A terceira semana de novembro caracterizou-se por um espaço notável na mídia dedicado aos negros brasileiros. Notável ainda é o fato de que, a rigor, não havia propriamente ‘acontecimento’, pelos critérios habitualmente adotados pela prática jornalística, que implicam singularidade, acidentalidade e improbabilidade. Inexistia qualquer ruptura no fluxo normalizado das ocorrências. Claro, pode-se pensar no feriado de Zumbi dos Palmares, ‘Dia da Consciência Negra’, mas isso já data de alguns anos e sem a mesma repercussão midiática.
A primeira conclusão se tirar é de que a ‘questão do negro’ – o problema da inserção mais favorável de pretos e pardos na sociedade global dos indivíduos de pele clara – ganhou foros de questão pública amplamente reconhecida; portanto, adquiriu estatuto teórico de fato social. Evidência incontornável desse fato são os resultados do segundo estudo sobre as desigualdades de cor e raça, divulgados pelo IBGE (Folha de S.Paulo, 18/11), segundo os quais a diferença na renda de pretos e pardos em relação aos brancos cresce na razão direta do aumento da escolaridade dos trabalhadores. Ao lado disso, na média nacional, o branco ganha o dobro (96%) do salário da gente de pele escura.
Não é o caso de ficar repetindo aqui dados já publicados na grande imprensa. A Folha foi muito mais extensiva do que O Globo a respeito, mas ambos os jornais deram destaque ao assunto, que chegou mesmo a ganhar manchetes. Mas não há como deixar de sublinhar certos aspectos que integram, às vezes sem o devido realce, os textos das matérias.
Um deles, originário da gerência da PME (Pesquisa Mensal de Emprego, uma das bases para o estudo do IBGE), é a afirmativa de que uma parte da diferença salarial entre esses grupos se explica pelo próprio processo histórico de exclusão da população negra. Um outro detém-se na escolaridade como principal fator a diferenciar o rendimento do trabalho: só 8,2% dos pretos e pardos com mais de 18 anos ao menos freqüentaram a universidade (entre os brancos, o percentual é de 25,5%).
Fora da esfera do trabalho, entretanto, a mais recente Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) do IBGE é alentadora: o percentual de brasileiros que se declaram pretos ou pardos no ensino superior, na última década, subiu de 18% para 30%.
Situação desigual
Uma pesquisa desse porte contém material não só para várias edições de jornal, mas também para alimentar estudos e debates, seja no mundo acadêmico, seja junto aos ditos representantes do povo no Congresso. Ao mesmo tempo, tudo isso pode ser altamente surpreendente para o leitor comum, em especial aquele habituado à grande imprensa carioca. É que, desde o aparecimento da questão das cotas para negros nas universidades, constituiu-se um tipo de grupo intelectual (tanto no meio jornalístico – o colunista Elio Gaspari é uma exceção marcante – quanto no acadêmico) incisivo na negação do óbvio, a diferença racial na sociedade brasileira.
Investindo contra tudo que lhes pareça uma tentativa de ‘racializar’ o país, reiteram: não existe raça, ninguém pode determinar quem é branco ou quem é negro no Brasil. O primeiro argumento, o da inexistência de raças humanas, é uma verdade biologicamente comprovada e antropologicamente reafirmada há mais de meio século.
O segundo argumento é problemático, senão falso, porque, embora não haja raças, existe a ‘relação racial’, ou seja, o imaginário da raça com a sua histórica exaltação da supremacia do paradigma branco e as conseqüentes discriminações das diferenças, atravessando sempre a situação e a posição de classe dos cidadãos.
Mesmo pobre, logo inserido numa situação de classe socialmente desigual, o indivíduo de cor clara pode sentir-se em posição de classe superior frente ao preto/pardo, que nasce com a cor da pele como desvantagem ‘patrimonial’ numa sociedade que ainda guarda visceralmente os esquemas mentais da escravatura.
Indício forte
A pesquisa do IBGE é, em si mesma, sem grande esforço interpretativo, um claro argumento no sentido que a ‘relação racial’ é uma questão das mais sérias para o equilíbrio da cidadania brasileira. Ela nos ensina sem subterfúgios, primeiro, que a realidade social sabe perfeitamente fazer a diferença entre branco e negro (ou entre claro e escuro, para quem preferir outra terminologia), mostrando a quem quiser ver o quanto as aparências estéticas podem integrar a lógica da dominação.
Segundo, evidencia que as políticas de ação afirmativa de base ‘racial’ vêm revelando um grande potencial para incluir nas universidades, tornando-os politicamente visíveis, estratos populacionais estruturalmente à margem da cena pública.
Terceiro, surpreende (mas apenas os desavisados) com a informação de que as dificuldades de ascensão podem crescer com o aumento da escolaridade. Este último item é indício forte de que toda a argumentação político-sociológica que remete às condições de classe social deixa de fora os resíduos de um velho mal-estar civilizatório chamado racismo.
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Jornalista, escritor, professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro