Ao observar o contentamento de alguns militantes do Movimento Negro e a euforia de alguns setores da imprensa com a aprovação do Estatuto da Igualdade Racial no Congresso Nacional, somos obrigados a refletir sobre o processo de tráfico de seres humanos, oriundos da África, para trabalho escravo no Brasil. Interessante também reparar que a elite, representada nos dias de hoje pelo Partido dos Democratas – que relatou o Estatuto –, é a mesma elite escravocrata instaurada no Brasil há mais de quatro séculos. Por 363 anos, o Brasil institucionalizou uma política de dominação e de crescimento econômico pautados quase exclusivamente no trabalho escravo e no sistemático assassínio de pessoas – que, antes de perderem suas vidas, perdiam as suas referências familiares, culturais e étnicas. Isso sem falar nos muitos milhares de africanos que, ao bel-prazer de seus sequestradores europeus, eram brutalmente assassinados e jogados em alto mar durante as rotas marítimas, que traziam mulheres, homens e crianças para servirem como escravos. A escravidão só foi possível àqueles que sobreviveram à indústria da morte, comandada pelos traficantes europeus.
O Brasil enriqueceu à custa do sequestro, cárcere privado, escravidão, castigos físicos e psíquicos daqueles que formaram e formam – até os dias de hoje – a base econômica e cultural de seu povo. É preciso insistir que o ciclo de sequestros, tráfico, assassinatos e escravidão no país só foi possível porque esta era uma política governamental, portanto institucional, com vistas ao seu crescimento e desenvolvimento econômico. E é sobre este ponto vista que a discussão do Estatuto da Igualdade Racial deve ser centrada.
Justiça não se faz com migalhas
Importante observar também que, ao contrário dos africanos, que vieram pra cá em condição de ‘semoventes’ – nem coisa, nem gente – o governo do Brasil promoveu políticas públicas de incentivo fiscal, objetivando o embraquecimento da população, para italianos, japoneses, alemães e outras nações europeias.
Então, concluímos que os primeiros europeus que vieram para o Brasil, financiados pela coroa portuguesa, e que foram os maiores pagadores de impostos a Portugal, tinham a perspectiva de exploração de riquezas através do trabalho escravo e o tráfico de africanos; ao fim de mais de três séculos, logo após o processo de ‘abolição dos negros’, os outros europeus que chegaram, financiados pelo governo brasileiro, vieram como alternativa de mão-de-obra assalariada, numa proposta eugênica de embranquecimento nacional. Enquanto isso, os ex-escravos ficaram à própria sorte, sem casa e condições de trabalho ou renda.
É impossível discutir Igualdade Racial no Brasil sem levar em conta as reparações aos negros e negras brasileiros descendentes dos sobreviventes da indústria da morte e da servidão no país. Por isso, garantir a titularidade das terras quilombolas deveria ser compreendido como obrigação do governo brasileiro com a comunidade negra; tornar obrigatório o estudo de História da África nas escolas é mais que um dever do Estado – que precisa contar a verdadeira história de seu país e ressaltar as centenas de ícones negros, muitos descendentes diretos de escravos, de nossa sociedade, cultura, artes, literatura.
É preciso que nós, negros e negras, isentos de paixão e utopia, façamos a sociedade refletir sobre ‘a parte que nos cabe deste latifúndio’. Não queremos favores nem benesses. Só queremos que o governo do Brasil reconheça que não se faz justiça com migalhas. Ou temos uma política institucional séria, comprometida com metade da população brasileira, ou não adianta ficar fazendo marolinha com questões como o acesso à Educação e Saúde. Essas últimas deveriam ser prioridade para qualquer governo disposto a reconhecer a importância do povo que construiu a riqueza de seu país.
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Membro da executiva nacional do CONNEB – Congresso Nacional de Negras e Negros do Brasil – e coordenador de Articulação Política do CEAP – Centro de Articulações de Populações Marginalizadas