Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A reforma fracassou. Viva a reforma!

No mesmo dia dos ataques do crime organizado ao Rio de Janeiro, 28/12/2006, o presidente Lula sancionou a Lei 11.435/2006, que substituiu a palavra ‘seqüestro’ pela locução ‘arresto’ no Código de Processo Penal (CPP). Essa lei estava no bojo da reforma processual que fazia parte do compromisso assumido pelos três poderes ‘em favor de um Judiciário mais rápido e republicano’, documento firmado por Lula, Jobim, Sarney e João Paulo Cunha após a Reforma do Judiciário de 2004. Efeito prático da lei? Nenhum. Há sessenta e cinco anos se sabe que ‘seqüestro’, no CPP, tinha o significado de ‘arresto’. Ela simboliza, contudo, o fim da esperança de que sobrevenham alterações estruturais e significativas do Judiciário brasileiro enquanto os bacharéis estiverem no comando e a mídia for usada por eles.

A imprensa saudou, com algumas ressalvas, a fracassada reforma do Judiciário, há dois anos, como a solução dos impasses jurídicos e políticos de mais de uma década de tramitação do projeto de emenda constitucional no Congresso. Na época dizia-se com outras palavras que, escudada num amplo consenso, a reforma aprovada no final de 2004 poderia levar o Brasil a um novo estágio de desenvolvimento pelo simples fato de a vontade do corpo político ter sido capaz de realizar o que parecia irrealizável, ou seja, vergar o corporativismo dos juízes e, dentre outras coisas, instituir o controle externo do Poder Judiciário – a ser exercido por um novo órgão, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), de composição mista (juízes e representantes da sociedade).

O controle externo

Na linha de frente da luta pela Reforma, O Estado de S.Paulo, talvez seu mais ardoroso defensor, e as revistas Época, Veja e Exame. Na televisão e no rádio, que tendem à mediocridade na cobertura de temas complexos, reproduziu-se a sabedoria convencional sobre a Reforma difundida pelos veículos simpáticos à mandraca judiciária dos doutores Bastos, Renault e Jobim. Era grande o otimismo, para quem não se lembra, capitaneado pelo ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, pelo ministro-político presidente do STF, Nelson Jobim, e pelo secretário da Reforma do Judiciário, Sérgio Renault, que tentou arrumar uma boquinha no CNJ, com apoio do Planalto, mas perdeu na Câmara dos Deputados. Jobim está no ostracismo, Bastos desgastou-se com a série de escândalos do governo e quer voltar a São Paulo. Renault está longe dos holofotes, numa assessoria técnico-jurídica da Casa Civil. Só que a reforma que eles inventaram continua por aí, como um fantasma, a assombrar a imprensa.

Havia, naturalmente, exceções ao otimismo desbragado. Em lúcido editorial, pouco antes da aprovação da reforma, a Folha de S. Paulo advertia em bom português (19/11/2004):

‘O destaque no campo dos bons costumes republicanos, contudo, é o controle externo, pelo qual o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), formado por nove membros do Judiciário, dois do Ministério Público, dois da OAB e dois cidadãos indicados pelo Legislativo, terá a missão de investigar casos de corrupção entre juízes e acompanhar a execução orçamentária dos tribunais. Espera-se que atue num registro menos corporativo que o atual. (…)

Toda reforma não passará de um simulacro enquanto não se ampliarem os juizados de primeira instância, a linha de frente do Judiciário. Também parece relativamente inútil eliminar recursos sem, ao mesmo tempo, encontrar meios de fazer todos os juízes cumprirem os prazos processuais. Por fim, seria preciso diminuir os muitos casos em que é o próprio Estado, parte em 80% dos processos do país, quem faz a litigância de má-fé, tomando medidas meramente protelatórias.

Infelizmente, a reforma não traz remédios contra esses males.’

Descontrole interno

Dois anos depois, a esperança cautelosa da Folha desvaneceu e o otimismo ingênuo dos demais converteu-se em suco gástrico e bile. A atuação do CNJ manteve-se no mesmo ‘registro corporativo’ de sempre. A sessão do conselho que antecedeu o recesso do fim de 2006 levantou a polêmica da apropriação corporativa do órgão, como noticiou O Globo, resignado, na véspera de Natal. Ainda segundo a Folha, o desempenho do CNJ – e de seu irmão siamês do Ministério Público – teria sido ‘ambíguo’, quando chamado a decidir ‘questões importantes’ (26/12/2006). Mais duro, contudo, foi o Estadão, que se sentiu ‘decepcionado’ com o CNJ e externou o sentimento de modo veemente em suas Notas e Informações, a venerável página 3 (08/12/2006):

‘Concebido para promover o controle externo do Poder Judiciário, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) tomou decisões tão corporativas e absurdas ao longo dos últimos meses que está chegando ao paradoxo de se converter num órgão responsável pelo descontrole interno da instituição. Com iniciativas desastradas, exorbitando de suas prerrogativas e muitas vezes passando por cima da Constituição, o Conselho vem decepcionando aqueles que, como nós, desde o início apoiaram firmemente sua criação, por ver nele um mecanismo capaz de modernizar os tribunais.’

Deturpação das funções

A decepção calou fundo no Estadão. A ponto de as críticas se repetirem em mais um editorial recente (01/01/2007):

‘Não foram apenas as tentativas de devolver as férias coletivas à magistratura, de permitir o pagamento de vencimentos acima do teto salarial a juízes estaduais e de pagar jetons aos seus integrantes que levaram o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) a terminar o ano com sua imagem desgastada perante a sociedade. O órgão, que foi criado para fazer o controle externo do Poder Judiciário, também se desviou do rumo original por se converter numa espécie de escoadouro de pretensões e queixas de natureza corporativa, chegando a ponto de ter suas pautas ocupadas por reclamações de juízes de primeira instância que não conseguiram marcar férias no mês desejado.’

Essa perplexidade com os descaminhos do CNJ e da reforma mistura frustração e medo de assumir que boa parte da imprensa deixou-se enganar pelo projeto político de Jobim, que encontrou em Bastos um grande aliado. Ambos venderam à sociedade uma reforma de mentira como se fosse o ‘primeiro passo’ para a construção de uma Justiça eficiente e rápida. Era coisa nenhuma. Não passava de um truque para adiar as verdadeiras soluções. Enganaram até mesmo o professor Joaquim Falcão, da FGV do Rio, um brilhante e combativo militante da causa da reforma. Doutor Falcão, sentado numa cadeira do CNJ, protestou contra o que afirma ser uma deturpação das funções do conselho. Deu em O Globo (24/12/2006):

‘No dia 5 de dezembro, diante de uma pauta composta basicamente por reclamações individuais sobre o resultado de concursos públicos para tribunais, o conselheiro Joaquim Falcão se revoltou. Ele defendeu que fosse instituído um mecanismo de repercussão geral, segundo o qual apenas casos de relevância para todo o Judiciário poderiam ser discutidos pelo CNJ.

Aqui só se discutem casos individuais, concursos. Temos que mudar isso – disse Falcão, em tom exaltado.’

O gene da apropriação corporativa

O doutor Falcão estudou em Harvard. Mas não entendeu corretamente o texto da Emenda Constitucional 45, de 30 de dezembro de 2004, que introduziu a Reforma do Judiciário. Pode ter lido com pouca atenção, mas de boa-fé, por confiar em que a mudança constitucional, pontapé inicial da estratégia da trinca Jobim-Bastos-Renault, libertaria as forças políticas e administrativas necessárias para virar a Justiça do avesso e oferecer aos brasileiros um serviço decente, digno dos bilhões de reais destinados à manutenção dos tribunais federais e estaduais. Ele foi traído, pois todas as causas da exaltação do doutor Falcão, reverberadas pela imprensa hoje ‘decepcionada’, estão ali no texto mesmo da reforma.

Numa analogia com a biologia que me parece adequada ao caso, o gene da apropriação corporativa do CNJ esconde-se na péssima redação da Emenda Constitucional 45/2004. A leitura superficial de seu texto dá a entender, com muita clareza, que o CNJ seria, como veio a tornar-se, um gigantesco tribunal administrativo ‘pau pra toda obra’. Além de servir de porta de entrada no Supremo Tribunal Federal para qualquer controvérsia entre juízes, servidores e a administração dos tribunais sobre férias, concursos, jornada de trabalho, assédio moral, licenças-prêmio e outras ‘questões irrelevantes’ como disse O Globo, piorando a situação da cúpula do Judiciário, em vez de aliviá-la.

Não se aplica a lei no vácuo esterilizado

Ora, está no texto da reforma que o CNJ controlaria a legalidade dos atos administrativos (todos, sem exceção) dos tribunais, e que as ações contra o CNJ seriam (todas, sem exceção) propostas no Supremo. É razoável pressupor que os juízes conhecem o direito – jura novit curia, se dizia no tempo que os advogados manejavam o latim – e agem como indivíduos racionais que buscam a maximização de seus interesses, como faria qualquer sujeito com a possibilidade de obter vantagens lícitas mediante a utilização de mecanismos jurídicos.

Essa combinação revelou-se explosiva. Em vez de buscar nas instâncias ordinárias a anulação de atos dos tribunais, os candidatos à magistratura, servidores da Justiça e juízes decidiram aportar no CNJ e, de lá, pular direto para o Supremo. Abriu-se uma espécie de via rápida para a defesa dos interesses corporativos e individuais de um grupo que está dentro do sistema – no centro (juízes) ou na periferia (candidatos de concursos). Antes da Reforma do Judiciário, só o Poder Público, por meio de remédios processuais exclusivos, podia saltar instâncias.

A norma que cria um órgão sempre expressa um programa, um conjunto de instruções sobre o que e como o órgão deve fazer, semelhante às informações codificadas no DNA. Entretanto, as condições ambientais exercem igualmente uma influência muito grande sobre a maneira como o órgão desempenha sua função.

Assim como ocorre nos organismos em geral, a evolução do CNJ não depende apenas do genótipo, ou seja, do programa normativo contido no texto constitucional. A norma jurídica há de incidir sobre uma realidade, do mesmo modo que o organismo, formado segundo o que se contém no DNA, vive num dado ambiente. Não se aplica a lei no vácuo esterilizado, ou numa tabula rasa, como se a ordem social fosse infinitamente plástica, moldável por Bastos-Jobim-Renault ou por qualquer outro reformador. Há valores, interesses e relações de poder muito bem estruturados, que resistirão a determinados modos de aplicação da lei e favorecerão outros. Ou se conta com isso ao elaborar uma lei, ou a lei ‘não pega’, como sói acontecer no Brasil.

Cultura jurídica perversa, vazia e retórica

Pois bem. Na estratificada sociedade brasileira viceja, como se sabe, o corporativismo, verdadeira praga nacional, o que facilita de vários modos a captura do CNJ por interesses dos servidores públicos – especialmente dos juízes – em detrimento do interesse público em sentido mais amplo. Ficou por conta do otimismo sincero de uns e do oportunismo político de outros a ingênua concepção de que um conselho formado em sua maioria por magistrados teria realmente condições de agir contra os interesses da classe.

Não é que os juízes sejam especialmente malvados ou insensíveis. A questão é outra. Numa sociedade hierarquizada que perdeu mobilidade, sem desenvolvimento econômico suficiente há vinte e cinco anos, a confortável situação dos juízes constitui o que alguns economistas chamam de ‘bem posicional’, ou seja, um bem cuja oferta é finita, que não pode ser desfrutado por todos ao mesmo tempo sem perder valor.

Vejamos um exemplo. Se todos os brasileiros puderem ser chamados de ‘Vossa Excelência’, como os juízes, o tratamento perderá a razão de ser, que é marcar a diferença. De maneira que parece ser do interesse da corporação impedir a diminuição de qualquer fração do ‘bem posicional’ correspondente à condição de magistrado. Do pronome de tratamento às férias coletivas, tudo o que diz respeito à magistratura obedece, grosso modo, à mesma lógica.

Além disso, por ter sido forjado em moldes corporativos, o CNJ tem na composição somente bacharéis em direito. Nenhum representante de segmentos alheios à administração da justiça – nada de sociólogos, economistas, administradores, psicólogos – num órgão que deveria ser uma espécie de cérebro, estrutura capaz de planejar, coordenar e executar mudanças no modo como são geridas as cortes no Brasil. Até que especialistas de outras áreas são ouvidos às vezes nos ‘diagnósticos’ elaborados pela Secretaria de Reforma do Judiciário do Ministério da Justiça e entregues ao CNJ.

É difícil, porém, afirmar que se trata de verdadeiro ‘controle externo’ se todos os que têm o poder de decidir no CNJ são vítimas da perversa cultura jurídica nacional, vazia, retórica e obcecada por formalidades inúteis. Eles compõem, para alguns fins, uma e a mesma corporação: a dos bacharéis que literalmente vivem da Justiça.

Imprensa comprou gato por lebre

Da série de episódios que comprovam a incapacidade de controlar, de fato, o Poder Judiciário num ambiente em que há apenas bacharéis, resolvemos pinçar um. Nas discussões do regimento interno do CNJ, em junho de 2005, um representante da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) sugeriu que o nome do cargo deveria ser ‘ministro-conselheiro’, a exemplo dos juízes de tribunais superiores. Para o bem de todos, a idéia estapafúrdia foi rejeitada. Nomes de cargos, por sinal, foram uma dor de cabeça também na tramitação da reforma do Judiciário e, não raro, servem de pretexto para reivindicações corporativas, especialmente equiparações salariais. Nós, os brasileiros, somos nominalistas e barrocos; e nada mais nominalista e barroca do que a cultura jurídica vulgar que se transmite nas péssimas obras ‘científicas’ e nas ainda piores faculdades de direito.

Inteligentes, os patrocinadores da reforma sabiam de tudo isso. Mas se omitiram porque o ‘prêmio’ político da aprovação de uma emenda que se arrastava por treze anos no parlamento era maior do que o risco de afrontar o corporativismo bacharelesco, produzindo um texto que, na interação com o ambiente, tivesse o resultado esperado e contrário ao ocorrido: a modernização do Judiciário.

A imprensa brasileira comprou gato por lebre. Agora assiste, espantada, ao espasmo da reforma que não foi. Se pelo menos a mídia se convencer, com algum atraso, de que um país não se muda apenas com mais leis, menos ainda com leis ruins, então haverá esperança. A reforma fracassou. Viva a reforma!

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Procurador da República em São José dos Campos, SP, aluno do Programa de Estudos Pós-Graduados em Direito da PUC-SP e ex-repórter da Gazeta Mercantil