Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

A mídia é insensível ao preconceito

O país do samba, do futebol e das mulheres disponíveis agora também passa a ser o país do preconceito. É assim que a ONU vai falar do Brasil daqui para a frente, no relatório que foi notícia na semana passada:

‘Viajar pelo Brasil é como mover-se entre dois planetas: um das ruas com cores vivas e raças misturadas e outro dos corredores brancos dos poderes político, social, econômico e da mídia. O racismo ainda está profundamente enraizado no Brasil e parte do aparelho de Estado, Judiciário e mesmo a sociedade civil ainda resistem a medidas de combate ao racismo’.

O autor do relatório, o senegalês Doudou Diène, diz mais:

‘O racismo é conseqüência de um legado do período da escravidão e afeta profundamente a estrutura da sociedade brasileira. Uma mudança de mentalidade será difícil, principalmente por causa da ideologia da democracia racial ou do fato de muitos acreditarem que as discriminações no Brasil são apenas econômicas. Democracia racial é a máscara ideológica da elite brasileira para dizer que não há racismo. Enquanto persistir a idéia de que a discriminação é só econômica, a implementação de leis de combate ficará difícil. A discriminação, exploração e marginalização continuam hoje.’ (O Estado de S. Paulo, 18/3/2006).

O relatório da ONU revela:

‘Quarenta e sete por cento dos negros vivem abaixo da linha da pobreza (contra uma taxa de 22% dos brancos) e as mulheres negras vivem uma situação ainda mais delicada: ganham 40% dos salários pagos a um homem branco. Um quinto delas é trabalhadora doméstica, das quais 17% nem sequer recebem pelo trabalho.’

A afirmação da ONU deveria, se mentirosa ou tendenciosa, provocar protestos dos citados, especialmente da mídia. Mas é pouco provável que o assunto seja levado adiante. Se a mídia não fosse preconceituosa – como acusa a ONU – não seria preciso um relatório internacional para o assunto entrar em pauta. Os dados sobre a discriminação feminina – especialmente a dupla discriminação sofrida pelas mulheres negras – estão à disposição de qualquer repórter com tempo para dar alguns cliques.

O Dieese, em seus estudos, por exemplo, já divulgava, em 2003, os dados hoje apresentados como novidade:

‘A remuneração média das mulheres brasileiras situa-se em torno de 60% da auferida pelos homens. As mulheres negras são as mais afetadas pelo desemprego, mostrando as conseqüências danosas da combinação de dois preconceitos: o de sexo e de cor. As taxas de desemprego entre as mulheres negras são mais de 11 pontos superiores às taxas verificadas para os homens não-negros na região metropolitana de São Paulo, segundo dados de 1998 e 2000. Mesmo em comparação com as mulheres não-negras, o desemprego das mulheres negras ultrapassa esta taxa em quase seis pontos percentuais.’ (Solange Sanches, coordenadora de Pesquisa do Dieese)

Antes, os pauteiros

Mas, como a grande imprensa acredita que dados desse tipo pouco interessam aos leitores, o assunto acaba restrito a sites específicos, como o Portal Mulher, onde, em 18/3/2006, uma pesquisa brasileira confirmava os dados da ONU. A matéria, produzida pela Agência de Notícias Anhanguera, de Campinas, foi feita com base no trabalho do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea) e revela:

‘A mão-de-obra formada pelas mulheres negras e com menos de 30 anos é a força de trabalho mais discriminada e marginalizada pelas empresas brasileiras. A pesquisa, que comparou dados da última década, mostra que a mão-de-obra negra feminina recebe o equivalente a 60% do salário de um homem branco para ocupar o mesmo posto no mercado de trabalho. E, de acordo com o pesquisador do Ipea, Sergei Soares, apenas um terço dessas mulheres recebe menos porque tem grau de escolaridade ou qualificação menores. ‘Os outros dois terços recebem menos por pura discriminação’, afirma Soares. E mesmo quando o salário das negras é comparado ao das mulheres brancas, o índice é menor. Enquanto a mão-de-obra feminina negra recebe 40% menos que os homens brancos, as mulheres brancas ganham 35% menos. A pesquisa aponta também que o salário dos homens negros pode ser até 20% menor que o dos homens brancos. No entanto, a mulher negra está sempre no topo da discriminação. ‘Elas sofrem os diferenciais de salário das mulheres brancas, mais o diferencial de salário dos negros, mais um diferencial devido à inserção, mais um enorme diferencial devido à qualificação’, afirma. Soares informa que as pesquisas apontam também que em 30 anos existirá igualdade de salário entre os sexos. Porém, quando o assunto é igualdade entre raças, a situação é constrangedora. ‘Se não houver uma ação governamental eficaz voltada para os negros, esse quadro não irá mudar nunca’’.

Talvez seja querer demais sensibilizar a mídia para o preconceito racial e, mais ainda, a discriminação sofrida pelas mulheres negras. Antes disso será preciso sensibilizar os pauteiros para a situação das mulheres, de todas as cores.

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Jornalista