Volta e meia ocorrem algumas coisas que devem levar a reflexões sem paixão. No momento, a questão se refere ao julgamento no Tribunal de Justiça do coronel Ubiratan, do Carandiru, e dos comentários a respeito da ‘turma dos direitos humanos’.
O caso em si tem relevância especial para todos que se lembram do ocorrido, perpetuado no livro de Drauzio Varella, no filme homônimo e até em condenações internacionais do Brasil por conta do chamado massacre daquela unidade prisional. Para meu espanto, a maior parte dos órgãos de imprensa, jornalões, revistas semanais e televisão, pouco fizeram além de noticiar. Alguns timidamente ouviram argumentos de cada parte. Um dos textos mais lúcidos a respeito foi o de Demetrio Magnoli, na Folha. Mas o que mais assustou mesmo foi a proliferação de cartas às seções competentes aos leitores, majoritária e ferozmente aplaudindo a decisão do TJ, propondo homenagens ao coronel e assumindo como certas aquelas posições.
Como posso me considerar da ‘turma dos direitos humanos’, por princípios e por ter atuado na década de 1980 na Anistia Internacional, considero-me no direito, talvez até mesmo no dever, de fazer algumas ponderações.
O episódio da rebelião no Carandiru e a matança de 111 presos pela Tropa de Choque, sob o comando do coronel Ubiratan, é mais do que conhecido. Contudo, algumas coisas precisam ser iluminadas: mesmo que a decisão de executar os presos fosse inteiramente da cabeça do coronel, ou a confusão reinante na Casa de Detenção fosse tanta que a tropa de choque acabou por exacerbar-se, há um princípio básico deixado de lado nisso tudo: a hierarquia.
Dia desses reencontrei um livro dos anos 1990, Geisel, longa entrevista concedida pelo general ex-presidente a dois pesquisadores da Fundação Getúlio Vargas-RJ, sob a condição de ser publicada apenas após sua morte. Pois bem, por várias vezes o prussiano Ernesto Geisel justificou várias de suas ações de maneira lógica, e não apenas castrense: por exemplo, após as mortes no DOI-Codi paulista, ele não puniu exatamente, segundo disse, o então comandante do 2º Exército, general Ednardo D’Ávila Mello. Disse o ex-presidente que o comandante militar de São Paulo acostumou-se à vida social local e descuidou do controle de seus subordinados. Dessa forma, como a responsabilidade final era dele, e ele não tomou atitude alguma, a responsabilidade passava ao próprio comandante-em-chefe das Forças Armadas, no caso o próprio Geisel. Daí a demissão de Ednardo. No caso Sylvio Frota, também justificou várias ações do ministro do Exército exonerado como violação dos princípios hierárquicos, e isso só facilitou o caminho para sua exoneração.
Há um pensamento lógico nisso: se o coronel Ubiratan foi mesmo o mandante do massacre do Carandiru, e não havendo provas de que o então governador Fleury ou seu secretário de Segurança tivessem dado ordens diretas para executar os presos, isso não os exime da co-responsabilidade. Dessa forma, não deixa de ter sentido pensar em algum acordo subterrâneo para livrar o governador e o secretário da mácula do ocorrido, deixando a culpa toda no coronel (a responsabilização individual de cada soldado da tropa de choque, de qualquer forma, seria impossível; poder-se-ia tanto condenar todos, e talvez houvesse inocentes no meio), e ele foi abrigado no partido de Fleury, conseguiu um mandato de deputado estadual e direito ao foro privilegiado.
Mas o que o Órgão Especial do TJ, com exceção de dois desembargadores fez foi um absurdo digno de virar case para o mundo jurídico internacional: não anularam o julgamento (pois assim poderia ser realizado outro), tampouco reformaram os anos de detenção ou coisa que o valha da juíza: reinterpretaram a decisão soberana dos jurados! Entrevistados pela Folha, alguns pedindo para não serem identificados, todos disseram que sua decisão foi mesmo aquela; inclusive um jurado que votou a favor da absolvição do coronel, considerou todos os procedimentos corretos e que a maioria acabou votando pela condenação. Assim, restava à juíza apenas colocar tecnicamente os termos da condenação, e aplicar a dosimetria da pena de acordo com os códigos vigentes. Claro que ainda cabe recurso, tanto por parte do Ministério Público como até mesmo de outros órgãos, e essa história não deverá acabar tão cedo.
Não me dispus a atender presos sem ônus como fez Drauzio Varella, que acabou por escrever um belo livro – bastante vendido – contando o cotidiano daquele estabelecimento prisional e o massacre, depois vertido em filme. Mesmo assim, como médico, que tem por finalidade preservar vidas, não posso concordar com o que tem sido colocado.
Ora, nos tempos ainda do regime militar, o então poderoso delegado Fleury foi acusado de coordenar o ‘esquadrão da morte’ contra criminosos comuns, e foi denunciado por Hélio Bicudo, então promotor. A Justiça acatou a tese do parquet, e o então juiz, depois desembargador Alves Braga, parente de generais, mandou prender Fleury. Isso causou profunda comoção nos meios jurídicos e foi amplamente divulgado pela imprensa, embora o delegado de triste memória tenha tido uma prisão de luxo, pois ficou detido no próprio DOPS que comandava…
Essa decisão do TJ, então, foi timidamente coberta pelos meios de comunicação, no meu modo de ver e, como já manifestei, o mais assustador foram as cartas de leitores parabenizando o Tribunal, o relator do processo, querendo condecoração ao coronel, etc. etc. E várias reproduções da velha frase da ‘turma dos direitos humanos que só se preocupa com os direitos dos bandidos, mas não dos cidadãos honestos e trabalhadores’. Respeito a opinião alheia, mas isso é eivado de ódio e ignorância.
Vejamos o caso da Anistia Internacional: seu mandato, ou estatuto, claramente coloca a entidade como defensora dos direitos humanos, mas não de todos – o direito à educação, saúde, alimentação, etc. não compete a seus membros defender. A questão é ligada à petição e atos pela libertação dos chamados presos de consciência, pessoas detidas por motivos políticos, de credo, cor etc. e a Anistia se posiciona com relação a violações desses direitos em qualquer pais, mesmo quando havia a polarização ideológica da Guerra Fria. Também é contrária a qualquer tipo de tratamento desumano, cruel e degradante, à tortura enfim, assim como é contrária à pena de morte.
Com o passar do tempo, passou-se a dar importância maior também aos criminosos comuns: ninguém os quer soltos, ou presos em hotéis de luxo, apenas que sejam respeitados os ditames do direito internacional e das convenções da ONU. E qual a razão? Uma vez detido, o indivíduo passa a ser de responsabilidade do Estado, e a esse cabe garantir sua integridade física. Seja em razão de uma doença, ou de uma tentativa de extermínio, o Estado deve usar de seu poder-dever para proteger tais pessoas, que em nosso país, quase comicamente, ainda são designadas como ‘reabilitandos’.
A mesma coisa ocorre com a pena de morte: além de ser desumana e cruel, é irreversível, não há provas que mostrem que a mesma sirva de exemplo para inibir crimes, e os Estados Unidos estão aí, na companhia de seus inimigos do ‘eixo do mal’, a provar como se pode errar e ser preconceituoso nessa questão.
Quando estava na Anistia, volta e meia universidades, por exemplo, nos convidavam para debater a pena de morte. Íamos em geral em dois, fazíamos uma breve introdução do que era a Anistia Internacional e deixávamos a platéia debater a questão pena de morte: quase sempre começava com algumas pessoas contrárias, depois havia relatos de casos pessoais e logo começava um falatório conjunto a favor da pena capital. Pois bem, nesse momento nossa prática era interromper o debate e colocar as coisas da seguinte maneira: como dito acima, o Estado deve garantir a vida do cidadão; conseqüentemente, não há fundamento lógico, legal ou humanístico internacional, nos dias de hoje, para que órgãos governamentais e o judiciário decidam tirar a vida de alguém. Mas isso não valia para o indivíduo: mesmo nós, membros da Anistia, como seres humanos que somos (acho), caso sofrêssemos alguma violência ou alguém de nossa família, poderíamos ficar transtornados o bastante para pegar uma arma e executar o suposto criminoso. Mas aí não foi a ação do Estado, e sim uma atitude individual, à qual a pessoa responderia à Justiça, se foi em legítima defesa, em momento de grande tensão ou mesmo se tais argumentos não convencessem, haveria uma condenação por homicídio, talvez com atenuantes.
Sobrenatural de Almeida?
Em outras palavras, a ‘turma dos direitos humanos’ não defende nem nunca defendeu os tais ‘direitos dos bandidos’. Aliás, eles os tem: embora detidos e condenados (no Carandiru foram executados inclusive presos não julgados), devem comer, tomar sol, fazer algum esporte, ter assistência médica. Mas ninguém nunca disse que devem ser tratados com flores e bombons, todos devem ser libertados durante uma micareta ou coisa parecida. É duro argumentar com certas mentes de pitbull…
Como um posicionamento da mídia foi pouco eficaz, a mesma deixou para os leitores extravasarem essas opiniões canhestras – se foi mesmo uma maioria de leitores que escreveu defendendo o coronel, ou se houve seleção de cartas, nunca saberemos. Mas é uma questão estatística. Talvez o fato do livro de Drauzio Varella ter feito tanto sucesso mostre que a sociedade, em sua maioria, ao menos os que costumam ler, não pensa dessa maneira.
Para variar, sobrou para a ‘turma dos direitos humanos’. E ninguém se questiona porque só o coronel ficou na berlinda e não seus superiores? Efetivamente há o elitismo nisso tudo: quando havia prisão e tortura de presos políticos, a maioria de classe média, o clamor da imprensa era geral, e se comemora até hoje o fim da tortura e as prisões por delito de opinião. Mas quando se trata do criminoso comum, deixa-se esse pensamento de lado e se um ou 100 morrerem sob a guarda do Estado, o que fazer? Não se pode cuidar de todos… Com o Judiciário dando um belo auxílio, morreram mais de cem pessoas sob a guarda das autoridades que deveriam zelar pela integridade das mesmas, mesmo sendo criminosos perigosos e em rebelião, e ninguém é culpado de nada. Vai ver que o Sobrenatural de Almeida deixou por uns tempos os campos de futebol e foi lá no Carandiru fazer das suas.
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Médico, mestre em Neurologia pela Unifesp, ex-conselheiro do CRM de SP e ex-integrante da Seção Brasileira da Anistia Internacional