Não há contorcionismo retórico que seja capaz de desmentir o fato de que o Equador já possui predicados de uma ditadura. Os sinais de deterioração da democracia são evidentes em toda parte – à maneira chavista, o presidente Rafael Correa controla o Legislativo e o Judiciário e pretende se perpetuar no poder, enquanto sufoca a imprensa que ainda ousa ser independente. Há dois anos, no afã de controlar a opinião dos equatorianos e evitar fissuras no pensamento único, Correa fez aprovar uma lei que – sonhada por outros falsos democratas que infestam a América Latina – “regula o exercício do direito à comunicação” e pune o “linchamento midiático” de autoridades. Em dois episódios recentes, que expõem o caráter grotesco da lei, ficou claro o espírito autoritário que a move.
Um desses casos envolve o jornal La Hora, o terceiro maior do Equador e um dos mais críticos do governo. Há três meses, o diário decidiu não registrar o evento em que o prefeito do município de Loja, José Bolívar Castillo, fez sua prestação anual de contas. Indignado, Castillo apelou à Superintendência de Informação e Comunicação (Supercom), responsável por fazer valer a truculenta lei de imprensa imposta por Correa.
A “base legal” da reclamação do prefeito é o artigo 18 dessa lei, segundo o qual “os meios de comunicação têm o dever de cobrir e de difundir os fatos de interesse público”. No caso de se constatar “a omissão deliberada e recorrente” desses fatos, ficará caracterizado o “ato de censura prévia” por parte do jornal infrator.
O problema, é claro, consiste em se definir o que é “fato de interesse público”. Embora se possam discutir, do ponto de vista técnico, os critérios dos veículos para decidir o que devem ou não publicar, uma coisa é certa: essa decisão não pode caber, de jeito nenhum, ao poder público. Mas é exatamente isso o que faz a lei equatoriana, que criou a esdrúxula situação em que qualquer autoridade pode exigir destaque jornalístico para seus atos em respeito a um suposto “interesse público”.
Cansado de ser multado em razão de suas escolhas editoriais, o jornal La Hora decidiu rebelar-se e declarou-se em “resistência” – situação prevista na Constituição do Equador para quem pretende questionar a aplicação de determinadas leis. O proprietário do diário, Francisco Vivanco, argumenta que seu jornal publicou várias notícias sobre a prefeitura de Loja, sempre que julgou necessário, e portanto não houve nenhuma omissão.
Mas a Superintendência de Informação e Comunicação, órgão oficial da censura, não pensa assim. “Em que cidade do mundo o relato anual sobre o trabalho de uma prefeitura não é informação de interesse geral?”, questionou o superintendente Carlos Ochoa. Fica claro, na indagação desse funcionário, que a expectativa do governo é que a imprensa sempre julgue ser de “interesse público” qualquer informação que ponha em relevo o trabalho das autoridades, isto é, que lhes sirva de mero palanque.
O outro caso em que a lei foi aplicada beira o cômico: um chargista do jornal El Universo teve de retificar um de seus desenhos, publicado em dezembro de 2013, por ordem das zelosas autoridades. O desenho era, como se pode imaginar, crítico ao governo. Ao vê-lo, Correa – que já rasgou jornais ao vivo na TV para expressar seu pouco apreço pela imprensa – declarou-se furioso com os que nutrem “ódio ao governo” e afirmou: “Os equatorianos devemos rechaçar as mentiras e os mentirosos, principalmente se esses mentirosos são covardes disfarçados de caricaturistas jocosos”. O chargista ainda corre o risco de ser preso em razão de seu trabalho.
O humor involuntário desse episódio, porém, apenas comprova que a Correa, como a qualquer ditador, falta o senso do ridículo. E é reflexo do ponto a que chegaram o Equador e os demais países ditos “bolivarianos” em sua cruzada insana contra a democracia, sob os olhares complacentes de vizinhos – entre eles o Brasil – que deveriam lutar, sem trégua, pela manutenção das liberdades políticas no continente.