Termina à meia-noite de domingo (23/5) o prazo aberto pelo Ministério da Justiça para a consulta pública sobre o anteprojeto do Marco Civil regulatório da internet no Brasil. O documento submetido exame no site do Fórum de Cultura Digital é resultado de uma primeira bateria de consultas sobre o tema realizada no ano passado, que recebeu 822 contribuições. Depois de sistematizados pelo Ministério da Justiça – que trabalhou em parceria com o Centro de Tecnologia e Sociedade da Fundação Getúlio Vargas do Rio – esses comentários ao texto-base redundaram num esboço de anteprojeto de lei que foi novamente levado ao debate público. Uma nova versão do texto deve incorporar sugestões dessa segunda rodada e a previsão é que até o fim de junho o anteprojeto seja encaminhado à apreciação do Congresso Nacional. A minuta do texto pode ser lida aqui.
No início da noite de quarta-feira (19/5), o blog Radar, do jornalista Lauro Jardim, informou que a Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert) solicitou ao Ministério da Justiça a prorrogação por três semanas do prazo para recebimento de sugestões. A se confirmar o pedido, ou o período de 45 dias não foi suficiente para a Abert formular suas proposições sobre o Marco Civil ou a entidade demorou 45 dias para descobrir que uma consulta pública estava em andamento. (Luiz Egypto)
Regular sem censurar, registrar usuários sem invadir a privacidade alheia, proibir o anonimato sem tolher a liberdade de expressão. Lançado em outubro de 2009 pela equipe responsável do Ministério da Justiça, em parceria com a FGV-Rio, o Marco Civil tenta resolver essas questões.
No dia 8 de abril foi reaberto o debate, com base na minuta preliminar de anteprojeto de lei, a partir das contribuições recebidas na primeira fase.
Até aqui o debate promovido via internet já atraiu mais de 37 mil visitas e cerca de 1.700 contribuições. Conheça alguns dos pontos polêmicos do projeto no quadro ao lado.
Durante o seminário ‘Marco Civil da Internet no Brasil’, realizado pelo IDP (Instituto Brasiliense de Direito Público), o diretor de políticas públicas e relações governamentais do Google no Brasil, Ivo Correa, defendeu a criação do Marco Civil, em especial o artigo que isenta os intermediários de culpa sobre o conteúdo gerado por terceiros. Ivo afirmou que o Google possui 1.500 ações judiciais no Brasil hoje, a maioria relativa a conteúdos disponibilizados no Orkut.
‘Em aproximadamente 45% das ações, a empresa foi considerada culpada por conteúdos com os quais o Google não tem nada a ver. O Google não produz um centímetro de conteúdo, com exceção de mapas’, afirmou.
‘Ninguém em sã consciência criaria o Google, o Orkut ou o Twitter no Brasil’, diz Correa. O coordenador do Marco Civil, Guilherme de Almeida, concorda: ‘Para não matar a inovação na internet, o projeto agora diz que apenas a Justiça pode determinar a remoção’.
Durante o mesmo seminário, Gilmar Mendes, ex-presidente e ministro do STF, disse temer que a medida sobrecarregue a Justiça. ‘É preciso discutir a judicialização, não negar acesso, mas encontrar meios alternativos para que as pessoas só procurem os tribunais se necessário’, afirmou.
Registro de IP
Cada computador tem um número único, chamado de endereço IP (Internet Protocol). De forma genérica, ele indica o local de um computador na internet -mais ou menos o equivalente ao CEP de uma casa.
Gravar o endereço IP de uma máquina pode ajudar a identificar um criminoso virtual -mas, por outro lado, também pode significar uma afronta à privacidade do internauta. ‘É uma questão ainda aberta do Marco Civil’ comenta Paulo Rená, gestor do projeto.
Hoje em dia fica a cargo do provedor a decisão de guardar ou não as informações dos usuários, assim como o período durante o qual esses dados serão armazenados. O Marco Civil propõe um prazo máximo de seis meses para esse arquivamento. Mas ainda não prevê prazo mínimo nem sanções.
Anonimato
‘Apenas o anonimato absoluto pode garantir a liberdade de expressão’ diz Frederico Pandolfo, o maior comentarista do projeto.
No Marco Civil, a privacidade está garantida, mas o usuário terá seu IP gravado em servidores. Ou seja, não existirá anonimato se o projeto for aprovado com o texto de hoje.
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Marco Civil tenta garantir direitos iguais
A internet é um meio de comunicação diferente da TV ou do jornal impresso. Ao assinar um provedor de conexão de internet, você tem direito automático ao uso do Google ou de blogs pessoais de seus amigos, sem que nem você nem os sites sejam obrigados a pagar para que isso aconteça.
Você não precisa ‘assinar’ os sites, como assina os canais de TV a cabo, nem pode ter a conexão reduzida quando entrar neste ou naquele endereço.
Esse é o princípio do conceito conhecido como neutralidade da rede, segundo o qual todas as informações devem navegar na mesma velocidade. Nos Estados Unidos, a discussão está no ápice. Afinal, quem usa mais deve pagar mais?
No Brasil, em outro ponto polêmico, o Marco Civil propõe a garantia da neutralidade, que hoje em dia pode apenas ‘ser depreendida da constituição ou de uma leitura extensiva do Código de Defesa do Consumidor’, diz Paulo Rená, gestor do projeto do Marco Civil.
A polêmica está no artigo 12 da seção III: ‘O responsável pela transmissão, comutação ou roteamento tem o dever de tratar de forma isonômica quaisquer pacotes de dados, conteúdo, serviço, terminal ou aplicativo, sendo vedado estabelecer qualquer discriminação ou degradação do tráfego que não decorra de requisitos técnicos destinados a preservar a qualidade contratual do serviço’.
‘O trecho pode abrir espaço para que o provedor continue bloqueando e limitando a banda do usuário para determinadas atividades, desde que justifique como sendo em prol da qualidade do serviço’, afirma Frederico Pandolfo, 25, analista de sistemas, pessoa que mais comentou no projeto. ‘Isso vai dar margem a continuidade do nefasto traffic shaping’, comenta Jorge Zhukov, participante do debate. Victor Hugo, outro comentarista, propõe: ‘Prezados, não seria melhor colocar que o prestador de serviço de internet não deve interferir no tráfego de dados e ser transparente nos procedimentos que ele adotará?’.
O traffic shapping citado por Jorge é um exemplo de violação do princípio. Quem usa com frequência protocolos para downloads de arquivos, como o BitTorrent, sabe o que o termo significa. Alguns provedores limitam a conexão de usuários que ultrapassem um limite de Gbytes para downloads. Outros limitam a velocidade mesmo antes da cota estabelecida ser atingida.
Sem a neutralidade garantida, o internauta pode enfrentar lentidão extrema ao acessar um determinado site de notícias e, ao mesmo tempo, navegar com tranquilidade num site noticioso parceiro do provedor de internet, por exemplo. Em geral, empresas com maior poder financeiro seriam beneficiadas.
‘Imagine que você ligue para a pequena pizzaria da esquina da sua casa, e a primeira coisa que ouve é `você será atendido dentro de 2 minutos, mas caso queira ligar para a Pizza Hut, o atendimento será imediato´’. Quem faz a analogia é Craig Newmark, criador do site Craigslist, exemplificando o que o fim da neutralidade da internet representaria.
Provedores
‘Somos defensores da neutralidade de rede e contra qualquer tipo de filtro. Isso é contra a própria internet’, diz Eduardo Parajo, presidente da Abranet. Mas ele faz um adendo: ‘Desde que não seja explicitamente claro no momento de contratação do usuário’.
Questionado se os contratos não podem ser abusivos, Parajo diz: ‘Isso é consequência de um problema sério que temos: falta de concorrência no setor. Se ele [o internauta] está tendo esse tipo de dificuldade, o ideal é procurar outro provedor’.
Reclame
Em caso de algum conflito com o provedor, o usuário deve procurar órgãos de defesa do consumidor, como o Procon ou o Idec, e até mesmo recorrer à Justiça comum. O internauta também pode denunciar a má qualidade dos serviços prestados por meio de sites especializados, tais como o Reclame Aqui. (Alexandre Orrico)
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Provedores de acesso elogiam iniciativa, mas fazem ressalvas
‘Nós vemos com bons olhos a iniciativa do Marco Civil, principalmente o fato de tornar democrática a elaboração do projeto’. A afirmação é de Eduardo Parajo, presidente da Abranet (Associação Brasileira de Internet), entidade que reúne os provedores de acesso à rede que atuam no Brasil.
A Abranet também fez comentários sobre o projeto. Eles se concentraram na remoção de conteúdo, ponto mais crítico, segundo a associação.
O que motivou a participação da entidade foi o texto do artigo da primeira fase, que delegava ao provedor de internet o dever de notificar e remover conteúdos considerados ofensivos.
‘É a mesma coisa de dizer que a montadora de carros tem culpa num assalto a banco em que o criminoso usou um carro para fugir’, compara. ‘Era algo parecido com o que tem no projeto de lei do Eduardo Azeredo, que nos considerava uma polícia da internet’.
No texto da segunda fase, o artigo foi modificado: agora apenas a Justiça pode ordenar a remoção de conteúdo da rede. ‘Agora ficamos felizes: finalmente está no papel que somos prestadores de serviço e que não somos responsáveis pelo conteúdo gerado por terceiros’, completa.
Aprimoramento
Para a associação, a evolução do projeto merece elogios, mas ele ainda precisa ser aprimorado. Segundo Parajo, o crime do mundo virtual e o do mundo real são a mesma coisa, só muda a localização. ‘Já existem mecanismos legais que coíbam a ação de um caluniador, por exemplo’, diz o presidente.
‘Por isso é legal que o Marco Civil não reinvente a roda e deixe algumas questões para as agências reguladoras e para a lei geral das telecomunicações’, diz Parajo. (AO)
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Analista de sistemas faz 20% dos comentários do projeto do Marco Civil
Computadores, internet e tecnologia de forma geral são temas íntimos do gaúcho Frederico Pandolfo, 25 anos, a pessoa que mais fez comentários sobre o projeto do Marco Civil.
A rotina do analista de sistemas começa ao meio-dia e só termina às duas da madrugada. ‘Só saio da frente do computador para me divertir um pouco e, claro, para fazer as refeições’, diz Pandolfo. Até o lazer é ligado ao computador: jogos antigos como Warcraft 2 e a série Descent ainda encontram espaço na máquina.
Entre uma atividade e outra, ele abre o blog oficial e deixa seus comentários. Ao todo, foram 360 mensagens, mais de 20% de todas as sugestões.
Os artigos sobre privacidade, acesso anônimo e registro dos computadores dos usuários por provedores são o principal alvo dos comentários escritos por Pandolfo. Apesar de suas observações quase sempre serem em tom crítico, ele não é totalmente contra o projeto.
‘De 1 a 10, vou ser neutro, dou nota 5. Apesar de ideias interessantes, tenho receio de que possam ser instrumentos de censura’, alerta.
Na entrevista, concedida por meio de um programa de mensagens instantâneas, ele observou: ‘O pessoal precisa saber que dá para participar, e onde participar’.
Ao ser questionado se o projeto é acessível para todos, ele responde: ‘Se eu consegui, por que outros não conseguiriam? Ao menos tento, né? Ainda acredito que dê para melhorar o Brasil de forma democrática e pacífica’, finaliza. (AO)