Por força da profissão, a psicóloga Beatriz Breves acostumou-se a lidar com conflitos emocionais, mas nem toda a experiência adquirida em 30 anos de consultório foi capaz de prepara-la para o que ocorreu no outono de 2013. Ex-síndica de um condomínio em Copacabana, onde mora até hoje, ela foi acusada por outro morador de pisotear uma gata velha e cega no playground. A denúncia foi feita via internet, com uma postagem no Facebook. Como resultado dos maus tratos, relatava o autor, o bichinho acabou tendo convulsões. Já a mãe do denunciante, uma senhora idosa que trazia o animal no colo, passou mal e precisou de atendimento médico.
A acusação era falsa, como ficaria provado à frente, mas isso não impediu que a mensagem se propagasse com a velocidade típica da internet. Em um intervalo de apenas dez dias, Beatriz contabilizou cerca de mil manifestações no Facebook, a maior parte de uma violência incomum.
“Mata de porrada. Diz o endereço que eu mesmo mato”, escreveu uma pessoa. “Maldita, desgraçada! Gente como essa não morre em assalto, atropelada, com bala perdida”, disse outra. Nas postagens, expressões como vadia, monstro, demente e imbecil tornaram-se corriqueiras. Uma emissora de TV bateu à porta de Beatriz e até a OAB foi ao local para investigar o ocorrido.
“Fiquei arrasada. Percebi que em questão de segundos sua vida pode ser destruída”, afirma a psicóloga. Mesmo não tendo o nome divulgado pelo seu detrator, Beatriz passou a enfrentar crises de choro e a temer que alguém atentasse contra sua vida. A pressão foi tanta que ela voltou a fazer análise.
O que Beatriz não sabia, na época, é que estava sendo alvo de um tipo de ação que, todos os anos, atinge milhares de vítimas no mundo, com consequências desoladoras. O fenômeno, chamado de trollagem, é praticado por dois tipos de personagens, cujos perfis e motivações permanecem um mistério até agora: os “haters” e os “trolls”.
Questões laterais
É difícil estabelecer os limites entre uns e outros, mas os “haters”, ou “odiadores”, seriam mais parecidos com metralhadoras giratórias que disparam contra qualquer coisa de que não gostam. O ataque, feito em tom inflamado, visa a ridicularizar os alvos e seus pontos de vista. Os “trolls” são diferentes: fazem provocações e afirmações polêmicas para criar dissensão nas redes sociais. A palavra remete aos seres disformes da mitologia nórdica, mas a expressão teria outra origem: pescar com isca, em inglês. A isca é a provocação; o peixe, a confusão. Como para qualquer pescador, quanto maior o peixe, melhor.
Para Beatriz, que tinha 56 anos na época do ataque, o episódio rendeu frutos positivos, apesar do sofrimento provocado. Para relatar a experiência e ajudar outras pessoas na mesma situação, ela escreveu o livro “A Maldade Humana: Como Detonar uma Pessoa no Facebook”, numa parceria com a amiga e também psicóloga Virginia Sampaio. O livro foi lançado no ano passado.
Em muitos casos, porém, a vítima não reúne a maturidade necessária para dar a volta por cima, principalmente quando se trata de um adolescente, cuja personalidade está em formação. No caso de indivíduos com baixa autoestima, a história pode acabar em tragédia, porque, à medida que as mensagens se multiplicam, a tendência deles é se identificar com o agressor. O raciocínio é que, se tanta gente diz a mesma coisa, e com tanta veemência, é porque deve ser verdade.
Nessa faixa etária, não faltam casos que chocaram o público pelo nível de crueldade exibido. E isso não vem de hoje. Em 2007, a garota Megan Meier, uma adolescente de 13 anos do Estado americano do Missouri, enforcou-se com um cinto, depois de receber mensagens destrutivas de um garoto com quem vinha flertando no MySpace. Mais tarde, os investigadores descobriram que o rapaz não existia. Era Lori Drew, a mãe de uma ex-amiga de Megan. A mulher inventou tudo para se vingar, porque acreditava que Megan espalhava fofocas sobre sua filha.
Em Minnesota, outro Estado americano, a trollagem foi póstuma. Depois que o adolescente Mitchell Henderson tirou a própria vida com um tiro, em 2006, os amigos o homenagearam com um memorial no MySpace. Membros anônimos de uma comunidade chamada “/b/” acharam engraçada a referência a um iPod que o garoto perdera e partiram para um ataque que ultrapassou os limites da internet. Um deles colocou um iPod no túmulo de Mitchell, tirou uma foto e a postou. Trotes telefônicos começaram a perturbar os pais do adolescente. Uns se divertiam em dizer que estavam com o iPod, outros se identificavam como o fantasma do menino e diziam estar à porta da casa, pedindo para entrar. A tortura, escreveu o “New York Times”, durou um ano e meio.
Agora, com o acesso de um número cada vez maior de pessoas conectadas à internet, em particular às redes sociais, a tendência é que esse tipo de comportamento se dissemine mais rapidamente. A razão? Os códigos de convívio que têm regulado as relações pessoais não valem na web. Estão sendo reescritos, sob postulados muito diferentes dos tradicionais.
“A internet é a verdadeira representante da sociedade sem fio”, diz Aurélio Melo, professor de psicologia da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Sem fio, no caso, é uma dupla referência, que remete tanto a padrões de comunicação cada vez mais usados, como WiFi e Bluetooth, como ao comportamento humano. “A natureza dos vínculos [na web] é muito mais frágil”, afirma Melo. “Todo mundo espia todo mundo, mas não há fios entre as pessoas. Você pode aparecer e desaparecer quando quiser.”
O anonimato é um ingrediente essencial dessa fórmula, porque o agressor se sente livre para manifestar o que bem entender, sem correr o risco de ser reprovado socialmente ou punido. Ao contrário, o apoio das outras pessoas reforça a suposta legitimidade de suas afirmações e o fazem ir ainda mais longe. O fenômeno não é exclusivo da internet, mas encontrou terreno fértil na web. Chamado de desindividualização, o processo foi bem delineado pelo psicólogo Ed Diener, que conduziu uma experiência com mais de mil crianças americanas no Halloween. Convidadas a entrar numa casa, com suas identidades preservadas pelas fantasias, as crianças foram instruídas a pegar apenas um doce entre as guloseimas colocadas à mesa. Entre as que entraram sozinhas e tiveram de dizer seus nomes – ou seja, deixaram de ser anônimas – só 8% quebraram as regras e tomaram mais de um doce. No outro extremo, entre as que se mantiveram anônimas e estavam em grupo, mais de 80% trapacearam e pegaram mais balas que o permitido.
Embora as ações dos “haters” e “trolls” assumam um caráter quase doentio, eles não são os únicos responsáveis por fazer com que as manifestações de intolerância na web pareçam, hoje, mais evidentes do que nunca. Talvez por seu caráter instantâneo, que permite ao usuário fazer comentários enquanto o fato ainda se desenrola, as redes sociais estão ficando carregadas de críticas ácidas sobre temas que vão desde a novela e o futebol até economia, política e religião. É curioso, mas algumas pessoas que se comportam de maneira equilibrada em discussões ao vivo com amigos e familiares assumem um tom raivoso na internet, a ponto de ficarem irreconhecíveis.
“Há discrepâncias entre os valores da pessoa e suas atitudes práticas”, diz o psiquiatra Jairo Bouer. Na internet, afirma o médico, muitos assumem uma versão anabolizada de si mesmas. Questões laterais, que não fazem tanta diferença no dia a dia, ganham importância capital na rede. E argumentos que nunca mereceram uma avaliação mais cuidadosa passam a ser defendidos como verdades incontestáveis. “É como se vestissem um avatar e passassem a ter posições mais extremas do que demonstram em condições normais de temperatura e pressão.”
Sem jurisprudência
O comportamento bem que poderia ser chamado de síndrome do Hulk, o personagem das histórias em quadrinhos e do cinema. Na trama, um cientista afável se transforma em uma criatura verde e incontrolável toda vez que enfrenta uma situação de raiva. Impotente diante do problema, e sem condições de usar sua capacidade argumentativa, ele parte para o uso da força. A frase repetida pelo personagem não poderia ser mais adequada: Hulk esmaga!
Poucas situações mostraram tão bem esse processo como as eleições do ano passado. “A internet brasileira assumiu um tom muito mais agressivo depois das eleições. O perfil das redes sociais mudou”, diz Celso Figueiredo, professor de mídias sociais do Mackenzie.
Na última fase da corrida pela Presidência da República, a polarização em torno do PT e do PSDB os dois partidos que disputaram o segundo turno acabou descambando, na internet, para a troca de acusações entre simpatizantes dos dois lados, que passaram a se chamar de “coxinhas”e “petralhas”, numa amostra do estado exaltado de ânimo.
A percepção de observadores é que a discussão era, a princípio, muito mais inflamada na internet que fora dela. Com o avanço do processo eleitoral, essa polarização acabou transbordando para fora das redes sociais, contaminando o dia a dia – das discussões à mesa do bar até o jantar em família.
Por que a temperatura sobe tanto na internet? Segundo o professor Figueiredo, todo discurso tem três dimensões: o “ethos”, a credibilidade de quem fala; o “pathos”, a paixão ou o nível de envolvimento emocional; e o “logos”, caracterizado pela lógica e a razão. Nas redes sociais, frequentemente o que prevalece é a emoção. Ela pode vir expressa nos vídeos engraçados que são reproduzidos aos milhões – os chamados “virais” –, ou em mensagens de autoajuda e imagens “fofinhas” de crianças e filhotes de animais, que costumam receber enxurradas de “curtir”. Mas também pode se materializar no ódio a alguém ou a alguma coisa, sob uma faceta muito mais sinistra.
Devido ao envolvimento emocional intenso, o que muitas vezes acontece é que as pessoas aglutinam, em seus perfis, apenas usuários que compartilham as mesmas ideias ou posições. “É um processo de busca de iguais e rejeição de diferentes. A pessoa tenta criar em sua ‘timeline’ [a linha do tempo, que apresenta as postagens em ordem cronológica] um espelho de si mesma”, afirma Figueiredo.
Não raro, os grupos se voltam para um bode expiatório como forma de extravasar seus sentimentos, diz o professor Melo. Figuras públicas estão entre os alvos favoritos. Independentemente da responsabilidade da pessoa real nas mazelas apontadas, é na sua imagem que fica concentrada a frustração popular. O mecanismo lembra um hábito em desuso, mas que já foi bem comum em algumas cidades brasileiras – a “malhação do Judas”. Em quase todos os bairros, as pessoas faziam bonecos representando Judas, o traidor de Jesus. No Sábado de Aleluia, um dia antes da Páscoa, o boneco era amarrado a um poste e passava por uma sessão de pauladas. Às vezes, era arrastado e queimado.
Todo esse cenário é revelador de uma outra face da internet, muito menos generosa. A web costuma ser vista como uma ferramenta que as pessoas comuns têm à disposição para disseminar informações e discutir ideias de maneira livre, por ser um meio rápido e difícil de controlar. É, em resumo um instrumento democrático. Essa vocação ficou clara em episódios como a Primavera Árabe, com manifestações organizadas via internet e o uso da tecnologia para manter informada a comunidade internacional.
Agora, no entanto, a intolerância nas redes sociais mostra que a web também pode ser um espaço de radicalismo, avesso ao debate e, em muitos casos, orientado à coerção.
O desafio é como coibir as manifestações de ódio e punir seus autores, sem ferir a liberdade de expressão. No Reino Unido, onde há leis específicas sobre o assunto, o secretário de Justiça, Chris Grayling, disse considerar insuficiente a pena atual – que pode chegar a seis meses de prisão para quem pratica a trollagem – e passou a defender uma punição mais dura, de até dois anos. Mas são poucos os países que têm legislação específica. Na maioria dos lugares, a falta de regras jurídicas claras sobre o tema deixa espaço para mais abusos.
“A internet despertou a turma do mal. A coisa está fora de controle por causa da sensação de impunidade e pode ter consequências drásticas”, diz Renato Opice Blum, advogado especialista em direito digital do escritório Opice Blum, Bruno, Abrusio e Vainzof.
Com a dificuldade de enquadrar os ataques nos crimes previstos na lei de um mundo analógico, as vítimas muitas vezes ficam de mãos atadas. Em termos jurídicos, o limite da liberdade de expressão vai até o ponto em que as críticas ganham um caráter excessivamente pessoal e são feitas de maneira tão frequente que caracterizam perseguição. É quando o autor dos comentários deixa o campo da análise e da crítica, a que todos têm direito, e entra no da injúria, calúnia e difamação.
As vítimas de trollagem podem processar seus agressores tanto junto a uma vara cível quanto na esfera criminal. Mas, em geral, os processos são encerrados com o pagamento de cestas básicas ou a prestação de serviços comunitários pelo ofensor. Foi o que aconteceu no episódio da psicóloga Beatriz Breves, cujo caso chegou ao Juizado Especial Criminal. Para encerrar o processo, o ofensor aceitou uma proposta feita pelo Ministério Público e pagou R$ 1 mil a uma instituição de proteção aos animais. Os comentários não foram retirados do Facebook.
Dependendo da situação, o juiz cível pode determinar que o ofensor pare com as postagens e, se ele insistir, aplicar uma multa. A vítima também pode conseguir uma medida cautelar na esfera criminal. Nesse caso, se desrespeitar a medida, o ofensor pode ter sua prisão preventiva decretada, mas não há jurisprudência no país. “Devido à fragilidade da legislação brasileira, muito dificilmente alguém será preso por ofensas desse tipo”, diz Opice Blum.
Falso testemunho
O Marco Civil da Internet, cuja sanção completa um ano neste mês, piorou as coisas nesse aspecto, afirma o advogado. Antes das mudanças, as empresas de internet tinham de guardar os registros de acesso – os IPs, que permitem identificar de que computador saiu uma informação – por três anos. O Marco Civil reduziu esse prazo para seis meses. O problema é que, no caso de investigações empresariais, as companhias costumam detectar fraudes a partir do sétimo mês de irregularidades, afirma Opice Blum. A nova regra torna a investigação praticamente inviável, porque a companhia precisa de registros que não existem mais.
Outro ponto é que, com o Marco Civil, a remoção de conteúdo ficou mais cara e difícil. Uma comunicação simples encaminhada pela pessoa atingida ao provedor do serviço de internet costumava bastar. Agora, é preciso obter uma ordem judicial, o que exige contratar um advogado e demora pelo menos 24 horas. A exceção é conteúdo que envolve nudez.
Aos poucos, estão sendo feitos avanços na legislação sobre o meio digital. A Lei Carolina Dieckmann, que entrou em vigor em 2013, prevê penas de três meses a dois anos de detenção, mas não está relacionada a ofensas na web (em 2011, a atriz Carolina Dieckmann teve fotos íntimas roubadas de seu laptop e expostas na internet, daí o nome da lei). Os crimes previstos são de invasão de dispositivos para roubar dados. As penas maiores, acima de um ano, são reservadas ao roubo de segredos comerciais ou industriais.
Iniciativas mais específicas incluem um projeto de lei do deputado Nelson Marchezan Junior (PSDB/RS), que visa a modificar o conceito de falsa identidade no Código Penal e inclui nessa categoria o uso de perfis falsos nas redes sociais com o objetivo de intimidar ou ameaçar alguém.
Fora do campo das leis, o governo federal lançou na semana passada o site HumanizaRedes. A proposta é prevenir incidentes nas redes sociais e tornar-se um canal de denúncias de violação dos direitos humanos na internet.
O que preocupa, e não só no Brasil, é o descompasso entre os esforços para prevenir crimes de ódio e intolerância e a velocidade com que eles se dão na web. Entre os “haters”, já se criou até uma categoria especial – a dos “odiadores” profissionais. São pessoas contratadas por empresas, por exemplo, para falar mal de produtos e marcas concorrentes nas redes sociais. “Existem quadrilhas que, para fazer isso, usam até vídeos muito bem feitos”, diz Opice Blum. Como, supostamente, os comentários feitos nas redes sociais são isentos, o prejuízo à imagem da empresa atingida costuma ser enorme.
O pior é que muitas companhias que se descobrem vítimas dessas falcatruas tentam recuperar o prestígio de maneira semelhante: contratam pessoal para encher as redes sociais de elogios e considerações positivas – e igualmente falsas – sobre suas marcas ou lançamentos.
Na estranha terra da internet, o ódio é gratuito, mas o amor tem seu preço.
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João Luiz Rosa, do Valor Econômico