“Conflito entre canibais e antropófagos.” Com este impagável veredicto sobre o embate entre manifestantes e policiais na quinta-feira (13/6) em São Paulo, o veterano jornalista Elio Gaspari atalhou a habitual lengalenga que acompanha o noticiário sobre a repressão aos protestos de rua (ver “A PM começou a batalha na Maria Antônia“).
As partes estavam dispostas a tudo e não perderam tempo para exibir a sua disposição. Foram igualmente insanas e irresponsáveis. Sobrou para os repórteres que, como Gaspari, lá foram para testemunhar e registrar o que acontecia – sete profissionais da Folha de S.Paulo foram atingidos por balas de borracha disparadas pela PM, dois deles no rosto.
A refrega era previsível e não apenas porque foi o quarto episódio numa série iniciada há dez dias e ameaça irradiar-se pelo país, mas porque há uma tensão mundial que encurta drasticamente os pavios e favorece as explosões de fúria. No Brasil o pretexto está sendo o aumento das tarifas dos transportes urbanos, em Istambul é a destruição de uma das últimas áreas verdes da cidade. Nos dois casos, uma visível impaciência que estrategistas e marqueteiros teimam em ignorar.
Fazer as contas
A questão vai além das divergências sobre o limite de tolerância dos regimes democráticos com as manifestações populares. A fórmula de ir a rua para chamar a atenção por meio do incômodo ou da truculência exibe sinais de fadiga. As ruas mudaram, as cidades mudaram, a forma de despertá-las mudará obrigatoriamente.
Filhas da segunda metade do século passado, as exibições políticas de massa tiveram o seu momento estelar em Paris, maio de 1968. Esta primavera libertária chegou ao Oriente Médio com 45 anos de atraso, foi razoavelmente bem-sucedida no Egito, mas na Síria as ruas converteram-se em campos de batalha onde quase 100 mil vidas já foram sacrificadas sem qualquer indício de desfecho à vista.
O repertório de ações políticas não-violentas (de certa forma criado pelo pacifista indiano Mahatma Gandhi) cresceu exponencialmente com a entrada em cena da comunicação digital. O espaço público está de tal maneira congestionado e tumultuado que foi obrigado a alçar voo e aninhar-se no ciberespaço. A solidariedade e a persuasão tornaram-se mais acessíveis, ganharam novos estímulos e oportunidades, a mobilização para o dissenso e a não-cooperação se tornou fácil. São mais eficazes do que os antiquados coquetéis Molotov que na Segunda Guerra Mundial inutilizavam os tanques, mas hoje são incapazes de ganhar eleições.
A ira está solta. Com o quinto protesto marcado para a segunda-feira (17/6) pouco adianta distinguir os canibais dos antropófagos. As tarifas de transporte foram aumentadas por conta da inflação. E a inflação não se enfrenta na rua, mas fazendo contas – nos gabinetes, nos plenários dos legislativos. Ou nas urnas.
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