Num país sul-americano, numa emissora de tevê cujo nome leva o substantivo masculino ‘globo’, começa mais um telejornal de fim de noite. Os ‘âncoras’ são um casal bem apessoado, uma mulher e um homem bonitos e elegantes. Eles anunciam mais um escândalo que envolveria o governo federal. ‘Por enquanto’, já haveria indícios disto ou daquilo. Depois da chamada inicial, vem uma reportagem que tenta convencer o telespectador da tese da emissora sobre corrupção no governo. Não há provas, mas há ‘indícios’, que se bastam. Em seguida, aparece um senhor de meia idade verbalizando um editorial no qual faz violentos ataques ao governo e pede ao telespectador que se revolte.
Se você pensou que eu estava me referindo à Rede Globo, do Brasil, e ao governo Lula, enganou-se. Trata-se da emissora venezuelana Globovisión e do governo Hugo Chávez.
O programa foi na semana passada. O escândalo noticiado envolve um alto funcionário da estatal de petróleo venezuelana, a PDVSA, e uma maleta contendo dólares não declarados às autoridades aduaneiras da Argentina durante viagem àquele país de um obscuro ‘empresário’ venezuelano residente nos Estados Unidos. As suspeitas da grande mídia privada venezuelana, a exemplo do que acontece com a brasileira, automaticamente transformaram-se em ‘fatos’.
Convocação à revolta
Como estou na Venezuela a trabalho no momento em que escrevo, uso as noites chatas neste país para conferir, in loco, como funcionam a tal ‘ditadura’ de Hugo Chávez e o ‘cerceamento da liberdade de imprensa’ de que acusam o presidente.
Mais cedo, assisto, na mesma Globovisión, ao programa Aló Ciudadano, sobre política, apresentado por um sujeito debochado chamado Leopoldo Castillo. Ele trata do mais recente cavalo-de-batalha da mídia privada venezuelana, ao qual aludi acima. Ele chega a telefonar para a casa do funcionário do governo envolvido no escândalo. Uma mulher atende. Quando o apresentador do programa se identifica, ela desliga. Ele liga de novo, de novo e de novo… Ô ditadura mansinha essa!
A noite vai passando e vou zapeando entre os canais de tevê venezuelanos. Na RCTV, agora transmitida por cabo, outro programa sobre política, o La Entrevista, apresentado por Miguel Ángel Rodríguez. Ele fala sobre a reforma constitucional proposta por Chávez ao Congresso venezuelano há alguns dias. Afirma que, se for aprovada, o presidente irá desapropriar os bens das pessoas – os carros, as casas, as contas bancárias – e poderá dispor até de suas próprias vidas. Fica, para o telespectador, a impressão de que o presidente poderá mandar matar cidadãos, se quiser. No fim, o apresentador convoca os telespectadores a se revoltarem contra o governo.
Engraçado e inteligente
Volto à Globovisión. Agora, uma entrevista sobre política. Não me lembro do nome do programa ou dos nomes de entrevistadora e entrevistado. A apresentadora conversa com um especialista que afirma que a compra de cinco mil rifles russos por Chávez será usada para atirar nos cidadãos venezuelanos que saírem às ruas para protestar contra o governo.
A diferença, na Venezuela, é a de que, aqui, o governo reage. O canal 2 (da tevê aberta), tomado por Chávez da RCTV e transformado na tevê estatal TVes, dedica-se pouco a política. Costuma apresentar programas culturais, novelas filmes, mas também retransmite eventos dos quais Chávez participa e, em todos esses eventos, ele revida contra os canais privados que o atacam. Mas a antiga tevê estatal Venezolana de Televisión, a ‘VTV’, não deixa barato.
O principal programa político da Venezolana de Televisión rebate, um a um, os ataques dos canais privados. Trata-se de La hojilla (a gilete), apresentado pelo impagável Mario Silva. Ele se dedica a debochar das teorias acusatórias e conspiratórias dos meios de comunicação privados, sobretudo dos ataques da Globovisión. Passa trechos dos programas onde o governo é atacado e vai dissecando cada palavra, cada gesto, cada expressão facial dos que atacam. Mario Silva é competentíssimo. Sua mise en scène é digna de um Jô Soares. Engraçado, inteligente, vai direto à jugular dos jornalistas e dos medios.
Tudo, menos uma ditadura
Dia desses, sobre uma foto que o jornal El Universal publicou de um governador aliado de Chávez junto com o tal obscuro empresário venezuelano envolvido naquele escândalo com a maleta de dólares, Mario Silva mostrou a foto original, que deixava ver que o veículo fez uma montagem. El Universal pegou uma foto em que aparecem o governador, o empresário e várias pessoas e a reduziu, de forma que só aparecessem os dois. O jornal cortou as outras pessoas que estavam na foto, dando a impressão de que governador e empresário conversavam, mas, na foto original, pode-se ver que não estavam juntos. Um estava bem mais ao fundo do que o outro.
Há uma guerra de tevês na Venezuela. Alguns dirão que não é correto o governo usar uma tevê pública para rebater os ataques que recebe das tevês privadas, mas o fato é que, sem essa estratégia, a sociedade fica exposta a manipulações dos veículos que atuam de um dos lados, do lado privado, mas que são veículos que também atuam sob concessão do Estado. Com efeito, os canais de tevê venezuelanos são usados em favor dos grupos políticos que apóiam e que se opõem ao governo constitucional do país, um governo que acaba de ser reeleito por maioria esmagadora. Finalmente, há que dizer que a Venezuela pode ser tudo, menos uma ditadura que cerceia a liberdade de imprensa.
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Comerciante, São Paulo, SP; http://edu.guim.blog.uol.com.br