Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A imprensa e o terror. Onde a inocência?

Não há nada mais perigoso para a análise do que os reducionismos – e o jornalismo diário é feito deles. Quando a violência urbana é tratada como mera questão operacional a ser resolvida por logística militar e modernização de equipamentos dos aparatos repressivos, estamos cedendo espaço a uma lógica autoritária que ignora a cidadania como conceito de mão dupla. Uma simplificação que costuma cobrar preço alto. Uma pitada de espetáculo e uma cobertura direcionada reiteram um déjà-vu que impossibilita qualquer abertura efetiva de discussão.

Debitar o terror vivido pela população carioca, ou de qualquer outro centro urbano, à ausência de uma legislação penal mais rigorosa ou a dinâmicas recorrentes em momentos de mudança de comando na área de segurança é a saída de especialistas de ocasião e plantonistas acadêmicos. Entregam-se à urgência do tempo jornalístico esquecendo-se de um aspecto central do problema. A tragédia da segurança pública é a tragédia de um Estado que, por nunca ter sido plenamente democrático e de direito, falhou no combate ao crime na mesma medida em que foi incapaz de implementar políticas públicas de inclusão. E disso a imprensa não quer, ou talvez não possa, saber. Sua história não admite dissonâncias com a visão de mundo do leitor de classe média. E os intelectuais orgânicos da mídia não ignoram esse ponto.

A anomia, ao contrário do que muitos propalam, não é expressão de incompetência, mas o desfecho esperado de ordenamentos jurídico-políticos moldados para excluir, como sujeitos de direitos, a maior parte da população brasileira. Querer que colunistas tratem disso é algo próximo a refundar os pressupostos do jornalismo brasileiro.

Ecossistema disfuncional

No Rio de Janeiro, ônibus queimados e ataques a alvos policiais revelam mais que o esfacelamento do poder público. Demonstram o que dele resulta quando uma administração é usada como anteparo político-financeiro para as pretensões presidenciais do marido da governadora. Nada que o velho patrimonialismo brasileiro desconheça.

A estrutura de segurança, configurada para atender a interesses de policiais bandidos, também não prima pelo ineditismo. Obedece ao antigo loteamento político no qual delegacias e batalhões da PM são feudos de aliados e base da clientela.

Até onde isso condiciona a cobertura policial? Como esse dado conforma a percepção do repórter que atua na área? Não faltam exemplos de introjeção da lógica policial por parte de profissionais de imprensa. São questões substantivas demais para as ambições desse artigo, mas não podem ser olvidadas.

A integração das forças de combate ao crime no estado do Rio de Janeiro é uma necessidade inquestionável. O auxílio da Força Nacional de Segurança e o planejamento de ação conjunta dos governadores do Sudeste também são importantes. Mas, pelo recorte classista, a imprensa ignora a parcialidade das propostas. Se não forem implementadas políticas públicas que contemplem os que nunca foram atendidos pelo Estado em suas demandas por saúde, educação, saneamento e justiça, estaremos dando eco ao arrazoado direitista que preconiza a ação repressiva como panacéia universal.

E não é isso que, diariamente, é reiterado no Estado de S.Paulo, Folha de S.Paulo, O Globo, Jornal do Brasil e outros veículos de grande porte? Se atentarmos para os jornais que têm como público-alvo a população de baixa renda, a linguagem adquire tonalidades bem mais fortes. O extermínio é apresentado como solução de reequilíbrio de um ecossistema desde sempre disfuncional. É o que podemos chamar de darwinismo enviesado das publicações de leitura rápida.

Versos de Drummond

Ampliar a presença de defensoria pública e implementar política nacional para menores infratores, sem cair na armadilha da redução da idade penal, são pontos cruciais para uma agenda exitosa. Nada mais oposto ao agenciamento de valores e às construções simbólicas operadas pela mídia.

Se quisermos, de fato, encarar a questão da segurança deveremos focá-la em sua dimensão mais ampla. Para além do varejo, a violência urbana é o conjunto de ações que vai da compra de armas à lavagem de dinheiro. Da infiltração nos poderes republicanos às oscilações do índice Bovespa. Da corrupção policial aos lobistas que financiam seus representantes.

No centro de tudo reside uma questão central: haverá, na sociedade dos ‘cidadão-contribuintes’, vontade política de enfrentar o problema com a radicalidade que ele exige? Estamos em situação-limite onde a lógica rentista não comporta inocentes. Sejam eles pequenos aplicadores, sejam eventuais usuários de drogas. Em que editoria cairá o desavisado leitor tão assustado quanto indiferente?

A solução está em milícias clandestinas que, sob aplausos dos ‘inocentes do Leblon’, contam com apoio das forças de segurança para extorquir, torturar e matar as vítimas de sempre? Quando o prefeito César Maia afirma que ‘os núcleos paramilitares devem ser combatidos não diretamente, mas indiretamente, com a repressão ampla, geral e irrestrita ao tráfico de drogas’, que imaginário norteia a subversão completa da ordem pública?

Estamos falando de um protofascismo atávico que coloniza, há muito tempo, o imaginário de expressivos segmentos da classe média. Por que não questionar, em alentado editorial, se uma autoridade municipal, a pretexto de combater, não estará fazendo apologia do crime? Ou será que, de tão familiar, já não notamos intenções e gestos? Com a palavra editores, articulistas e leitores.

São célebres os versos em que Drummond afirma que os inocentes do Leblon ‘não viram o navio entrar, tudo ignoram, mas a areia é quente e há um óleo suave que eles passam nas costas, e esquecem’. Talvez, fora da licença poética, a embarcação dê lugar ‘ao bonde’ e não seja o óleo a substância a produzir esquecimento. Melhor passar batido rumo ao segundo caderno.

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Professor-titular de sociologia das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha)