O caso Cesare Battisti é um episódio marginal das lutas dos anos 1970. Críticas foram-lhe dirigidas tanto no ambiente dos refugiados e perseguidos políticos italianos quanto no da imprensa. Fazem parte das furibundas polêmicas desencadeadas sob qualquer pretexto a propósito das interpretações sobre aquele período e um ataque preventivo contra o insistente apelo por uma anistia para os envolvidos naqueles acontecimentos.
A exigência (até hoje rechaçada) de uma lei de anistia para os prisioneiros e imputados de delitos políticos cometidos nos anos 70 é ao mesmo tempo política e jurídica. Política, porque pretende fechar um ciclo de represálias reacionárias contra a última grande tentativa de ‘assalto ao céu’ marcado pela passagem do fordismo ao pós-fordismo, ao mesmo tempo em que define as condições estruturais, a partir das quais se desenvolveu, na Itália, a fase livre-cambista, que agora entra em colapso.
Jurídica, porque as represálias ‘legais’ foram realizadas segundo parâmetros e meios emergenciais, em grande parte já abandonados ou fora de uso: foi o caso do recurso à prisão preventiva (de até 10 anos!), usada mais que as próprias sentenças judiciais, para manter na prisão o quadro dirigente dos movimentos (como a odiosa farsa do 7 de abril, ou seja, a prisão preventiva no processo desencadeado contra os dirigentes da Autonomia [confluem na Autonomia Operária a maior parte dos dirigentes da organização Potere Operaio, do Circolo Gramsci e outras tendências intelectuais e práticas de origem obreirista (é o caso da revista Rosso) mas sobretudo vastos estratos radicais do proletariado juvenil.
Da Autonomia vêm também os quadros que mantiveram uma continuidade de movimento até o ciclo de Seattle e de Genova aos hodiernos Centros Sociais, que, obviamente, integram, em massa, novas gerações de ativistas. Os motes de l977 foram conduzidos sob esta bandeira e a sucessiva repressão soma promiscuamente todos os subversivos nesta etiqueta], Toni Negri, Virno, Scalzone, Piperno, Ferrari Bravo e outros, que este ano completa trinta anos), os agravantes de pena em casos de terrorismo, o estabelecimento de normas de caráter moral com que multiplicar as penas para os réus mais insignificantes, o uso ocasional da tortura, as confissões arbitrárias dos ‘arrependidos’, figuras pérfidas e terroristas sanguinários, excessivamente interessados na condenação de qualquer um com quem tivessem contato em troca da anulação, por parte do Estado, da pena a que foi condenado e outras benesses.
A agonia da Primeira República
Não menos importante foi a pesada influência do clima da época sobre a condução dos processos e a aplicação das penas, uma vez que a opinião pública e os júris populares eram pressionados pela campanha de imprensa sobre os perigos do terrorismo. Na prática, uma anistia, hoje, teria efeitos escassos e residuais sobre os condenados e os encarcerados (incluindo os terroristas de direita), que tiveram a redução máxima de sua pena. Outro é o discurso para os exilados, que em caso de extradição deveriam voltar para a prisão e iniciar o cumprimento da pena desde o início, até o resto de suas vidas.
O peso político da anistia seria, no entanto, enorme, como demonstra o fato que nenhuma sanção foi infligida aos (membros de aparelhos estatais e cúmplices ocultos da extrema-direita) que arquitetaram e protagonizaram, a partir de l969, a ‘estratégia do terror’, tornando-se culpados por carnificinas e assassinatos contra alvos específicos, individuais e coletivos.
Uma anistia significaria encerrar, hoje, uma guerra civil de baixa intensidade, como foi feito de forma insolitamente apressada depois da verdadeira guerra civil, de l943-45, saldando, finalmente, as contas com o desfecho conflituoso da agonia da Primeira República (l946/92) e de seu sistema de partidos, dissolvido pelo movimento das ‘Mãos Limpas’ em 1992.
Servilismo espalhafatoso
As grandes ondas de luta dos anos 60 e 70 foram, bem ou mal, reabsorvidas nos EUA e na Europa, com operações reformistas e com a passagem das gerações. Na Itália, ao contrário, após o caso do seqüestro e assassinato de (Aldo) Moro (l978), elas foram embalsamadas ou engessadas por um regime vingativo e governado por uma ‘nomenclatura’ rígida e corrupta que resistiu a todo tipo de mudança até precipitar-se, finalmente, no populismo de Berlusconi. Este último, por sua vez, reciclou homens e métodos, enquanto a esquerda – em grande medida participante das repressões daqueles anos – está se dissolvendo.
O grande falatório da imprensa e da TV sobre o caso Battisti (uma campanha temporária, provisória, pronta para ser substituída por outras assim que a opinião pública se cansar dela) é sinal da má consciência de uma classe dirigente que se sente solidária com a da grande repressão dos anos l975-85 (os chamados ‘anos de chumbo’) e mais preocupada em prevenir e esmagar as desordens que a crise econômica mundial provocará do que com a memória do passado. Se só agora está sendo dada anistia aos policiais de Gênova 2001 [referência à sinistra repressão dos motes de oposição à reunião do G-8 em Gênova, entre os dias l9-22 de julho de 2001, quando foi morto o jovem Carlo Giuliani], imaginem se ainda vão se preocupar com os delitos do século passado! No entanto, a elite dirigente exige mãos de ferro, sem piedade excessiva (vide a ainda a ignóbil perseguição de Marina Petrella [Marina Petrella, acusada de integrar as Brigadas Vermelhas, se refugiou na França, onde foi presa em 21/08/07. Em 05/08/08 foi colocada em liberdade vigiada numa clínica pelo seu estado de saúde muito delicado.
Respondendo ao pedido de extradição da Itália, o Estado francês exigiu, para a sua concessão, a garantia da graça, pelo seu estado de saúde, que não foi concedida] e a criminalização de ciganos e migrantes (estes, sim, um problema muito atual!), a organização de linchamentos ‘espontâneos’ e ‘legais’ e a eliminação dos ‘obstáculos’ constitucionais para o abuso de poder da maioria berlusconiana.
A vingança contra Cesare Battisti é ocasional, uma compensação pela expulsão de mil tunisianos ou pela prisão de dez romenos (sempre com um tempero grosseiro de nacionalismo racista). Para os que a manejam ela não pode, no entanto, complicar as negociações e o mercado futebolístico com o Brasil ou a exploração do trabalho negro de emigrantes extra-comunitários… Da mesma forma, à mais descarada indiferença ética de tudo isto se soma o espalhafatoso servilismo em relação aos estreitos interesses da Igreja Católica, como no caso da tentativa de Berlusconi de impedir, contra a opinião do pai da acidentada, a cessação da alimentação de Eluana Englaro, em estado de coma há 17 anos. Não pensaram duas vezes, também, antes de cortar o auxílio aos esfomeados da África. Esta é, enfim, a Itália atual. É, assim, uma sorte que para além da maioria berlusconiana e de uma oposição irresponsável, a vida continua a pulsar na Itália. Trataremos, em outros escritos, dos movimentos sindicais e estudantis.
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Professor-doutor da Università degli Studi di Urbino (Itália), autor de Rousseau, solitudine e Comunità, edição da Manifestolibri, Roma 2002, e vários outros escritos sobre os movimentos sociais e políticos italianos dos últimos decênios