Nossos representantes no Congresso Nacional não se cansam de nos surpreender. Passou despercebido da grande mídia a apresentação, pelo deputado Alceste Almeida (PMDB-RR), em co-autoria com outros 189 senhores deputados, da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 453/2005, no plenário da Câmara dos Deputados, no dia 30 de agosto último. [Veja aqui a íntegra da proposta.]
A PEC 453/2005 pretende acrescentar ao Artigo 222 um 6º parágrafo com o seguinte texto:
"Não se aplica a este artigo o disposto no artigo 54 da Constituição Federal".
Embora nem o texto da PEC nem a sua Justificativa façam qualquer referência explícita à propriedade de empresas jornalísticas ou de radiodifusão, trata-se, na verdade, de permitir que deputados e senadores sejam proprietários de jornais, emissoras de rádio e de televisão.
A Constituição de 1988 [alíneas (a) e (b). do item I do Artigo 54] proibiu que deputados e senadores mantenham contrato ou exerçam cargos, função ou emprego remunerado em empresas concessionárias de serviço público. Essa restrição já existia também no Código Brasileiro de Telecomunicações (CBT, Lei nº 4117/62), desde 1962, ao determinar que aquele em gozo de imunidade parlamentar não pode exercer a função de diretor ou gerente de empresa concessionária de rádio ou televisão (parágrafo único do Artigo 38).
Pois bem. Como é sabido e notório, vários senhores deputados e senadores – contrariando a norma legal – têm exercido, ao longo dos anos, controle de empresas de radiodifusão, conforme mostrado no artigo "As bases do novo coronelismo eletrônico", deste Observatório.
"Causa própria"
Para evitar ilegalidades ou impedimentos, e abandonando de vez qualquer escrúpulo ético, mais de um terço do total dos senhores deputados encontraram agora uma forma de resolver o problema: propor a mudança da própria Constituição.
Deputados e senadores passariam a decidir diretamente não só sobre as políticas públicas da radiodifusão, mas sobre as concessões e renovações de concessões dos serviços de radiodifusão, sendo eles próprios concessionários "legais" desse serviço público.
O deputado Alceste Almeida afirma em sua justificativa:
"Nosso entendimento é que não se faz necessário tal impedimento, visto que todo o processo hoje – não só nesses casos, mas também naqueles em que as atividades de cunho público se apresentam – é totalmente transparente e acessível a qualquer cidadão e as normas que regem ao acesso (sic) impedem qualquer possibilidade de existir algum tipo de dúvida ou privilégio que possibilite àqueles que preencham os requisitos constitucionais necessários para se estabelecerem".
Omite-se deliberadamente a relação cada vez mais direta e decisiva que existe hoje entre o controle da radiodifusão e o controle do processo político, em particular do processo eleitoral. E omite-se vergonhosamente a questão ética envolvida na PEC 453/2005 – aliás, prevista no próprio Regimento Interno da Câmara dos Deputados (parágrafo 6º do Artigo 180), que diz:
"Tratando-se de causa própria ou de assunto em que tenha interesse individual, deverá o deputado dar-se por impedido e fazer comunicação nesse sentido à Mesa, sendo seu voto considerado em branco, para efeito de quorum".
Os co-autores
A análise detalhada dos nomes dos 189 deputados que subscreveram como co-autores a PEC 453/2005, revela, todavia, algumas situações ainda mais sombrias e indica qual poderá vir a ser o futuro da proposta do nobre deputado Alceste Almeida na Câmara dos Deputados:
1. Trinta e dois (32) desses senhores deputados são hoje membros da Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática, ou seja, mais de 41% (quarenta e um por cento) do total de seus membros titulares e suplentes:
Amauri Gasques (PL/SP), Antonio Cruz (PP/MS), Antonio Joaquim (PTB/MA), Arnon Bezerra (PTB/CE), Carlos Nader (PL/RJ), César Bandeira (PFL/MA), Eduardo Sciarra (PFL/PR), Enivaldo Ribeiro (PP/PB), Eunício Oliveira (PMDB/CE), Gilberto Nascimento (PMDB/SP), Henrique Eduardo Alves (PMDB/RN), Hermes Parcianello (PMDB/PR), Inácio Arruda (PCdoB/CE), Inaldo Leitão (PL/PB), Iris Simões (PTB/PR), João Castelo (PSDB/MA), João Mendes de Jesus (sem partido/RJ), José Santana de Vasconcellos (PL/MG), Leodegar Tiscoski (PP/SC), Leonardo Mattos (PV/MG), Marcelo Barbieri (PMDB/SP), Maurício Rabelo (PL/TO), Narcio Rodrigues (PSDB/MG), Nelson Proença (PPS/RS), Pastor Reinaldo (PTB/RS), Pedro Chaves (PMDB/GO), Raimundo Santos (PL/PA), Ricardo Barros (PP/PR), Romel Anizio (PP/MG), Salvador Zimbaldi (sem partido/SP), Sandes Júnior (PP/GO) e Vieira Reis (PMDB/RJ).
2. Vinte e seis (26) desses senhores deputados já constam hoje do cadastro do Ministério das Comunicações como concessionários de emissoras de radiodifusão:
Átila Lira (PSDB/PI), Bonifácio de Andrada (PSDB/MG), Bosco Costa (PSDB/SE), Cleonâncio Fonseca (PP/SE), Cleuber Carneiro (PTB/MG), Dilceu Sperafico (PP/PR), Francisco Garcia (PP/AM), Gonzaga Patriota (PSB/PE), Henrique Eduardo Alves (PMDB/RN), Humberto Michiles (PL/AM), Jaime Martins (PL/MG), João Magalhães (PMDB/MG), João Mendes de Jesus (sem partido/RJ), Leodegar Tiscoski (PP/SC), Marcondes Gadelha (PTB/PB), Mauro Benevides (PMDB/CE), Moacir Micheletto (PMDB/PR), Mussa Demes (PFL/PI), Nelson Proença (PPS/RS), Oliveira Filho (PL/PR), Paulo Lima (PMDB/SP), Pedro Fernandes (PTB/MA), Ricardo Barros (PP/PR), Robério Nunes (PFL/BA), Romeu Queiroz (PTB/MG) e Severiano Alves (PDT/BA).
3. Pelo menos cinco (5) desses senhores deputados são hoje, ao mesmo tempo, membros da CCTCI e concessionários de radiodifusão:
Henrique Eduardo Alves (PMDB/RN), João Mendes de Jesus (sem partido/RJ), Leodegar Ticoski (PP/SC), Nelson Proença (PPS/RS) e Ricardo Barros (PP/PR).
4. Entre os co-autores da PEC 453/2005 encontram-se parlamentares como o ex-ministro das Comunicações, deputado Eunício Oliveira (PMDB-CE); o deputado Ricardo Izar (PTB-SP), presidente do Conselho de Ética, e o primeiro vice-presidente da Câmara dos Deputados, deputado José Thomaz Nono (PFL-AL).
Vigilância ativa
Uma das fortes características de nosso sistema político é exatamente o vínculo já existente entre a grande mídia e importantes elites políticas regionais e locais. As relações entre grupos familiares e empresários da mídia impressa e eletrônica são conhecidas – sobretudo, mas não exclusivamente – no Nordeste do país.
O que resta, então, à sociedade civil e a todos aqueles que ainda nutrem alguma esperança na democratização das comunicações diante da nova ameaça?
Mobilizar os recursos materiais e humanos disponíveis, acompanhar a tramitação da PEC 453/2005 na Câmara dos Deputados e impedir que ela possa prosseguir e venha, algum dia, a se transformar em norma constitucional.
Mais do que nunca é necessário que os representados fiscalizem a ação de seus representantes no Congresso Nacional. Especialmente na área das comunicações.
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Pesquisador sênior do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política (NEMP) da Universidade de Brasília e autor, entre outros, de Mídia: Teoria e Política (Editora Fundação Perseu Abramo, 2ª ed., 2004)