Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

A Justiça avacalhada

 

Comentários de autoridades e outras figuras públicas na rede social da internet são sempre uma atitude temerária. São muitos os casos de celebridades que caem em desgraça ou se deslocam para baixo na lista das pessoas mais admiradas por conta de manifestações infelizes, atos falhos e declarações impensadas que revelam convicções que não convém andar espalhando por aí.

Na edição de terça-feira (6/3), a Folha de S.Paulo publica comentário postado na rede de relacionamentos Facebook pelo juiz paraense Amilcar Bezerra Guimarães que merece uma observação mais atenta.

Guimarães vem a ser conhecido da imprensa nacional pelo fato de haver condenado o jornalista Lúcio Flávio Pinto a pagar indenização de R$ 8 mil por danos morais a familiares do falecido empreiteiro Cecílio do Rego Almeida.

Lúcio Flávio havia chamado Almeida de “pirata fundiário”, em comentário sobre a apropriação, pelo empresário, de 4,7 milhões de hectares de terras públicas na Amazônia.

A Justiça já havia concluído que os documentos do empreiteiro eram ilegais, determinando a devolução das terras, ou seja, a denúncia de Lúcio Flávio se revelava correta e fundamentada, quando o juiz Amílcar Guimarães, em apenas um dia como juiz substituto e com atraso, entregou ao cartório judicial sua decisão num processo de 400 páginas, condenando o jornalista.

O jornalista recorreu da decisão, mas foi derrotado em segunda instância.

O caso extrapolou para além das redes de comentários entre jornalistas e integrantes da magistratura do Pará quando Lúcio Flávio, afirmando não ter condições de arcar com novo recurso, desistiu de apelar contra a decisão da Justiça paraense. Seu caso ganhou repercussão nacional a partir de um movimento nas redes sociais intitulado “Somos todos Lúcio Flávio”, que chegou a ser reproduzido no exterior.

Na segunda-feira (5/3), o juiz Amilcar Guimarães, que mantinha silêncio sobre o assunto, resolveu postar na rede de relacionamentos online o que pensa sobre a questão (ver aqui). E o que o magistrado convenciona chamar de Justiça mostra a quantas anda o Judiciário.

Entre outras coisas, o magistrado se solidariza com o empresário do grupo de comunicações Maiorana, dominante no Pará, que há alguns anos agrediu o jornalista num restaurante, por conta de denúncias publicadas no Jornal Pessoal, e termina pedindo a Lúcio Flávio que o acuse diante do Conselho Nacional de Justiça, para “ganhar” a aposentadoria compulsória.

Isso é o que se chama avacalhação.

Aposentadoria é o prêmio

As declarações do juiz são tão espantosas que os editores da Folha de S.Paulo chegaram a imaginar a possibilidade de se tratar de um perfil falso criado no Facebook. Mas o juiz, entrevistado pelo jornal paulista, confirmou a autoria das mensagens e se queixou de estar sendo “satanizado” pelo jornalista.

Questionado sobre a decisão de condenar Lúcio Flávio e da impossibilidade de haver estudado todo o processo em menos de um dia, ele confessou que tomou a decisão sem ler todos os autos. “O que é que o juiz precisa além de ler a reportagem?”, perguntou, referindo-se ao texto que havia suscitado o processo por danos morais contra o jornalista.

Ao declarar que gostaria de ser denunciado ao CNJ, o magistrado afirma que a aposentadoria compulsória “não seria uma punição, seria um prêmio”. A Folha consultou a direção do Tribunal de Justiça do Pará e ouviu que as declarações do juiz são consideradas “de caráter pessoal”, e por isso não haveria comentários oficiais a respeito.

A não ser que o próprio Conselho Nacional de Justiça se interesse pela questão, vai ser assim mesmo: o corporativismo continua imperando, dominado pelos setores mais reacionários da Justiça, que segue na direção contrária à da evolução da sociedade.

Lúcio Flávio é um desses protagonistas solitários da imprensa regional, que se tornou conhecido nas duas últimas décadas por suas reportagens denunciando o desmatamento da Amazônia e as alianças entre os poderosos locais, entre os quais costuma alinhar os controladores do grupo O Liberal, que, entre jornais e emissoras, domina as comunicações no Pará.

Por conta de suas atividades jornalísticas, sofreu mais de trinta processos, e o caso julgado pelo juiz Amílcar Guimarães, além de puni-lo com uma multa que ele afirma não poder pagar, retira sua condição de réu primário, tornando-o absolutamente vulnerável à ação de seus desafetos.

Mais do que a absurda decisão judicial que condena por danos morais um jornalista por haver publicado informação que a própria Justiça veio a confirmar, chama atenção o deboche do magistrado sobre a própria Magistratura.

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