A revista Veja tem se mostrado signatária de uma campanha em prol da incorporação da meritocracia na educação brasileira. Na edição 2151, de 10/02/2010, vemos mais uma reportagem, por Marcelo Bortoloti, tratando de educação, uma temática tão cara ao grupo Abril. A referida matéria trata de expor os resultados de uma pesquisa encomendada por uma fundação do grupo já citado. Resultados estes que vêm referendar o que é sabido em qualquer conversa de botequim: o ofício de professor é uma profissão que está em baixa, considerando que numa lista de 60 profissões o magistério ocupa a posição de número 36.
As conclusões que o repórter tira do resultado da pesquisa, das quais a principal talvez seja a de que as melhores cabeças não vão se interessar pela profissão docente e até por impedimento da família também já são de pleno domínio do senso comum ou do bom senso. A argumentação segue na direção de que o magistério era uma profissão que estava em alta e simbolizava status na década de 1970, quando a escolarização se universaliza e passa a ser realizada em massa, uma situação que torna precária a educação em aspecto amplo. Faltam professores contratados tanto quanto estrutura, salas de aula. Até o momento, tudo pacífico.
Já a ideia de que para resolver o problema da debandada das ‘melhores cabeças’ do setor do magistério a implementação de um salário decente não é a principal medida, essa sim, merece ser discutida. Na formulação do repórter, que se coaduna com a visão do semanário, o que conta principalmente na hora de escolher uma profissão é o reconhecimento do mérito intelectual, postura que já vem sendo implementada de forma capenga em alguns estados da federação, a exemplo de São Paulo, cuja Secretaria de Educação está nas mãos de Paulo Renato de Souza.
Alguém tem que por a mão no bolso
O argumento de que o salário achatado dos professores não é o principal quesito que contribui para a rejeição da profissão serve apenas para naturalizar a ideia corrente de que professores ganham o suficiente, ou de que o salário destes é equivalente ao dos demais trabalhadores. O fato que devemos encarar é o de que Educação pública tem pouco valor, ou dar formação de qualidade para a população simples não é encarado pela sociedade como um todo, desde os dirigentes políticos até as pessoas simples, como algo que valha a pena. Desta forma, a educação de qualidade se situa no nível do discurso enquanto os legisladores da questão criam mecanismos que recompensam com migalhas os profissionais que atingem determinado desempenho.
Para além do salário achatado, as condições de trabalho também afugentam as melhores cabeças do magistério. Ora, pensemos, por que um aluno brilhante optaria por uma profissão com ‘salário de fome’, uma expressão do filósofo Theodor Adorno, em que se leva trabalho para casa e não raramente se é desrespeitado ou até agredido? Reconhecimento profissional, ao contrário do que sugere a matéria, não pode ser apenas premiar a produtividade do profissional da Educação, neste caso a nota de seus alunos. Para tornar o magistério uma profissão viável para os bons alunos, as questões que devem ser resolvidas são os baixos salários e as péssimas condições de trabalho.
Na ocasião de sua campanha para a presidência da República, o atual senador Cristovam Buarque teve uma expressão no sentido de que para resolver os problemas da educação alguém vai ter que por a mão no bolso. Da mesma forma que tais ideias não tiveram eco na época, também agora continuam sem apelo, ainda que vejamos na grande mídia atores e celebridades testemunhando sobre a importância da educação de seus filhos, que certamente não são alunos de escolas públicas, pois sabemos então que estes pais extremados são pessoas que põem a mão no bolso.
Currículo se torna imperativo
Entretanto, a maioria da população, pessoas cujo orçamento familiar não comporta a mensalidade das escolas particulares, terá uma grande vitória quando seus filhos, com formação em escolas públicas, conseguirem ingressar em faculdades cujas profissões não propiciam o respeito nem a remuneração promissora dos ofícios disputados pelas melhores cabeças. Entre estes não está o do magistério.
Na edição de 03/03/2010, em reportagem de Ronaldo França, a tônica é divulgar alguns dos primeiros resultados de escolas que adotaram práticas meritocráticas. Entre as constatações de que o Brasil tem quase 98% das crianças na escola que, em termos de qualidade, é uma das piores do mundo, o jornalista cita autores que pontificam ser a meritocracia o instrumento capaz de atrair as ‘melhores cabeças’ para a docência. Citando resultados de pesquisas do Banco Mundial, também assinala que está acontecendo a guinada de uma cultura inadequada para outra em que já se podem conferir alguns resultados. Vejamos:
‘Os números mais novos que apontam nessa direção vêm de São Paulo; (…) 18% dos alunos da 4ª série do ensino fundamental foram alçados, em português, do nível insuficiente para o adequado. Aos 9, eles não conseguiam escrever um bilhete, tampouco compreender o sentido de um texto curto (caso ainda de 22% do total). Em matemática, o grupo dos piores – aquele em que os alunos se paralisam ao tentar resolver um problema envolvendo operações de soma e subtração – encolheu de 39% para 31%.’
A lógica do incentivo ganha contornos de depreciação aos professores quando se fala da importância do currículo como ferramenta indispensável para um país com professores de baixa qualificação: ‘Um levantamento com base em dados da Prova Brasil, aplicada em escolas públicas pelo Ministério da Educação (MEC), constata que, quando o professor se ancora em roteiros detalhados sobre o que e como ensinar, as notas sempre sobem. Num país como o Brasil, onde o nível geral dos professores é baixo, um currículo se torna imperativo – mas é ainda coisa rara. Apenas seis dos 27 estados contam com um, e isso é recente.’
Quais os motivos da campanha?
É importante notar os termos ‘nível’ e ‘baixo’ no que se refere aos professores escritos como que uma constatação natural e sem ressalvas. Os professores de hoje são vistos como profissionais de baixo nível a ponto de necessitar um roteiro detalhado para realizar suas aulas. O que espanta não é a constatação em si, mas o fato de isso ser visto e difundido como naturalizado e eterno sem possibilidade nem necessidade de mudança. Tal naturalização também pode ser aferida pelo falto de umas das maiores despesas com educação pelo MEC ser realizada na produção e distribuição de livros didáticos – afinal, os professores pouco qualificados precisam de um roteiro do seu ofício.
Outro trecho da reportagem também merece atenção: ‘Desde que o nível do ensino começou a ser medido no Brasil, na década de 1990, (…) em certos anos a qualidade chegou até a cair. É verdade que os números pioraram na medida em que mais gente ingressou na escola, mas esse processo de massificação na sala de aula encerrou-se uma década atrás e nem por isso o Brasil deixou a rabeira nos rankings internacionais de ensino.’
Com a massificação, realmente a qualidade da educação caiu e isto ocorreu porque a universalização do ensino não foi acompanhada de uma estrutura básica, como salas de aula e contratação de professores. Dizer que o processo de massificação se encerrou em uma década é, no mínimo, uma falácia e a ausência desta estrutura está diretamente relacionada ao fato de o Brasil continuar muito atrás nos rankings internacionais que aferem a qualidade de ensino. Não enxergar fatos como este é um elemento que está em perfeito alinhado com o direcionamento geral que têm as matérias de Veja sobre a educação no Brasil.
Nestas reportagens, percebemos como tônica o elogio da meritocracia na educação bem como a defesa de que esta mesma pode resolver os principais problemas do ensino público. Tal movimento já é esboçado como uma tendência geral e é encampado até pelo governo Lula que lhe tinha alguma resistência. Resta saber quais são os motivos desta verdadeira campanha engendrada por Veja em relação ao viés meritocrático no magistério.
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Professor de História, Ponta Grossa, PR