A crise com a Bolívia foi um banquete para os meios de comunicação, e a imprensa brasileira soube servir-se. Mas houve alguma timidez, no começo. Os jornais poderiam ter avançado mais cedo e com maior entusiasmo – pelo menos depois da entrevista do presidente Evo Morales no Roda Viva, da TV Cultura, em 24 de abril. Naquela noite a maior parte da mesa já estava posta, mas a festa ficou mesmo animada na semana seguinte. No dia 1º de maio, o presidente boliviano anunciou a nacionalização do gás e do petróleo. Pôs em xeque a Petrobras e o governo brasileiro e ganhou as manchetes.
No fim de semana antes da nacionalização, o Estado de S.Paulo publicou uma grande matéria sobre a diplomacia brasileira, mostrando seus tropeços na fase petista. A reportagem foi quase um prefácio ao noticiário dos dias seguintes. As manchetes da terça-feira (2/5) foram fáceis. Evo Morales forneceu o básico e até a cobertura mais pobre poderia ser atraente.
O Globo enriqueceu o noticiário com um material oportuno, formado por texto e mapa, sobre as várias crises sul-americanas do momento. Com isso, abriu o foco e deu uma dimensão maior à cobertura, já no dia 2, ao mostrar a ação de Morales como mais um golpe contra a integração regional.
Previsões quase acertadas
Na terça-feira (2/5), o governo brasileiro reagiu oficialmente à iniciativa boliviana. A reação foi fraca e a imprensa, no dia seguinte, pareceu desconcertada pela nota distribuída em Brasília. A maior parte dos jornais deu destaque ao reconhecimento da soberania boliviana pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem levar em conta que esse não era o miolo do problema.
Seria notícia o governo brasileiro negar, em vez de reconhecer, a condição soberana de um Estado vizinho. O problema era outro. Era, em primeiro lugar, uma questão de direitos e de interesses comerciais e diplomáticos, mas muitos editores, curiosamente, cuidaram do assunto na ordem escolhida por Brasília.
A timidez do governo brasileiro favoreceu o avanço de Morales e, por trás dele, de seu guia espiritual Hugo Chávez. Pode haver dúvida sobre detalhes da história, mas não sobre a participação do presidente da Venezuela no episódio. A maior parte dos jornais mencionou o assunto, mas quase sempre como pano de fundo. O Globo foi um pouco mais fundo no tratamento do tema.
A crise continuou a crescer até a Cúpula União Européia-América Latina e Caribe, em Viena. Não se esperava nada importante dessa reunião e já se previa, semanas antes, que a América do Sul apareceria desunida na conferência. Mais de uma reportagem mostrou o ceticismo dos europeus em relação à utilidade do encontro.
As primeiras previsões de como seria a conferência foram erradas só num ponto. Três semanas antes, imaginava-se que Hugo Chávez seria o protagonista sul-americano. Sua atuação deveria dificultar qualquer negociação conseqüente. Com certeza atrapalharia a reunião Mercosul-União Européia, marcada para o sábado (13/5), depois da conferência de cúpula mais ampla.
Questões de direito
O protagonista acabou sendo não Hugo Chávez, mas Evo Morales. Na quinta-feira (11/5), antes da abertura da cúpula inter-regional, o presidente boliviano deu uma entrevista especialmente agressiva, chamando as petrolíferas estrangeiras de contrabandistas e dizendo que o Brasil comprou o Acre em troca de um cavalo. O governo brasileiro foi forçado a reagir. O ministro de Relações Exteriores, Celso Amorim, deu declarações mais duras que as habituais e Morales acabou, no dia seguinte, recuando e acusando a imprensa de fomentar conflitos entre ele seus amigos brasileiros.
Novamente ficou claro que a crise Brasil-Bolívia, embora importante, era parte de um desarranjo muito mais amplo, que envolve toda a América do Sul. A reunião Mercosul-União Européia foi rebaixada e convertida numa conversa entre diplomatas, porque os presidentes do Uruguai, da Argentina e do Paraguai resolveram não comparecer. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva decidiu que não tinha sentido ir sozinho como representante do bloco. Mais uma vez os jornais foram forçados a abrir o foco para mostrar as crises que comprometem o Mercosul, a Comunidade Andina de Nações (a partir das brigas entre Morales e seus colegas da Colômbia e da Bolívia ) e também a Comunidade Sul-Americana de Nações, uma das crenças do presidente Lula.
A cobertura da crise Brasil-Bolívia tem sido ampla. Tem faltado um pouco mais de articulação do material para que o leitor possa ordenar a leitura mais facilmente. Faltou também um tratamento mais eficiente – e um pouco mais técnico – das questões de direito envolvidas no conflito. Falou-se em violação de contratos, em reparações e em direitos das petroleiras, mas teria sido útil cuidar do assunto com um pouco mais de detalhes.
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Jornalista