‘Não, o tempo não chegou de completa justiça.’ (A flor e a náusea)
Carlos Drummond de Andrade escreveu, em 1945, seu poema A flor e a náusea num brado por ação. Os versos expressam a indignação do poeta diante da situação sócio-econômica e política do país e do mundo. Falam da imprensa, dos crimes não publicados, dos jornais que não lêem a vida cotidiana, tornam-na enganosa. ‘Ração diária de erro, distribuída em casa’. A flor simboliza a luta, o não-conformismo. A náusea vem do o mal-estar diante das ‘fezes, maus poemas, alucinações e espera’: diante do caos social. O que faz o jornal, do governo ou da esquina, frente às injustiças? Mais do que espelho da própria instituição, a comunicação tem o dever de quebrar mitos, de propor desafios. De fazer nascer a flor – na rua, no debate público, ‘rompendo o asfalto’ –, sem fingir a sua existência. Para tanto, precisa firmar seu pacto com a esfera pública.
Comunicação Pública tem a ver com participação popular, multiplicidade de vozes, esfera de interação social, cuja finalidade é a desconstrução da palavra opressiva, desvendando seus matizes. O rótulo não pertence, necessariamente, às instituições estatais. Estas, contudo, devem assumir seu compromisso cívico – no início, aproveitando as brechas do sistema, até alcançar ações mais efetivas e favoráveis à democracia. Em contrapartida, a grande imprensa, se promove a ‘ágora’ moderna, pratica a Comunicação Pública. No entanto, é comum que deixe de servir à instituição Brasil, e se coloque a serviço de poucos.
Um exemplo dos desafios da Comunicação Pública pode ser encontrado em relatos jornalísticos sobre a Reforma do Poder Judiciário. O pronunciamento do ministro Nelson Jobim, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), na época vice-presidente, em audiência pública no Senado Federal, em 4 de fevereiro de 2004, foi considerado ponto alto dos debates sobre a Reforma, que já tramita há mais de uma década no Congresso Nacional. Neste artigo, analiso a cobertura jornalística do pronunciamento de Jobim por um veículo público de comunicação do Senado Federal e por veículos da grande imprensa, levando em conta as discussões sobre Comunicação Pública. Para tanto, foram selecionadas matérias da Folha de S. Paulo (FSP) (1) e do jornal O Estado de S. Paulo (OESP) (2) , do dia 5 de fevereiro, e da Agência Senado (3) de notícias, do dia 6 de fevereiro. A análise teve como base a Ata da audiência (4) com Jobim, realizada na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ), do Senado Federal.
Nelson Jobim no Senado
Foram quase cinco horas de debates. A audiência com o ministro Jobim era uma das mais esperadas do Congresso Nacional, face à urgência de mudanças no sistema Judiciário, considerado anacrônico e deficiente. ‘É na luta parlamentar que nascem as instituições’, afirmou Jobim, ressaltando a importância do Parlamento para o país. Resta perguntar: que tipo de embate se deu no Senado, naquele dia? ‘Precisamos estabelecer como premissa básica, que o Poder Judiciário não pode servir aos seus membros nem aos demandantes, mas à Nação’, defendeu o ministro.
Além de conhecer as leis e o Regimento Interno do Senado – às vezes desconhecido dos próprios parlamentares –, Jobim sabe da importância da história, ao contrário da maioria das pessoas, para quem a ‘história é gelada. Não inspira a ação’, lamenta o filósofo Renato Janine Ribeiro. A cada momento, Jobim trazia à tona um passado inteiro, para um ‘ajuste de contas com o futuro’. Relatos sobre acordos políticos do passado que favoreceram interesses específicos, em detrimento da democracia. No Brasil do século XIX, os republicanos mudaram as regras eleitorais para ganhar as eleições. O ministro comentou a Constituição de 1988 e, sobretudo, deu explicações sobre uma história recente: a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) nº 29, que trata da Reforma do Judiciário. Jobim alertou os presentes sobre a importância de conhecer as discussões da Câmara e suas resoluções. Fez mais: ensinou o caminho das pedras.
No histórico da tramitação da PEC nº 29, descreveu, e aprovou, a adaptação das diretrizes do Regimento Interno do Senado Federal aos interesses políticos do momento. Mas o que diz o Regimento Interno do Senado? Revela, com detalhes, qual deve ser o procedimento dos senadores na construção das leis do país. No caso da Reforma do Judiciário o Regimento Interno, em alguns momentos, tornou-se letra morta. A primeira ‘lei’, determinante de todas aquelas que interferem no andamento da Nação, chegou, de fato, a tombar. Em 2002, a PEC nº 29, já tinha recebido dois pareceres e estava pronta para ser votada, sob a liderança do senador Bernardo Cabral. Com as eleições, o quadro mudou (5). Houve renovação de 2/3 dos senadores, o Partido dos Trabalhadores alcançou o poder, e José Sarney assumiu a presidência do Senado Federal. Como aprovar a reforma, se a situação política havia mudado drasticamente? Outros interesses estavam em jogo. Bernardo Cabral foi substituído por José Jorge (PFL – PE). Nova cena, novos personagens, novos interesses.
No entanto, o Regimento Interno proíbe novas emendas. O que fazer? ‘Não havia mais, regimentalmente, como serem apresentadas novas emendas. O que fez o presidente do Senado? (…) Determinou que havia a possibilidade de apresentação de sugestões pelos Srs.senadores – leia-se sugestões `Emendas´ ao relator (…) com o nome de sugestões os senhores poderão alterar o universo que receberam, e o universo que receberam é composto pela PEC nº 29, pelo parecer nº 548 e pelo parecer nº 1.035 (sic)’, explicou Nelson Jobim, em detalhes. Portanto, a determinação do Regimento Interno foi alterada por uma espécie de artifício jurídico ilegal, como se a palavra ‘sugestão’ pudesse resolver um problema regimental. A não ser que o Regimento Interno, de fato, não tenha que ser obedecido à risca. Nelson Jobim explica, conforme consta na Ata da audiência:
‘(…) acabou de dizer o nosso Presidente que o Regimento Interno não seria obedecido na sua literalidade. O Regimento Interno é um órgão, um instrumento, de proteção de minorias, não é um instrumento que possa impedir decisões. É por isso que os senhores quando fazem um acordo político unânime aqui, desconhecem o Regimento Interno e aprovam determinadas decisões (…) Quando há unanimidade, não há razão de ter esse mecanismo (sic)’. (Grifos da autora).
Segundo o próprio Regimento Interno (6), as diretrizes regimentais devem ser obedecidas rigorosamente, para assegurar a legitimidade na elaboração da lei (Art.412). Deste modo, vigora a ‘impossibilidade de prevalência sobre norma regimental de acordo de lideranças ou decisão de Plenário, ainda que unânime, tomados ou não mediante voto’ (Art. 412, III). Caso seja estabelecido um acordo, que contrarie o Regimento, este deverá ser anulado (Art. 412, IV). Pode haver ‘modificação da norma regimental apenas por norma legislativa competente, cumpridos rigorosamente os procedimentos regimentais’ (Art. 412, II). (grifos da autora).
A mera troca de palavras, motivada por um acordo político e com a justificativa da unanimidade, não tem valor regimental. Sendo assim, o recurso lingüístico utilizado pelos parlamentares e ratificado pelo presidente do Senado e do Supremo Tribunal Federal demonstra a fragilidade das leis brasileiras frente aos interesses políticos. Isso fica claro na fala de Jobim, ao afirmar categoricamente que o Regimento ‘não seria obedecido na sua literalidade’, que os senadores ‘desconhecem o Regimento Interno e aprovam determinadas decisões’.
Além de descrever manobras políticas do passado e as recentes adaptações do Regimento Interno, Jobim sugeriu ainda, aos senadores, que fossem feitas alterações e supressões na PEC nº 29. Neste artigo, passo a comentar, agora, dois aspectos da Reforma que mereceram destaque nas discussões: a súmula vinculante e o controle externo, com o estabelecimento do Conselho Nacional de Justiça.
Súmula vinculante
Trata-se de um dispositivo que obriga os juízes de instâncias inferiores a seguirem as decisões do STF, em caso de ações idênticas. Estima-se que cerca de 80% das ações que chegam ao STF são sobre matérias com sentenças já estabelecidas. Para os que defendem a adoção da súmula, ela garantiria principalmente agilidade à Justiça no país. Os que se opõem alegam que comprometeria a independência dos juízes, colocando em risco a autonomia dos Poderes e ‘engessando’ a jurisprudência.
Nelson Jobim defendeu a súmula vinculante, aos moldes do que foi aprovado na Câmara Federal, o que reduziria os trâmites internos. Falou da necessidade de diminuir o número de ações julgadas, que chegam a quase 10 mil por ministro em um ano. Expôs, também, a necessidade de diminuir o orçamento do STF, que em 2002 foi de R$ 170 milhões.
Em tramitação no Congresso Nacional desde 1963 – há quase meio século –, a súmula vinculante segue o seu fim histórico: volta a ser arquivada. Menos de dois meses depois da audiência com Jobim, o Senado retirou do texto da Reforma do Judiciário o dispositivo que instituía a súmula vinculante para o Superior Tribunal de Justiça. A expectativa é de que o mesmo seja feito em relação ao STF. ‘Em quarenta anos, a medida nunca foi aprovada por um motivo simples. A súmula não conta com a simpatia dos advogados (pois reduziria o número de processos), da maioria dos juízes (temem a perda da autonomia) e até dos governos em todas as esferas’, afirma o jornalista Maurício Lima, autor da matéria ‘Emperrada a mais de quarenta anos’ (Veja, 11/02/04). (Informações entre parêntesis são da autora). De acordo com ele, cerca de 80% das ações que tramitam nos tribunais são de interesse do governo. A adoção da súmula vinculante prejudicaria o poder. ‘Resta saber se a súmula sai do papel dessa vez’, indagou o jornalista. Não saiu.
Controle externo
Outra discussão de destaque da Reforma é o controle externo. Criar um Conselho Nacional de Justiça (7), composto por 15 membros, dois dos quais representantes da sociedade civil, é a meta de Jobim. Meta saudável para a democracia, desde que possua dispositivos capazes, realmente, de fiscalizar o poder. A composição e competência do Conselho foram pontos de destaque na audiência pública.
Preocupado com a participação de dois representantes da sociedade civil, o senador Jefferson Péres (PDT-AM) defendeu, durante a audiência, a mudança na composição do Conselho, ao que Jobim respondeu: ‘(…) a dificuldade que V. EXª abordou é que esses personagens teriam o poder decisório absoluto; mas não têm, são dois em quinze’. Jobim disse ao senador: não há motivos para temer. Péres, no entanto, havia apresentado um outro argumento contra o Conselho: ‘Nós estamos criando uma figura nova, um conselho que vai ter o poder de demitir o magistrado’, alertou. Cassar o mandato do juiz, eis o motivo de temor.
Quanto a esse argumento, Jobim admitiu que a perda do cargo do juiz não deveria acontecer. Na Câmara Federal ficou estabelecido que, diante de irregularidades, o Conselho tem autonomia de afastar o juiz imediatamente. O Senado Federal, com a relatoria de Bernardo Cabral, tomou a mesma posição. Esta seria uma das funções mais importantes do Conselho. Contudo, para Jobim, e para certos senadores, as atribuições do Conselho deveriam ser estritamente administrativas, e não correcionais.
‘Eu entendo que a grande funcionalidade desse poder é administrativa, não correcional’, defendeu Nelson Jobim, que passou a dar instruções para supressão da perda do cargo, da PEC nº 29. ‘Se o Senado suprimir a expressão `perda do cargo´, que é o que V.Exª exemplificou, não há nenhuma necessidade de retornar à Câmara’.
O senador Demóstenes Torres (PFL-GO) entrou na discussão e expôs sua preocupação com a supressão dessa parte da emenda. Mostrou-se favorável à supressão, mas receoso quanto à volta do texto para a Câmara, o que criaria ‘dificuldades’. Torres sugeriu que no lugar da supressão fosse feita uma sugestão, leia-se ‘emenda’: podemos ‘criar uma outra situação, que seria a suspensão do magistrado até o julgamento da ação a ser proposta para perda do cargo’.
Jobim explicou novamente aos senadores que a supressão pode ser feita. De acordo com o jurista, se o Senado fizer uma alteração que não modifique o ‘conteúdo deôntico ou normativo’, o texto não precisa voltar à Câmara. ‘Queria mostrar que não se pode ler que a supressão de um texto feito pelo Senado em texto aprovado pela Câmara importe, necessariamente, no retorno desse texto para a Câmara. Importará no retorno para a Câmara se, e somente se, a supressão representar uma alteração do conteúdo deôntico ou normativo da parte que remanescer’, explicou Jobim.
A supressão, no entanto, representaria uma alteração deôntica ou normativa? A resposta é importante, e merece investigações. De qualquer forma, o controle externo defendido pelo ministro Nelson Jobim merece ser analisado, não simplesmente comemorado.
A voz dissonante
Em março, o Conselho Nacional de Justiça foi aprovado, levando em conta a sugestão de Jobim: a possibilidade de perda do cargo do juiz foi retirada do texto original. Um Conselho que apenas desempenhe atividades financeiras e administrativas, e não atue no âmbito correcional, pode, realmente, fiscalizar, exercer o controle do Poder Judiciário?
Na audiência ficou claro que os debates giraram em torno da manutenção do poder, não do seu controle. Apenas uma voz destoou no Parlamento. O senador Eduardo Suplicy (PT-SP) foi enfático ao afirmar que os debates se mostraram mais ‘cadentes quanto à determinação da perda do cargo do magistrado’. Dirigindo-se a Nelson Jobim, Suplicy disse que teve a oportunidade de aprender muito com a audiência, ‘inclusive na parte introdutória, quando V. Ex ª analisou como, nos séculos XIX e XX, as forças políticas agiram para alcançar o poder, e nele permanecer’. E completou:
Quem sabe pudesse V. Ex ª estender a sua análise tão brilhante sobre o que ocorreu nos séculos XIX e XX para o que ocorreu no final do século XX, no início do século XXI. Diria V.Exª que as forças que predominam no final do século XX, ou que estão agora predominando – incluo o meu próprio Partido, que está no poder –, estariam tomando atitudes para também se preservar no poder? (sic).
A cobertura jornalística
A ata da audiência pública com o ministro Nelson Jobim quando confrontada com a cobertura jornalística da audiência revela o tipo de compromisso público praticado pela Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo, e por um veículo público de comunicação, a Agência Senado.
De um pronunciamento de quase cinco horas, a Folha apenas deu enfoque ao controle externo e citou em poucas linhas, no final da matéria, o posicionamento do ministro quanto à súmula vinculante, um dos temas mais controvertidos da discussão. Merecia espaço maior. E embora tenha focado o controle externo, a polêmica maior da discussão ficou de fora: a perda do cargo do juiz. Que tipo de controle externo, defendido por Jobim, a Folha noticiou?
O texto fala positivamente da posição do presidente do STJ quanto à composição e competência do Conselho Nacional de Justiça. Dois pontos bem debatidos no Senado Federal. No entanto, há diferenças no controle externo defendido por Nelson Jobim na audiência, e no controle externo noticiado pela Folha. ‘Jobim defendeu a criação do conselho ao ser ouvido ontem pela Comissão de Constituição e Justiça do Senado. Ele afirmou que os agentes públicos devem prestar contas: `Hoje precisamos responder pelos custos. Nada é de graça, e quem paga é o contribuinte´. E acrescentou: `Não vejo nenhuma possibilidade, esse não é um juízo pessoal, de que o conselho não seja aprovado. É uma necessidade para a formulação de uma política judiciária nacional´’, noticiou a Folha.
Na audiência, ao ser questionado sobre a presença de membros fora do Judiciário no Conselho Nacional de Justiça, Jobim fechou a discussão, respondendo: ‘Ou seja, a dificuldade que V.Exª vê é que esses personagens teriam o poder decisório absoluto, mas não têm, são dois em quinze’. Palavras que suscitam análise. Afinal, a participação da sociedade civil no Conselho serve à democracia ou a composição de uma imagem democrática? Chamados de ‘paisanos’ e ‘personagens’ na audiência, os dois representantes da sociedade civil ora foram temidos, sob a justificativa de que o poder perderia sua autonomia, ora desprezados. Dois votos realmente não têm força decisória num total de 15. Há razão nessa afirmação. Razão que deveria ter sido exposta à sociedade. Afinal, não se trata de discutir a autonomia do Poder Judiciário, mas de criar um mecanismo eficiente para o seu controle.
A Folha também comparou a posição de Jobim com a de Maurício Côrrea, na época presidente do STF. Com isso, destacou-se a posição democrática de Jobim, uma vez que este defende o controle externo, é favorável à transparência, enquanto Côrrea a teme. Defender o controle externo não significa necessariamente a defesa da democracia. Tal defesa pode constituir-se apenas em um artifício do Poder. Discursos políticos têm suas estratégias, podem estar carregados de sofismas. ‘Sob a pele das palavras há cifras e códigos’, alerta Drummond, em ‘A Flor e a Náusea’. No caso da audiência pública, um jornalista não encontraria dificuldades em revelar as estratégicas políticas. Toda discussão no Parlamento, ainda que extensa e jurídica, estava aberta à imprensa. A Folha, no entanto, simplificou a questão de tal forma, que acabou deturpando a realidade.
Parte da audiência foi dedicada a ensinar aos senadores como mudar a lei para impedir que o Conselho tenha a competência de cassar o mandato do magistrado, diante da comprovação de irregularidades. Na Folha, nenhuma linha sobre isso. Em uma segunda matéria, publicada no mesmo dia, a Folha comenta as discussões sobre a competência do Ministério Público em conduzir investigações criminais. Posição nada democrática, também defendida por Jobim, embora a matéria não tenha citado o ministro. De modo que a sua imagem democrática permaneceu intocável.
Semelhança curiosa
‘Controle externo é inevitável, afirma Jobim’. Este é o título da matéria publicada pelo O Estado de S. Paulo sobre a audiência com o ministro. Assim como na Folha, o destaque é o controle externo, porém o Estado sequer citou a súmula vinculante. Embora os autores das matérias sejam diferentes, há um alinhamento da cobertura jornalística feita pelos dois jornais. Das cinco citações literais da fala de Jobim, feitas pela jornalista Mariângela Gallucci no Estado, três são idênticas às citações da Folha. As outras duas estão parafraseadas na Folha, pela jornalista Silvana de Freitas. As duas reportagens citam o posicionamento de Maurício Côrrea, de modo a favorecer o posicionamento de Jobim. Nenhum dos veículos fala, porém, da mudança do projeto original que prevê a supressão do mandato do juiz em casos de improbidade.
Como um pronunciamento de cinco horas pode ser reportado da mesma forma pela Folha e pelo Estado, com praticamente as mesmas citações literais e estrutura de reportagem? Como isso pode ocorrer com dois jornais teoricamente independentes entre si e, declaradamente, independentes do poder? Semelhança curiosa e antidemocrática.
O Estado, no entanto, abriu espaço para uma segunda matéria, onde tornou conhecida a posição da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) quanto à composição e competência do Conselho. A AMB requisitou que o Conselho seja ‘composto apenas por juízes e não tenha poder de determinar a perda do cargo dos magistrados’, noticiou o jornal. Embora tenha manifestado o temor dos magistrados, o Estado, porém, não tornou pública a posição de Jobim, favorável à carreira jurídica vitalícia. Omissão jornalística que, mais uma vez, favoreceu a existência de simulacros da realidade jurídica.
Agência Senado
A Agência Senado foi criada em 1995, como parte da reestruturação da política de comunicação do Senado Federal. Na cobertura que fez da audiência com Jobim, foram publicadas cinco matérias. A audiência foi noticiada de modo mais abrangente, relatando os aspectos omitidos pela Folha e pelo Estado, como o posicionamento dos senadores, possibilitando assim uma visão global das discussões parlamentares. A Agência também disponibilizou um número especial sobre a reforma do Judiciário, destacando aspectos da sua tramitação no Congresso.
Entretanto, ao comentar sobre o controle externo, a Agência seguiu enfoque semelhante ao dos outros veículos analisados. A matéria ‘Nelson Jobim, sobre o controle externo do Judiciário’ é composta de dois parágrafos, que não retratam as discussões da audiência sobre o Conselho. Seguem o mesmo caminho dos veículos aqui analisados: o pico do ‘iceberg’ está lá – o controle externo –, o resto está submerso.
Se adotada, a filosofia da Agência Senado, segundo consta no seu Manual de Redação, garante a prática de um jornalismo mais democrático. Pois tem como missão levar a informação legislativa ao grande público de modo acessível e objetivo. Mesmo sem emitir ‘juízos de valor em relação aos fatos relatados’, a Agência pode estar a serviço da cidadania. O discurso político, legislativo, em particular as discussões sobre a reforma do Judiciário na CCJ, tem suas proteções, e nem todos podem interpretá-lo. O jornalismo, em tese, possui a chave que desvenda tais discursos, tornando-os mais do que compreensíveis, atrativos ao público em geral. Não apenas ao fazer o relato factual, mas contextualizando a notícia para garantir, assim, a compreensão do público.
Diz a Agência, sobre Jobim: ‘Por fim, sugere aos membros do Judiciário que encarem o conselho como parte da vida democrática: `Quem não deve, não teme´, sentenciou’. A essa, pode-se acrescentar mais sentenças. Quem não tem seus motivos expostos publicamente não precisa temer, naquilo que deve. Mas se o jornalismo não noticiou, ou alterou a realidade, a Ata da audiência pública mostra que quem deve tem motivos sim, para temer.
Comunicação pública
Nas matérias não há diferenças, essenciais à democracia, entre a cobertura jornalística dos veículos selecionados. Não se pode falar, portanto, em Comunicação Pública em nenhum desses casos. O termo Comunicação Pública, que vem ganhando espaço no Brasil, surge com a proposta de uma comunicação, que independente de sua origem, pública ou privada, defende os interesses públicos. Obviamente, as instituições públicas, estatais ou não, devem ter, mais do que qualquer outro veículo, essa proposta como meta.
Como é possível, contudo, falar em Comunicação Pública no país se, nem mesmo a grande imprensa, o chamado ‘Quarto Poder’, desempenha a sua função fiscalizadora? Se não é possível mudar os meios de comunicação e os sistemas mudam os rótulos? Comunicação Pública. Jornalismo Cívico. Gestão de Conhecimento. Comunicação Integrada. Controle Externo. Os rótulos são importantes, mas não devem servir para criar ficções, devem ser confrontados com a realidade.
A Comunicação Pública começa no plenário íntimo, na tomada de responsabilidade de cada comunicador, ao aproveitar-se das brechas do sistema, e adquire sua força na coletividade. Do contrário, torna-se rótulo paradoxal, onde o ideal não inspira as decisões cotidianas, a justiça convive com a injustiça, e o brado por democracia se perde na ausência de ações.
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Jornalista, mestranda em Comunicação Social da Universidade Metodista de São Paulo (Umesp), pesquisadora na área de comunicação pública e integrante do grupo de pesquisa em Ciência e Tecnologia do CNPq, coordenado pela professora Graça Caldas