Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A lógica binária da Rede Globo

Poucos argumentos podem ser tão pífios quanto aqueles forjados pela lógica binária, que geralmente é também autoritária e burra. Um desses é o famoso ‘dá-ou-desce’ utilizado em larga escala pelos executivos das empresas televisivas que operam concessões públicas: ‘Quem não estiver satisfeito, basta mudar de canal ou desligar a TV’, vociferam.


Esse argumento ganha ares fascistas na atual conjuntura brasileira – e não estou exagerando no adjetivo. Num contexto em que apenas sete emissoras ideologicamente afinadas falam o que querem e como querem para 190 milhões de pessoas, sem que exista um marco regulatório atualizado para o setor, sugerir que o sujeito flutue entre um e outro canal não difere muito da recomendação ‘ame-o ou deixe-o’ ostentada pela ditadura que seqüestrou, torturou e assassinou milhares de brasileiros.


Mas, até aí, nenhuma surpresa. O golpe civil-militar de 1964 foi disparado com apoio da CIA e a repressão nos anos seguintes contou com a inestimável ajuda da Rede Globo, sempre disposta a distorcer e omitir informações para agradar aos generais de plantão. Tanto que Roberto Marinho foi chamado de ‘revolucionário de primeira hora’ por ninguém menos que Armando Falcão, ministro da Justiça do regime de exceção. Em troca, as Organizações Globo receberam todo tipo de privilégio, sem o que não teriam acumulado a força política que têm hoje.


Por isso pode soar estranho que um diretor da Globo venha a público defender a democracia. Mas, na verdade, não há nada fora do lugar. Pelo menos para quem se lembra que o golpe foi dado em nome dela, como registrou a manchete do jornal O Globo de 1º de abril de 1964: ‘Fugiu Goulart e democracia está sendo restabelecida’.


Jornalismo faz-de-conta


Ou seja, é compreensível que o diretor da Globo fale em ‘defesa da democracia’ ao reclamar da crítica feita pelo Observatório da Imprensa às suas campanhas publicitárias relativas à portaria do Ministério da Justiça sobre a classificação indicativa na televisão aberta. A História conspira a seu favor. [Ver ‘Globo e SBT fazem campanha oblíqua‘]


O jornalismo democrata da TV Globo também se refere ao Iraque como um governo independente, mesmo que milhares de soldados estrangeiros ocupem o país. Nesse jornalismo faz-de-conta, se uma bomba explode e mata 50 pessoas, a culpa é da ‘nova onda de violência que tomou conta do país’. Jogam-se as mesmas imagens de agências internacionais – que também vão circular nas outras emissoras – e nenhuma menção à invasão. Nenhuma associação com os massacres cotidianos, com a pilhagem do país ou com o envio de mais tropas. Jamais o jornalismo da TV Globo utilizou o termo ‘terrorismo de Estado’ para caracterizar o genocídio promovido pelos EUA no Oriente Médio.


Imposição do fatalismo


Isso sem falar na duvidosa qualidade do restante da programação da Globo. O último levantamento da campanha ‘Quem financia a baixaria é contra a cidadania’, uma iniciativa da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, deixou as novelas Cobras e Lagartos e Páginas da Vida nas duas primeiras posições, sendo que as principais reclamações do público foram assunto impróprio, cenas de grande violência, palavras de baixo calão, nudez, falta de caráter, discriminação, várias cenas de sexo, apelo sexual, baixarias e obscenidades.


No plano da economia, o que vemos é a imposição de uma lógica fatalista, que pressupõe a existência de um único caminho possível. Essa cobertura afirma que se tais regras não forem seguidas à risca (redução de investimentos públicos, demissão em massa etc.), o país cairá em desgraça. Aqui, não há espaço para o contraditório; nem sequer para lembrar ao público que os países que mais têm crescido são os que decidiram romper com esse receituário neoliberal, como Argentina, Venezuela, Cuba e China.


Concessões de rádio e TV


De resto, o artigo publicado na quarta-feira (7/2) [ver ‘Central Globo de Comunicação defende modelo brasileiro de TV‘] parece mais preocupado em desqualificar o jornalista Mauro Malin do que qualquer outra coisa. Com isso, o diretor da Globo acabou confundindo as definições dos modelos de televisão aberta (revelando desconhecimento sobre o artigo 223 da Constituição de 1988), criticou as elites (!) e defendeu a cultura de massa e o ‘popular’ (!), além de contar a velha história de que a função da publicidade é apenas informar o público sobre aquilo que há de disponível no mercado.


Resta saber se essa publicidade pura, casta, que nunca tenta agir sobre os impulsos humanos, estimular desejos ou manipular consciências, informará o público que este ano de 2007 se encerram dezenas de concessões públicas de rádio e TV. Para ver se alguém as pleiteia; quem sabe, o povo organizado.


E o diretor da Globo pode ficar tranqüilo: ninguém vai achar que ele é vendido ao sistema. Os leitores do Observatório da Imprensa costumam ter certeza sobre essas coisas.

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Jornalista, editor do FazendoMedia e correspondente da revista Caros Amigos no Rio de Janeiro