A França é um país racista? Um estrangeiro que vive na França faz freqüentemente esta pergunta ao ler com atenção a imprensa diária do país.
Os jornais e revistas franceses estão freqüentemente se questionando, em reportagens de grande impacto, se a França é um país anti-semita. Acabam concluindo que não, o que pode ser comprovado por qualquer observador isento.
Quando, um mês atrás, durante uma entrevista fiz essa pergunta ao cineasta israelense Eyal Sivan, co-autor com o palestino Michel Khleifi do documentário Route 181, ele me respondeu:
– Não, não existe na França uma legislação anti-semita. Há um fundo de anti-semitismo, como em muitos outros países, mas na França o que há de mais grave é um racismo contra árabes e negros que me parece muito mais banalizado do que o anti-semitismo ou que algumas violências contra judeus que vão para as primeiras páginas dos jornais e revistas franceses e internacionais há cerca de três anos.
A França seria então um país racista? Pessoalmente, constato a existência de um racismo que pode ser detectado por um observador atento em várias expressões usadas na imprensa. Uma delas é a expressão ‘français de souche’ para designar o francês, digamos assim, ‘puro sangue’ – mais ou menos equivalente ao ‘paulista quatrocentão’ para o nascido em São Paulo.
E quem seriam esses franceses a quem a imprensa denomina ‘de souche’? Seriam os descendentes dos gauleses, de Astérix e dos romanos, os brancos de religião cristã? Pode-se entender isso quando se lê nos jornais o comentário do presidente Jacques Chirac sobre o caso que ficou conhecido como o ‘affaire do RER’, da moça mitômana que denunciou um ataque anti-semita que só existiu na sua imaginação.
Numa fala à nação no último 14 de julho, a data nacional francesa, entrevistado por dois jornalistas o presidente francês reconheceu que esse era um ‘caso lamentável em todos os aspectos’. Mas disse que não lastimava tê-lo comentado e condenado. E acrescentou:
– Estamos numa época na qual incontestavelmente vemos, há algum tempo, manifestações de ordem racista, que envolvem nossos compatriotas judeus ou muçulmanos ou outros, em alguns lugares, às vezes simplesmente franceses, que são alvo de agressões pelo simples motivo de pertencerem a tal ou tal comunidade ou porque não pertencem a tal ou tal comunidade.
No mínimo estranha essa observação do presidente.
Lembrança conveniente
Christophe Deltombe, o advogado de Marie Leblanc, a jovem que inventou toda a história envolvendo agressores ‘árabes e negros’, declarou aos jornais:
– Essa jovem que vê televisão captou os sinais de uma patologia e tirou daí elementos de seu roteiro, dizendo-se agredida por ter sido tomada por uma judia com um bebê, com suásticas desenhadas na sua barriga. Mas Marie não está envolvida nessa histeria coletiva por acaso.
Num artigo em que comentava o assunto, o jornal Libération contava como ela justificara sua história, quando alguém lhe perguntou por que designara ‘agressores’ árabes:
– Porque quando vejo televisão são sempre eles os acusados.
Sem nenhuma emoção, ela pediu desculpas à SNCF, companhia estatal que administra o serviço de trens, e à polícia por ter mobilizado um grande número de policiais para um caso que nunca existiu. Marie não achou em momento algum que deveria pedir desculpas aos negros e árabes que foram mais uma vez estigmatizados. Ponto para Le Pen e a extrema direita francesa xenófoba e racista.
Será que a França quer realmente integrar os franceses de origem estrangeira – chamados de franceses ‘issus de l´immigration’, oriundos da imigração – quando são filhos de imigrantes árabes e negros (os chineses formam uma comunidade à parte)? Até quando a imprensa vai chamá-los de franceses ‘issus de l´immigration’? Quando serão considerados franceses como todos os outros?
Essa expressão usada na imprensa denota um profundo desprezo por sua origem. Quando se chamam Serge Reggiani, Yves Montand ou outros franceses de origem judaica que se tornam cientistas, artistas, personalidades políticas ou banqueiros, ninguém lembra que eles ou seus pais não nasceram em solo francês. Lembrar que alguém é ‘oriundo da imigração’ não é uma forma de mostrar um desprezo apenas dissimulado por franceses que são originários de uma cultura diferente da cultura judaico-cristã?
Origem racial
Quando as crianças dos trabalhadores marroquinos, argelinos ou tunisianos serão reconhecidos pela imprensa como franceses, sem que seja preciso mencionar sua origem? ‘Estamos atualmente numa situação em que a integração [dos estrangeiros] caminha bem’, disse o presidente Chirac naquela entrevista do 14 de julho. Por que ela caminha bem agora e por que antes não caminhava?
Talvez seja um bom sinal que o francês preferido dos franceses, segundo pesquisa recente do Journal du Dimanche, seja um francês filho de pai e mãe nascidos num país muçulmano – o jogador de futebol Zidane –, que deu à França mais glórias e alegrias no futebol que qualquer outro francês ‘de souche’.
Os franceses têm orgulho de Zidane mesmo sendo ele ‘oriundo da imigração’. Quando a imprensa fala de Zinédine Zidane não acha necessário lembrar que ele nasceu na França de pais oriundos de um país ligado ao passado colonial, a Argélia.
Quanto às crianças negras dos bairros pobres de Paris e do subúrbio, os jornais as tratam como ‘des petits africains’. Mas a mesma imprensa francesa não designa como ‘africain’ alguém como o grande jogador da seleção Marcel Dessailly, considerado como um francês e não como um ‘africano’ em qualquer país do mundo. Da mesma forma, seria completamente ridículo designar como ‘africano’ num artigo da imprensa americana atletas como Magic Johnson ou Michael Jordan. Será que é preciso sair do anonimado para que a imprensa francesa deixe de mencionar que alguém é ‘africain’, isto é, negro?
Quando quiserem lembrar que seus personagens pertencem à raça negra sem citar o adjetivo que designa a cor da pele, por que os jornalistas franceses ainda não criaram a expressão afro-français, imitando o termo afro-american? Dessa forma, a imprensa resolveria o problema de lembrar a origem racial – já que acha isso importante – sem deixar de reiterar a cidadania de pessoas 100% francesas, pois têm direito a carteira de identidade e passaporte franceses.