Os incidentes que opuseram a Folha e O Globo e, de outra parte, ministros do Supremo Tribunal Federal, vão além das divergências em torno da publicação de diálogos e conceitos embaraçosos de ministros, sobre o julgamento do chamado mensalão. Não só ficaram mais conhecidos os ministros e os cenários internos dos julgamentos, sempre tão obscuros para a opinião pública, mas ainda emergiu alguma discussão sobre a imprensa e sua função, tão pouco examinadas e debatidas.
A confessada mágoa do ministro Eros Grau projetou-se, dos ministros que lhe presumiam os votos (e erraram), para o jornalismo que fotografou e publicou os emails que o citavam.
A imprensa recebeu parte de sua forte reação, lida no tribunal. Disse, a partir da afirmação de sua independência: ‘A sociedade e mesmo a imprensa não o sabem, mas o magistrado independente é autêntico defensor de ambos’.
A imprensa, além de saber, tem necessidade vital do magistrado independente. Nem mesmo as redações se dão conta dos malabarismos feitos a cada dia, já quase automaticamente, mas nem por isso sem tensões desgastantes, para superar riscos legais e éticos, de teor ou de forma, a muito do que deve publicar. (Jornalistas estão, em quase todo o mundo, entre as duas ou três comunidades profissionais mais atingidas por males cardíacos, inclusive como causa de morte).
Embora mais importante, o momento seguinte de Eros Grau passou despercebido. Mal começáramos a descansar do ‘estilo’ Sepúlveda Pertence, tão enrolado que chega a dar nó em frase, Eros Grau executou um salto triplo sem rede, e a moçada das redações nem pôde entender: ‘É mercê da prudência do magistrado independente que não resultam tecidas plenamente, por elas mesmas, as cordas que as enforcarão, as elites e a própria imprensa’. O ministro faz um aviso gravíssimo. Trazido para a linguagem pobre deste recanto, comunica-nos, em tom definitivo, que a imprensa e as elites serão eliminadas por forças que, se ainda não se entrosaram de todo para o seu fim, é graças só aos magistrados independentes.
De certo ponto de vista que não o da imprensa, foi providencial a distração das redações, porque tal advertência por um ministro do Supremo merecia tratamento jornalístico à altura – e lá viria mais incidente. Nada de contrapartida ou equivalência para a opinião do ministro Gilmar Mendes: ‘Todos os dias julgamos questões sensíveis do ponto de vista político, e não estamos preocupados com a opinião dos senhores’. Senhores, no caso, são os jornalistas.
Há quem veja aí um desprezo insultuoso e uma vazão de soberba. Ainda que a contragosto, no entanto, a despreocupação dos ministros dá ou daria ao jornalismo o que a ele mais convém. O poder, seja qual for a sua forma nas instituições, não é destinação do jornalismo, é objeto dele, é assunto. É para ser ouvido, fotografado, gravado, investigado, esmiuçado -e desvendado para que no conjunto social se formem a consciência de cidadania e suas manifestações.
Em um caso, ao menos um, a situação se complica entre a ausência total e o excesso de preocupação. O ministro Ricardo Lewandowski que anda por um restaurante a falar, tanto ao telefone como aos ouvidos circundantes, sobre intimidades do Supremo, é o mesmo a dizer que ‘todo mundo [no Supremo] votou com a faca no pescoço’. Que faca? A imprensa que ‘acuou o Supremo’.
Indagado, depois, sobre a faca, Ricardo Lewandowski disse: ‘Falei com relação a mim’. Não, falou em ‘todo mundo’, por diferentes maneiras, e não se justifica negá-lo. Indagado sobre a afirmação, ao telefone e aos ouvidos dos circunstantes, de que no Supremo ‘a tendência era amaciar para o Dirceu’, disse: ‘Primeiro, eu não sei se usei a palavra amaciar’. Note-se: não negou o sentido da frase, apenas ressalvou a palavra. Não faria diferença, portanto, se a palavra fosse abrandar, ou atenuar, ou relevar, por exemplo. Onde entra a imprensa?
A exposição extraordinariamente nervosa do seu voto fundamental sobre José Dirceu foi, logo se veria, o contrapeso único na resultado de 9 a 1 contra o denunciado. Pareceria até uma confirmação preventiva da denúncia de amaciamento, solitário embora. Logo, o ministro Ricardo Lewandowski fica a dever uma contribuição ao debate, tão necessário e apenas insinuado, sobre a função da imprensa. Deve o esclarecimento de pelo menos duas afirmações: ‘O que eu senti é que o Supremo foi submetido a uma pressão violentíssima da mídia / As pessoas [do Supremo] estavam extraordinariamente submetidas à mídia’.
A ocasião é boa para dizermos, todos, onde e como ‘a culpa é da imprensa’. Ou, como prefiro, quando e como a imprensa é jornalismo ou não é.
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Jornalista