Quando uma pessoa de notoriedade recorre aos tribunais para queixar-se, sob qualquer forma, do modo como sua intimidade tem sido revelada a público pelos órgãos de imprensa, nascem ao jurista e ao jornalista questões relevantes, muito próximas. O primeiro questiona-se como o Direito, por assim dizer a Lei, pode equalizar a liberdade de imprensa, ao mesmo tempo em que protege o direito à privacidade; o segundo questiona se uma pessoa que é, antes de tudo, fonte de notícia, por sua própria posição ou papel na sociedade, tem direito de queixar-se por recortes de sua vida privada serem lançados a conhecimento amplo.
Foi o que ocorreu no caso Carolina de Mônaco, na Corte Européia de Direitos Humanos (caso von Hannover vs. Germany). Em decisão publicada em junho deste ano, a Corte de Estrasburgo, condenando as decisões do Estado alemão, fez prevalecer direito de indenização à princesa por fotografias tiradas e publicadas, nos anos 1990, pela imprensa germânica (Bunte, Fereizeit Revue e Neue Post).
A Corte observou o artigo 8º da Convenção Européia de Direitos Humanos, que cuida do direito à vida privada, bem como as circunstâncias específicas do caso, a exemplo da falta de interesse público das fotografias e o fato de haverem sido tiradas sem seu consentimento. [‘The Court considered that the decisive factor in balancing the protection of private life against freedom of expression should lie in the contribution that the published photographs and articles made to a debate of general interest. In the case before it, the photographs showed Caroline von Hannover in scenes from her daily life, and thus engaged in activities of a purely private nature. The Court noted in that connection the circumstances in which the photographs had been taken: without the applicant’s knowledge or consent and, in some instances, in secret. It was clear that they made no contribution to a debate of public interest, since the applicant exercised no official function and the photographs and articles related exclusively to details of her private life.’ (Trecho do summary desse julgado. Os julgamentos da Corte Européia de Direitos Humanos podem ser acessados no site www.echr.coe.int]
No caso do Brasil, ambos os direitos convivem na Constituição. A intimidade é garantida no seu art. 5º, inc. X, bem como renasce expressa no art. 21 do atual Código Civil, de Miguel Reale. A liberdade de imprensa aparece no art. 220 do texto constitucional, e vem como corolário inequívoco das liberdades de pensamento, expressão e informação.
Como direitos ali escritos – claro – têm de ser garantidos. Mas quando um juiz encontra-se diante de um caso concreto que envolva essas liberdades e os direitos individuais, fica-lhe impossível negar que ambos se contrapõem. E essa contraposição, como se vê no caso Carolina de Mônaco – pode trazer um conflito lógico, pois, ao fim e ao cabo, ambos são direitos constitucionais que não comportariam restrição, de modo que uma conciliação, em forma de equilíbrio, que exigisse sacrifício de um ou de outro direito, seria inconstitucional. E, quando alguém procura o Poder Judiciário, por óbvio não aceita transigir, mitigar seu próprio direito, caso em que, em lugar de a um juiz, buscaria a um árbitro, para chegar a um acordo vantajoso.
O aplicador da lei, o juiz, tem de encontrar solução para conflito que se instaure diante dele, pois é proibido por lei de finalizar a uma lide dizendo que ela não tem previsão legal (vide art. 5º, XXXV, da Constituição). Tem de resolvê-la, mesmo que para tanto busque argumentos que não estão escritos na própria lei, de acordo com as peculiaridades do caso concreto. E assim uma decisão que deve concretizar o direito de cada um, em tese sem concessões, encontra sua justa medida.
O direito sem solução matemática
Se é permitido o escorço histórico, lembra-se que, depois da Idade Média, o Iluminismo passou a colocar o conhecimento científico como objetivo principal do pensamento humano. O amor pela ciência e pelas explicações racionais dos fenômenos naturais refletiu-se em toda a cultura, mas talvez um exagero dessa posição tenha sido em certa medida prejudicial para o conhecimento humanístico, em especial o Direito. E tal pensamento refrata-se em nossa análise.
O gosto pelo conhecimento científico ressaltou a lógica cartesiana, o transportar para as ciências humanas a lógica matemática. Paralelamente, Darwin demonstrou a origem da raça humana e sua evolução, enquanto Freud propôs que os problemas psíquicos poderiam ser diagnosticados em análise empírica, a fé foi perdendo seu posto e a tecnologia foi colocada ao máximo ao serviço da produção, sem muito questionar-se a respeito das conseqüências desse dito progresso. No direito, a lógica formal transformou o ordenamento jurídico em um conjunto de proposições de validade, de proposições binárias de certo/errado, no denominado positivismo, que teve como expoente, dentre outros, o gênio de Hans Kelsen.
Naquele pensamento exato, positivista, se dois direitos se contrapusessem estar-se-ia diante de uma antinomia, devendo um deles prevalecer por um mero processo de eliminação lógica. Conceitos como eqüidade e justiça pertenciam, apenas, à política e não à ciência do direito.
E então o mundo encontrou o auge do pensamento positivista: afastado do humanismo, permitiu-se que Hitler afirmasse que, se o caminho era sempre a evolução, uma raça mais evoluída deveria prevalecer em relação a outras, o que nada mais é que a aplicação radical do pensamento empírico e positivo. Foi no terror da guerra que o ser humano vivenciou o que significava a tecnologia sem limites, sem ética, quando os maiores feitos da engenharia não serviam mais do que para matar gente.
Como interpretação jurídica, viu-se muito mais: o Reich demonstrou que um estado perfeitamente legal poderia ser extremamente injusto. Sob o ponto de vista jurídico, positivista, o Führer agia de forma absolutamente legítima: era eleito, tinha uma Constituição válida, a cujos princípios seu plano de expansão atendia plenamente. Perfeitamente jurídico.
O pós-guerra, como conseqüência lógica, trouxe uma revisão do pensamento positivista. Conceitos mais abertos, como justiça e eqüidade, antes meros juízos de valor, passaram a fazer parte do discurso jurídico, científico. As constituintes modernas, como a nossa última, vieram a escrever seus grandes princípios, dentre eles a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, Constituição Federal de 1988), ao lado das grandes liberdades, de que aqui tratamos. Um feito extremo para a História.
Mas em todo esse processo, por óbvio, há um preço a pagar. A inscrição desses direitos e liberdades no texto constitucional impõe que o legislador não os interprete como um código binário de computador: onde está um não pode estar o outro.
Por isso, alguns juristas interpretam que convivemos, na Constituição, com a diferença entre direitos e princípios. Os princípios, como as liberdades, podem, em um caso concreto, entrar em conflito uns com os outros. Ao contrário do que ocorre com os direitos, quando os princípios se chocam não existe antinomia, ou seja, um deles não deve ser eliminado por um processo de interpretação silogística. Pode-se conciliá-los, com a mitigação em maior ou menor grau de um ou de outro, de acordo com as circunstâncias do caso.
Por isso, quando os advogados colocam diante do juiz um conflito entre intimidade e liberdade de imprensa, este, vendo-os a ambos na Constituição, não pode eliminar qualquer deles. Mas pode decidir por fazer prevalecer a um ou a outro, de acordo com as circunstâncias. O único limite para sua decisão são seus fundamentos, ou seja, sua decisão somente deixará de ser válida quando for desarrazoada (art. 93, IX, da Constituição).
Uma decisão judicial que mitigue (e não suprima) a liberdade de imprensa em nome de um direito da personalidade não é, em si, inconstitucional.
Um pouco sobre intimidade
Quem lê 1984, de Orwell, vê um grande tributo à intimidade. Na sociedade moderna, essa necessidade do homem de entrincheirar-se, para ter o momento de preparação para sua atividade pública, foi em grande medida desrespeitada, pela avalanche dos meios de comunicação, pelo modo de captação constante de imagens e de sons, pela facilidade de interceptação das comunicações privadas. Todavia foi, como lembra Faria Cosa, ‘como se sabe, este tipo de sociedade que, aparentemente de modo paradoxal, fez com que a privacidade se alçapremasse a bem ou valor, desde logo com expressa dignidade constitucional’ [Costa, José Francisco de Faria, Direito penal da Comunicação: alguns escritos, Lisboa, Coimbra Editora, 1998 p. 159].
Valor que aparece somente na Constituição última, mas que já era clamor dos próprios profissionais de imprensa, como expunha Barbosa Lima Sobrinho, em 1980: ‘Jacques Bourquin, no seu livro excelente, separa os abusos em diversas categorias, através dos limites que os procuram evitar ou corrigir: a) limites ratione personae, incluindo o segredo à vida privada, as ofensas à consideração e à honra e a ofensa ao crédito.’ [Lima Sobrinho, Barbosa, Direito de Informação, VIII Conferência Nacional da Ordem dos Advogados do Brasil, Manaus, 1980 – Tese 04, p. 32]
A intimidade e a privacidade são também fruto da dignidade da pessoa humana, como extração do direito da personalidade, tal qual a honra. Esta, entretanto, não se confunde com aquelas, pois ‘puede ocurrir que una información verdadera y no injuriosa resulte atentatoria contra la intimidad de una persona, aunque no lesione su honor’. [CARMONA SALGADO, Concepción, Delitos contra los derechos de la personalidad: honor, intimidad e imagen, Cuadernos de Política Criminal, 1995, n. 56, Madrid, Edersa p. 417]
Para os profissionais da imprensa e do direito, essa observação nos parece muito relevante: em nossa nova legislação, a violação a intimidade pode ser reprimida ou compensada ainda que com ela não se ofenda a honra, pois já aparece como direito autônomo. Assim, uma notícia que divulgue momentos de intimidade de uma pessoa-notícia, sem sua autorização, ainda que não sejam desonrosos, podem ser objeto pedido de reparação de danos.
Foi o que ocorreu em Estrasburgo.
Conclusão
Seríamos contraditórios se apresentássemos como conclusão que qualquer violação de intimidade pela imprensa deva ser levada aos Tribunais. Outras circunstâncias devem ser levadas em consideração, como o fato de que ‘a pessoa que se oferta à opinião pública tem sua privacidade constrangida pelo excesso de exposição que sua relevância no meio social impõe’, e nesse contexto a notoriedade do noticiado, ao lado da liberdade de imprensa, também comprimem um direito absoluto à intimidade, como um contrapeso. Mas isso é assunto para um outro estudo.
Fato é que, em nosso momento histórico, a intimidade é um direito constitucional que merece atenção do jornalista, com redobrado cuidado, em sua aplicação, pelo juiz, face aos demais princípios que podem ser sacrificados, caso se pretenda conceder-lhe validade absoluta. O julgamento do caso von Hannover vs. Alemanha, que foi alvo de críticas, parece encontrar razão em alguns fundamentos e na aplicabilidade do direito à intimidade, que aparece na Convenção Européia dos Direitos Humanos, como também vem garantido em nossa Constituição.
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Advogado especializado em direito de imprensa, mestre e doutorando em Direito Penal pela USP e autor do livro Responsabilidade Penal na Lei de Imprensa: Responsabilidade penal sucessiva e Direito Penal Moderno e da novela A Hora do Carvoeiro: História de um amor pelo crime, dentre outros; e-mail (victor@btadv.com.br)