não está organizada para promover celeridade e é evidente que o déficit grandioso entre a agenda do Estado e as da sociedade tem sido aprofundado em tempos de globalização e mobilização em rede. Governantes governam, em grande medida, alienados em relação aos movimentos reais da sociedade.
Mas, de fato, a busca por um paradigma de gestão pública democrático, participativo e eficiente adquire novos contornos e se vê diante de um cenário animador e de grandes desafios.
Fluidez da agenda política
Em relação ao segundo ponto proposto, devemos lembrar que a nova experiência sensitiva, decorrente da profunda alteração dos processos cognitivos, termina por transformar profundamente as relações sociais e a própria política.
Isso porque a velocidade com que processamos as informações e os conteúdos, gerados diariamente em qualquer lugar do mundo, adicionam o que podemos chamar de uma “fluidez” da agenda política sem precedentes na história universal.
O impacto dessa revolução cognitiva para a política será decisivo para a definição e redefinição dos regimes políticos nas próximas décadas.
Vivemos uma transição de paradigmas tão profunda que é impossível para nós termos a exata noção do que ocorre e o que está por vir em termos de ativação da cidadania e participação política. E a democracia, tal como a maioria de nós conheceu, já não existe mais.
A democracia no século XXI será mais contraditória, complexa e diríamos até mais perigosa que a do Século XX., pois estará ainda mais sujeita aos impulsos e estímulos que podem detonar processos cada vez mais incontroláveis. O caso das recentes “Revoluções Árabes” é emblemático.
Politizar a agenda política
Por fim, tratemos da terceira questão a partir da constatação de que nunca foram tão evidentes as tensões em favor da despolitização da política. Essa tensão está na base da crise e dos protestos recentes na Espanha, por exemplo.
E isso vale para praticamente toda a Europa, onde mudam-se governos e não
muda nada. As pessoas não levarão mais a sério regimes nos quais partidos se revezam no poder sem ter condições de fazerem absolutamente nada diferente daqueles que os sucederam.
As forças do mercado e dos interesses transnacionais criaram esse impasse para a democracia hoje, e ele terá de ser superado de alguma forma.
Hoje, talvez, a maior ameaça à democracia e à República seja essa pretensão de despolitizar a política – que retira dos cidadãos o direito à escolha. Não há opções, porque todos são iguais, devem fazer o mesmo, e ao deixar de fazê-lo um governante fatalmente será chamado de louco, ditador, autoritário ou algo do gênero.
Todas essas questões fundamentaram a criação do Gabinete Digital do Governador do Rio Grande do Sul, Tarso Genro. A partir do conceito de cidadania digital, cremos ser possível enfrentar essas questões e proporcionar um controle sem fim da coisa pública. Estamos, sim, diante de inúmeras possibilidades de reinvenção e reencantamento da democracia e da política, do exercício de fazer política, que deve ser, cada vez mais, acessível a todos.
Essa, sem dúvida alguma, precisa ser a marca fundamental da democracia no século XXI e sobre ela construída as bases do Republicanismo digital.
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[Vinicius Wu é chefe de gabinete do governador do Rio Grande do Sul e coordenador do Gabinete Digital do governador Tarso Genro]