Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A privatização subjetiva dos espaços educativos

Venho alertando para a entrada de produtos da mídia comercial e materiais paradidáticos (sem licitação ou processos democráticos de escolha) nas escolas, como forma do que chamo de ‘privatização subjetiva’ do espaço educativo. São produtos, ferramentas e lógicas da modernidade que entram de forma natural no espaço escolar, como uma solução para que a escola acompanhe o ritmo da vida, do cotidiano. E terminam levando ao ambiente educativo visões de mundo, valores e princípios ocultos.

Meu foco são as redes públicas, até porque é lá que podemos reclamar o dever do Estado de intervir para que o ensino não responda a interesses particulares, mas ao interesse público. O que não quer dizer de modo algum que o ensino privado não tenha que obedecer algum tipo de regulamentação. Por isso mesmo, estes dias, uma notícia sobre a rede privada de ensino me chamou atenção.

Na Folha de S.Paulo do dia 8 de julho, a manchete ‘Escola usa professor para promover produto‘ anuncia a entrada da publicidade das escolas por intermédio dos mestres.

A reportagem, do jornalista Daniel Bergamasco, afirma que ‘duas das maiores redes educacionais do país, a COC e Dom Bosco, oferecem seus docentes para ações de marketing que incluem distribuição de brindes na volta às aulas’.

‘Marketing de guerrilha’

Segundo o texto, as próprias instituições enviaram ao mercado publicitário uma proposta de parceria na qual dizem que os professores – ‘promotores de sua marca’ – podem atuar em ações de merchandising nas portas de vestibulares nas quais distribuem brindes patrocinados (como chocolates, sucos e chicletes) e vestem camisetas com as marcas. Os docentes podem também – em sala de aula – entregar produtos com cartões de boas-vindas na volta às aulas ou distribuir atividades extracurriculares no ensino infantil com o logotipo do patrocinador.

Ainda segundo a nota, as escolas não cobram nada e a proposta é a de ‘agradar aos alunos e criar um envolvimento maior com as suas ações’. Não ficou claro se neste trato, em que as escolas ‘não cobram nada’, ninguém sai ganhando. Acho difícil. Pode até não se sair ganhando concretamente, financeiramente. Mas o ganho dos corações e mentes, hoje em dia, para marcas específicas e hábitos de consumo, é mais importante. Isto é que está em jogo.

A reportagem nomeia esta iniciativa de ‘marketing de guerrilha’ e afirma que esta é uma ‘tendência das escolas da cidade de São Paulo, que cada vez mais são alvo desta tática da publicidade por parte de grandes anunciantes, interessados em promover ali produtos de apelo infanto-juvenil’.

Alunos ou consumidores?

Um dos motivos para o apelo às escolas e aos cerca de 4,8 mil professores envolvidos na ação seria o cerco à publicidade infanto-juvenil na televisão. Com mais restrições a este mercado e a ações da sociedade civil de olho na propaganda voltada para jovens e crianças, a publicidade se supera. O mercado vai se regulando e ganhando novos contornos, que parecem naturais. Segundo Vagner Aguilar, diretor de marketing do SEB (Sistema Educacional Brasileiro), que reúne as duas redes e soma 27 unidades próprias e mais de mil associadas pelo país, esta é uma ação de ‘merchandising sutil’. Ele conta que o ‘aluno se sente amparado, pensando: que legal que a escola e essas empresas pensaram na minha prova’, citando as ações realizadas em vestibulares.

Se o Estado não pode proibir este tipo de iniciativa (e quando falamos de escolas privadas fica mais difícil defender a proibição), poderia, ao menos, regular. Se na televisão, a luta é para que todo mershandising seja identificado, seria, no mínimo, coerente que as ações fossem declaradas. Mas, pelo visto, não é assim que ocorre.

Aguilar assume, inclusive, que há uma intenção de a ação ser disfarçada, e ter um ‘contexto pedagógico’ ou ser feita em ocasiões especiais, como Dia dos Pais, início da primavera e a volta às aulas. Técnicas de naturalização da publicidade, como se ela fizesse parte do contexto, parte da vida dos alunos. Ou seria melhor dizer consumidores?

De maneira muito sutil

O diretor de marketing da rede, que tem cerca de 400 mil alunos, afirma à reportagem da Folha que esse tipo de ação ‘funciona muito’ para a marca e é boa para a escola, ‘pois coloca o aluno em contato com as novidades do mercado’. A mesma lógica da naturalização e do pertencimento dos produtos à vida dos alunos. Não se trata somente dos produtos em si, mas de uma lógica de consumo que se traduz em valores, em visões de mundo. E o pior: visões de mundo chanceladas pela escola e pelos professores, responsáveis pela formação destes cerca de 400 mil indivíduos. Para Aguilar, tudo se resume a negócios. ‘O business da escola é formar cidadãos’, afirma ele à reportagem.

Não deu para entender por que a reportagem não ouviu os educadores – os professores e profissionais das escolas. Fiquei curiosa para saber se eles foram consultados ou se são usados como outdoors sem a sua autorização. Se são literalmente vendidos para uma marca – como se vende uma traseira de ônibus – sem ao menos participarem da decisão que levou a iniciativa para dentro da escola. A lei da mordaça só está em vigor para o funcionalismo público e proíbe os professores da rede de dar declarações a meios de comunicação. Mas não está em vigor na rede privada. Então, por que não ouvir os professores?

Uma mãe – que aprova a iniciativa – foi ouvida, assim como o professor da faculdade de Educação da USP Vitor Paro, que critica as ações do gênero e, em especial, o envolvimento dos professores nelas. ‘Isso só mostra como a profissão está degradada. É um absurdo. O que o professor fala em sala de aula é tido como verdade pelos alunos’, afirma o especialista.

Isso mostra também como tudo pode virar mídia para um mercado que não enxerga limites na exploração de mais e mais espaços onde veicular seus produtos e a lógica do consumismo. Hoje, todo espaço público, todo corpo humano, todo cantinho pode virar um meio de divulgar uma marca.

Na escola, talvez mais do que na televisão e no próprio espaço público, a criança percebe aquele discurso como algo positivo e – mais grave – que tem o respaldo de pessoas em quem ela confia. Tudo de maneira muito sutil. Na verdade, oculta.

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Jornalista, mestre em Comunicação e Semiótica (PUC-SP) e doutoranda em educação (FE-USP), assessora de comunicação da ONG Ação Educativa e integrante do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social