Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

A mídia e as origens da crise venezuelana

A não-renovação da concessão da rede televisiva RCTV pelo presidente da Venezuela, Hugo Chávez, continua repercutindo e gerando não só protestos dos venezuelanos, contra e a favor, mas especialmente reverberação na grande mídia mundial, onde se inclui a brasileira. O que não tem sido noticiado, pois a imprensa prefere esbravejar como se uma concessão de radiodifusão fosse uma capitania hereditária, é que aquela emissora participou ativamente na organização do golpe de Estado de 2002, responsável por afastar o presidente Chávez provisoriamente do poder. Imagens capturadas por canais televisuais opositores ao governo, sobretudo a RCTV, foram distorcidas para induzirem os telespectadores a acreditar que a violência vinha do exército, como uma forma de retaliação.

A insatisfação da oposição, em especial da elite venezuelana, começou quando Chávez mudou o quadro dirigente da PDVSA, maior petrolífera do país, visando a desencadear o compartilhamento do resultado das riquezas da nação com o povo, e não com uma minoria, como vinha ocorrendo há décadas. Com a perda do controle da PDVSA, a elite venezuelana passou a atacar o governo com maior veemência, principalmente nos veículos privados, cuja relação com os Estados Unidos é historicamente estreita. A cada palavra de Chávez contra o imperialismo norte-americano cresciam os ataques, chamando o presidente de lunático e louco, entre outros adjetivos.

Ataques vinham do alto

A situação começou a piorar quando Chávez lançou, e conseguiu aprovar, um pacote de 49 leis que permitiam expropriar terras para exploração de petróleo. A atitude causou indignação entre os latifundiários e o setor empresarial – maiores opositores de Chávez –, o que deu início às greves. A aproximação com o presidente cubano Fidel Castro e a freqüente retórica anti-Washington desagradaram à elite venezuelana. Assim, explodiu uma série de manifestações pró e contra Chávez e, no dia 10 de abril de 2002, um grande ato contrário ao governo foi organizado e financiado pelas emissoras privadas de TV.

O ponto de encontro da manifestação foi a sede da companhia petrolífera PDVSA. Em contrapartida, milhares de apoiadores de Chávez se reuniram em frente ao palácio Miraflores, sede do governo venezuelano, para expressar apoio ao presidente. A situação começou a ficar crítica quando os manifestantes contrários resolveram marchar em direção ao palácio, onde se encontravam milhares de pessoas.

Nesse momento, um choque seria inevitável. A emissora pública, em transmissão ao vivo, apresentou toda a indignação e repúdio contra a caminhada rumo ao palácio, dizendo que o conflito seria responsabilidade dos canais organizadores. De fato, o confronto ocorreu e 10 pessoas morreram no embate, segundo dados oficiais. Imagens foram expostas no dia seguinte pelas emissoras privadas, em especial a RCTV, atribuindo as mortes ao exército, legalmente ligado ao presidente.

Diante dos fatos e da pressão internacional, o alto comando militar, antagônico a Chávez, decidiu tomar o poder e empossar Pedro Carmona, presidente da Organização Empresarial da Venezuela, como novo chefe do Executivo do país. No dia seguinte ao golpe, as emissoras privadas comemoraram como uma vitória própria o plano usado para tirar Chávez do poder. Contudo, surgiram novas imagens do confronto, onde os chavistas eram mostrados defendendo-se de ataques que vinham do alto, sem aparecerem soldados atirando contra a multidão.

Prerrogativa regulamentar

Nas primeiras horas do governo Carmona, o Exército tomou as ruas, seguindo a nova orientação política, ou seja, reprimindo a população chavista. Entretanto, o povo se rebelou e, numa grande demonstração de mobilização e participação popular, uniu-se, pedindo o retorno do presidente deposto. A Constituição bolivariana da Venezuela foi invocada em todos os cantos de Caracas, em especial nos subúrbios. O povo, apoiado por militares simpatizantes do mandatário afastado e indignados com a situação irregular imposta, dirigiu-se ao palácio Miraflores clamando pela volta de Hugo Chávez à Presidência.

A situação ficou crítica e, temendo o pior, os golpistas retiraram-se do palácio, levando muitos a fugirem da Venezuela. No começo da noite do dia 13, o vice de Chávez, Diosdado Cabello, ascendeu à Presidência, afirmando que ficava no poder até que o presidente reaparecesse para assumir suas funções ou renunciasse oficialmente. Horas depois, Chávez voltou triunfalmente, aclamado pelo povo, e reassumiu o governo sob grande euforia da população.

Essa história teve um papel preponderante das emissoras privadas de televisão, particularmente a RCTV, que, defendendo interesses próprios, atacavam o governo. A população foi induzida a tomar o poder à força, desconsiderando a vontade da maioria, que havia elegido Chávez democraticamente. Por isso, antes da critica à não renovação da concessão, o que é uma prerrogativa regulamentar, deveria ser analisada a situação econômico-política da Venezuela e o papel da mídia nesse processo.

Direito legítimo

Chávez foi eleito e reeleito com apoio maciço do povo venezuelano – em 11 eleições disputadas, seu partido ganhou todas, legitimamente, o que não impede que se faça críticas às suas decisões e estilo de governar. Todavia, na democracia há de se respeitar a soberania e as deliberações do povo na escolha de seus representantes. Já as emissoras funcionam através de concessões públicas, recebendo o direito de transmissão para prestar um serviço, com o compromisso público de cumprir a legislação, em conformidade com a vontade do povo e num prazo pré-estipulado.

Os relatos mencionados neste texto podem ser vistos no documentário A revolução não será televisionada, filmado e dirigido pelos irlandeses Kim Bartley e Donnacha O’Brian. Mesmo depois de reassumir a Presidência, Hugo Chávez não fez nenhuma retaliação à emissora ou a seus diretores, ainda que sendo acusado de responsável pelas mortes no conflito. A RCTV manipulou as informações, passando de uma empresa comunicacional para uma facção política. Por isso, a decisão de não renovar a concessão deve ser encarada como um direito legítimo do governo, representante da maioria do povo venezuelano.

******

Respectivamente, professor no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Unisinos e doutor em Comunicação e Cultura Contemporâneas; e graduando em Comunicação Social – Jornalismo pela Unisinos