‘A leitura do jornal é a oração matutina do homem moderno.’
(Hegel)
‘A religião e o jornalismo são as únicas forças verdadeiras. Quando se diz
que o jornalismo é um sacerdócio, diz-se bem […] O jornalismo é um sacerdócio
porque tem a influência religiosa dum sacerdote.’. (PESSOA, 1972,
p. 283)
‘Todos [no jornal] para ele eram sagrados, seres superiores… pois viviam
naquela oficina de ciclopes onde se forjavam os temerosos raios capazes de ferir
deuses e mortais.’ (BARRETO, 1984, p. 31)
‘Se acaso algum dia eu vier a lhes faltar…’ [Frase atribuída a Roberto
Marinho pelo folclore jornalístico]
Um dos fenômenos que mais me chamou a atenção no cotidiano das redações foi o
parentesco cultural entre jornalismo e religião, camuflado sob mil
manifestações. Evidentemente, não se trata de um componente religioso strictu
sensu. No entanto, do ponto de vista antropológico e até psicológico, a
cultura nos jornais apresenta fortes traços de uma religião secular, embora o
jornalismo se proclame adepto da dúvida iluminista e não da crença.
De onde se origina a afinidade entre o jornalismo e a religião? Parece-me
haver uma camada de fundo, a que denomino ‘religiosidade’, onde o ser humano
(não importa se ateu ou crente) elabora sentidos para sua existência – aí
incluída a atividade profissional. Georg Simmel (1858-1918), filósofo e
sociólogo alemão, define a religiosidade como uma capacidade humana que engloba
a totalidade da existência e lhe confere sentido (1997, p.4). Poderíamos
comparar a religiosidade a uma glândula psíquica cujos hormônios
são os sentidos da existência, valores e as formas de religião, arte e
solidariedade.
Por predisposição pessoal, por ethos da profissão ou por tradição
histórica, a religiosidade do jornalista secreta um sentido de missão que
envolve a promoção da verdade e da justiça e a transformação de estruturas
sociais. Mesmo o jornalismo não sendo formalmente ‘uma religião’, a
religiosidade nele presente produz mística, rituais e procedimentos
profissionais que são afins com aspectos religiosos. A religiosidade é
ambivalente, pois, embora seja uma energia que mantém o espírito dos
profissionais, pode abrir as portas à exploração de mais-valia, pelas
empresas.
Raramente a religiosidade na atividade jornalística é percebida com clareza,
embora a maioria dos profissionais que entrevistei apresente uma consciência
difusa dessa dimensão. Segundo Rubens Matos, redator de Economia da Folha de
S. Paulo, ‘a pretensão de ser a totalidade da realidade existe em todo
jornal. Praticamente todo dono de jornal se julga o dono da verdade, o messias
que tem uma missão a levar para a frente. Isto se deve à impressão que ele tem
de possuir um poder de manobra sobre o todo. Isso tem a ver com o aspecto
religioso’ [em depoimento ao autor (OBS: trechos dos depoimentos estão em
RIBEIRO, J.C. ‘Sempre Alerta…’ – sua íntegra não foi publicada)].
Embora se admita ‘uma pessoa completamente não-religiosa’, Otávio Frias
Filho, diretor de Redação da Folha, percebe ‘ingredientes calvinistas’ em
sua atitude e temperamento e que ‘sem dúvida, o jornalismo tem um componente
religioso’ [em depoimento ao autor]. Nesse particular, Frias Filho se
assemelha ao predecessor, José Nabantino, de quem reconhece a influência, e que
foi definido como um empresário protestante típico. O ex-diretor de Redação do
Estado e da FSP, Cláudio Abramo, que também exerceu influência
sobre Frias Filho, foi descrito por Mino Carta: ‘Havia qualquer coisa de místico
nesta vigilância interior, exercida entre o fígado e a alma – se não me engano,
seu filho disse `calvinista´ quando ele morreu'(ABRAMO, 1998. p. 7).
Júlio César Mesquita, publisher de O Estado de S. Paulo, afirma
nunca ter pensado sobre esse assunto. Enfatizando o dogmatismo na religião, ele
isenta seu jornal dessa postura: ‘Fazer lavagem cerebral nunca foi nosso
objetivo. O Estado tem o direito de ter a opinião dele sobre qualquer
situação e as pessoas têm o direito de discordar’. Mesquita talvez se contradiga
ao atribuir à imprensa uma função de omniopinião que, no limite, é
religiosa: ‘Eu quero um jornal para me orientar, ter uma referência para a minha
vida, mesmo que eu discorde dele. Não considero isso religião, mas todo mundo
tem que ter crenças na vida, valores’ [em depoimento ao autor].
Em sua história do The New York Times, Gay Talese (1969, p. 7) aponta
uma sutil atmosfera religiosa no cotidiano da imprensa. Até a década de 60, o
jornal era encarado como uma catedral de quieta dignidade, o altar de Adolph
Ochs, o reformador do jornal, em que ecoavam suas palavras de sabedoria: ‘O
NYT era a Bíblia de todas as manhãs, que os leitores aceitavam como a
realidade e a verdade. Esta fé cega fazia muitos timesmen como monges’.
Embora o jornal apresentasse a dualidade comercial/ editorial, ele conseguira um
equilíbrio: ‘O setor comercial é o lado mundano do santuário de Ochs. Em 1915, o
jornal estava tão rico que podia rejeitar anúncios em prol de notícias de última
hora. Ochs dirigia um grande negócio e uma teocracia. O dinheiro deveria ficar
em um andar diferente do seu templo’ (TALESE, 1969, p. 74).
A religiosidade no jornalismo pode ser detectada em vários âmbitos.
A ‘teologia‘
Vigora nos veículos da grande imprensa uma onisciência seletiva. Não é
uma onisciência absoluta, mas que remete a ‘tudo o que é importante’. Esse
conhecimento universal deriva de uma onipresença, também, seletiva, e que
abarca cada jornalista, cada empresa de notícias e o conjunto da imprensa. Mesmo
que um profissional não possa estar em todos os lugares, ele amplia sua presença
através das fontes; se o concorrente chegar primeiro aos fatos, seu jornal
providenciará para que ele lá esteja, logo em seguida. Assim, o jornal estará em
todos os lugares… importantes.
A empresa de notícias exerce sua típica onipotência ao selecionar – de
dentro da massa dos eventos que ocorrem durante um dia no mundo inteiro – alguns
acontecimentos que considera dignos de chegarem ao público. Agindo assim, o
jornal se transforma no centro de um universo, menor e mais cintilante, o qual é
devolvido no dia seguinte, impresso, à parcela leitura da sociedade, em cujo
conjunto os fatos nasceram como matéria-prima, antes opaca e agora tornada
inteligível. ‘É isso o que os jornais dizem toda manhã: renuncie ao mundo
gigantesco e inatingível demais para qualquer pessoa individualmente e adote
este artifício como se ele fosse, de fato, o mundo’, sintetiza Lins da Silva,
então diretor de Redação da Folha (1988, p.25) Assim a imprensa torna-se
uma ‘expressão abreviada da vida coletiva, a maneira como uma sociedade se
pensa’, na definição de Vernant para religião (1983, p.66).
Os jornais operam uma criação do mundo, se não em sua totalidade e
materialidade, pelo menos em seu significado social. Essa criação se faz através
do verbo. Vivemos no mundo tal como a linguagem o representa: é ela a guia para
a realidade social e condiciona nosso pensamento. Essa pretensão de inovar a
escrita, ou criar uma escritura, é visível nos manuais de redação, que pretendem
legitimar as licenças lingüísticas a que um jornal se considera autorizado.
A ancoragem da imprensa no tempo também lhe confere um patamar de eternidade,
pois a sucessão ininterrupta de edições configura um permanente retorno ao
eterno presente. Essa característica é base da sua dimensão ritual. Por sua
forma repetida, rítmica e tangível, os rituais dão concretude e reforço às
crenças religiosas, ensina Durkheim (1978, p. 526). Nessa direção, Warren Breed
(COHN, 1971, p. 229) afirma que a mídia, através do ritual padronizado e
repetido de sua disseminação periódica, tem função semelhante à da religião.
Ao revestir-se de peculiar onisciência, onipresença, onipotência e eternidade
e ao produzir seus rituais, o jornalismo assume funções religiosas. Esse
parentesco fica evidente quando consideramos que, etimologicamente, à palavra
‘religião’ são atribuídos três significados:
**
relegere, reler, prestar particular atenção a algo. Assimcomo a religião, o jornalismo promove uma releitura, uma interpretação e
seleção, atos que são o mecanismo original dos rituais;
**
religare, religar, reunir o que se encontradisperso/distante. Neste sentido, o jornalismo aproxima fatos da mesma natureza,
ao longo de várias edições tece um fio condutor com a evolução de um mesmo fato;
coloca acontecimentos distantes ao alcance do leitor, aproxima indivíduos
isolados, ao fornecer-lhes um referencial comum. Essa é a base teológica do
conceito de aura, analisado por Walter Benjamin. A capacidade da imprensa diária
de religar contrapõe-se à dispersão presente nos telejornais;
**
reeligere, reeleger, escolher de novo, renovar a adesão apoderes superiores. Aqui entra em jogo o duplo compromisso entre um jornal e seu
leitor: do jornal com a verdade (e com o leitor); do leitor com seu jornal, ao
adquiri-lo diariamente.
Os agentes
Os componentes religiosos penetram o comportamento cotidiano dos agentes
envolvidos na produção de notícias, desde os donos de jornais até várias
categorias de jornalistas.
Empresários – Werner Sombart (1972, p. 227) mostra como o espírito
capitalista começou a amadurecer na classe dirigente a partir do século XIII,
com a ajuda de doutrinas filosóficas e religiosas. Os burgueses florentinos, por
exemplo, baseavam-se na filosofia estóica, que recomenda a administração da
conduta vital e considera virtude economizar de corpo e alma. Segundo Sombart
(1972, p. 246), a influência decisiva veio da moral tomista, que propõe a
racionalização como meta de vida. No século XVII, devido às lutas decorrentes da
Reforma, a pregação era fonte de um imenso temor, que se tornou base da
metodificação da vida e do combate à ociosidade. O espírito religioso dos
comerciantes e industriais do século XVIII penetrava o mais íntimo da atividade
econômica. Os livros alemães de comércio consideravam o lucro uma bênção de Deus
e ser rico era considerado decorrência direta da vontade divina (SOMBART, 1972,
p. 237).
Na mesma direção, Max Weber estuda a estreita relação entre as idéias e
práticas religiosas e o desenvolvimento do espírito capitalista. Ele aponta
como, inseguro frente à sua salvação ou condenação final decretada por um deus
arbitrário, o calvinista típico procurava desesperadamente sinais de sua
eleição. Ser bem-sucedido no mundo era o principal sinal do favor divino. O
sucesso os impelia a trabalhar cada vez mais para provar a si mesmos sua
condição de eleitos. Essa teologia impunha grandes exigências psicológicas
(VELHO, 1987, p. 435).
A ética protestante penetrava a vida profissional do empresário e também a do
operário e lhes impunha uma rígida disciplina moral. Max Weber (1980, p. 209,
228) aponta como o metodismo do fim do século XVIII teve o impacto de uma
reforma monástica; com sua ênfase na operosidade e na frugalidade, contribuiu
para o florescimento da indústria inglesa. Na visão weberiana, o ideário de
Benjamin Franklin é a explicitação de uma filosofia utilitarista que se impunha;
com seus textos, pela primeira vez na História propôs-se um ethos
comercial e não uma mera técnica. ‘O discípulo de Franklin não retira nada de
sua riqueza para si mesmo, a não ser a sensação irracional de haver `cumprido´
devidamente a sua tarefa’ (WEBER, 1980, p. 199). A ascese protestante pôs à
disposição do burguês ‘trabalhadores sóbrios, conscientes e incomparavelmente
industriosos, que se aferravam ao trabalho como a uma finalidade de vida
desejada por Deus’ (WEBER, 1980, p. 230). Traços dessa ascese podem ser
encontrados no comportamento do restaurador do The New York Times.
‘Decerto Ochs tinha trabalhado duro, sendo um indomável homenzinho sem
interesses externos ao jornal […] ele esperava que seus herdeiros dirigissem
The Times não apenas pelo lucro, mas que encarassem o jornal como uma
grande igreja’, relata Talese (1969, p.13). Segundo Ricardo Moraes, ex-editor de
Economia da FSP, esta exigência é responsável pelo clima nas redações,
semelhante ao de igrejas, exércitos ou partidos únicos: ‘Muitas coisas erradas
devem ser cumpridas porque a hierarquia está acima de tudo. O Otávio dá mais
valor à hierarquia que à notícia: tem de cumprir a pauta, sem discutir. Um
`pedido´ da direção é uma ordem’ [em depoimento ao autor].
A tendência da direção dos jornais é aliciar os jornalistas para seus
propósitos. Mino Carta aponta como o Projeto Folha, implantado em 1981, ‘não
mira no leitor a não ser como segundo alvo, mais distante no espaço e no tempo.
O primeiro alvo é o próprio profissional da Folha a ser moldado a `um
novo tipo de jornalismo diário´, como dizem os evangelhos [grifo meu] da
Alameda Barão de Limeira, onde fica a sede do jornal’ (SILVA, 1988, p. 216).
O tempo passa a ser entendido apenas como matéria-prima do jornal, e não como
algo de que o jornalista possa dispor. É ilustrativo o verbete ‘fora de
serviço’, do Manual da Folha:
Mesmo quando não está em horário de trabalho, o jornalista está investido do
mandato que lhe é delegado pelo jornal e a este pelos leitores. Se tiver
conhecimento de algum fato que possa assumir interesse jornalístico, deve
comunicá-lo imediatamente ao jornal; se presenciar alguma ameaça ou violação de
direitos, deve intervir, anunciando sua condição de jornalista. Estando ou não
em missão jornalística, os jornalistas são os olhos e os ouvidos do leitor
(1984, p. 42).
O uso da expressão ‘missão jornalística’ sugere uma conotação religiosa à
expressão ‘olhos e ouvidos do leitor’. Se lembrarmos que, no contexto comercial,
‘leitor’ é sinônimo de ‘consumidor’ e componente essencial do mercado, veremos
que, no universo semântico da empresa de notícias, a expressão ‘mandato do
leitor’ pode significar mandato do deus-mercado. Em artigo na Folha de
S. Paulo (19/06/92), intitulado ‘A mística do mercado’, Delfim Netto
apontava: ‘Generalizou-se a idéia de que o `mercado´ é uma instituição religiosa
capaz de produzir o bem a despeito dos homens maus’.
O Manual da Folha consigna a expectativa de que o jornalista esteja
sempre alerta, num estado de crispação permanente, que ameaça siderar o
conjunto de sua vida e negar-lhe qualquer dimensão de autonomia. Confira-se o
verbete ‘contato com o mundo’ (FOLHA DE S. PAULO, 1984, p. 25): ‘Livros, cinema,
viagens etc. são pontes entre o jornalista e o mundo, do qual ele não pode
isolar-se. Observar cada detalhe à sua volta, conversar com pessoas diferentes e
fazer perguntas – aos outros e a si mesmo –, mesmo quando não está trabalhando,
são hábitos que o jornalista deve cultivar’.
Em minha vivência nas redações, presenciei companheiros que sacrificavam
desnecessariamente suas férias em prol do trabalho, chefes que telefonavam para
redatores durante a folga de ambos para resolver questões do trabalho, e ouvi
relatos sobre repórteres que foram trabalhar num dia em que a redação estava
fechada. Lins da Silva aponta como isso ocorre: ‘Exige-se uma adesão ideológica
enorme e uma dedicação que não é de um mero profissional. Você tem de ficar no
jornal um número de horas muito maior do que em qualquer outro lugar’ [em
depoimento ao autor].
Corpo sacerdotal – Essa quase-fé cria nas equipes uma mística semelhante
à de um corpo sacerdotal. Entre os jornalistas, há os que exercem funções
próximas às de guardiões da tradição e das normas e às de profetas, detentores
de carisma e de segados – a maior parte deles cercada por confrarias de
neófitos. Tal configuração se toma mais crítica e é cercada por um clima de
exaltação e temor nos momentos de sucessão, em que hierarquias são subvertidas,
tradições são substituídas, novas éticas e novas alianças se consolidam.
Parte essencial da implantação do Projeto Folha foi a formação de um
núcleo dirigente, ao qual foi atribuída a tarefa de cobrir a distância
entre o regime anterior, qualificado como de amadorismo técnico e proselitismo
político, e o seu reverso, a ser então implantado. Nas palavras de Otávio Frias
Filho (SILVA,1988, p. 96), ‘alguém vai ter de fazer a ponte. O profissionalismo
não surge por geração espontânea. Surge pelo esforço extraordinário de um
pequeno grupo de pessoas que forma outras pessoas, adota uma atitude exemplar,
corrige, cobra, critica, modifica’. Lins da Silva dá depoimento que, em
fevereiro de 1987, foi feito um ‘cálculo informal’ de quantos jornalistas
fechavam integralmente com o Projeto, ‘com quem a direção pode contar acima de
dúvidas’. Chegou-se à conclusão de que entre 30 e 60 jornalistas poderiam ser
considerados ‘massa crítica’. Mas o grupo ao qual caberia a missão de ‘fazer a
ponte’ não chegava a doze pessoas. Chamo atenção para o paralelismo: a cúpula do
Projeto seria formada por pontífices, cuja adesão estaria acima de
dúvidas, e não chegava a doze – assim como os apóstolos de Jesus. No nível mais
alto de fidelidade, os jornalistas contavam com a confiança, o favor e um
salário muito superior aos da base. À massa são destinados critérios rígidos:
seus erros são cobrados energicamente e todos vivem sob a ameaça de
demissão.
Presenciei processo semelhante no Estado. Ao assumir como diretor de
Redação, em 1988, Augusto Nunes logo tratou de substituir a maioria dos editores
existentes; os recém-chegados dedicaram-se a desmontar as equipes anteriores e a
trazer seus conhecidos. Em pouco tempo, a equipe era outra. Nunes procura
justificar-se:
Tive dificuldades previsíveis aqui no Estado. Primeiro, porque não
queria trazer uma `tropa de ocupação´, porque é uma agressão aos que já estavam
aqui. Depois, porque daria a impressão de que eu estava trazendo os `príncipes´,
enquanto a `plebe´ estava ganhando mal. O que fiz foi trazer pessoas de fora,
com salário maior para subir o teto e fazer um salário médio, porque os que
havia aqui estavam muito aviltados. Nas editorias eu acho que [grifo meu]
vigora o critério de qualidade. Não interfiro em contratações de editor para
baixo e cobro dele para que monte a equipe como quiser. [em depoimento ao
autor]
Ocorre que, logo após a chegada de Nunes, impôs-se um congelamento prolongado
dos níveis salariais de quem já trabalhava no jornal, desproporcionalmente
inferiores aos de quem era recém-convidado, mesmo que não tivesse experiência ou
competência para o cargo. ‘Salário médio’ é, portanto, uma falácia estatística.
Embora no varejo haja maior condescendência para com os escolhidos, a médio
prazo a contrapartida é um inaudito grau de adesão. Algo que já estava presente
no Projeto Editorial da Folha, de 1981: ‘Sugerimos que todos os que
exercem cargos de chefia ou funções de confiança façam uma opção permanente –
disponham-se a abraçar em definitivo o projeto do jornal como uma missão a ser
cumprida a cada dia, com afinco, aplicarão responsabilidade, ou que desistam do
cargo, por discordância ou por inapetência […] Para os que optarem por
permanecer no núcleo dirigente, deve ficar claro que se elevará o nível das
exigências e das solicitações’. (FOLHA DE S. PAULO, 1981, p. 5)
Carisma e revelação – Devido a sua característica simbólica, o jornalismo
necessita de figuras carismáticas, capazes de transferir à publicação uma feição
própria, uma cor emocional. Entendo carisma como um poder fora do habitual, que
se faz acompanhar de um estado de extraordinária excitação emocional. À
semelhança dos profetas, essas personalidades fortes exercem seu carisma –
relacionado a informações exclusivas, ou a um texto transgressivo, ou a
liderança de opinião – mediante a autorização do alto clero, com o qual mantêm
uma relação ambivalente, em que se combatem e legitimam. Para funcionar, o
carisma precisa da fé e do reconhecimento dos seguidores. Weber aponta que, para
quem o detém, o carisma só reconhece limites que ele mesmo se coloca; sem
legitimações externas a si próprio, o herói carismático precisa provar
continuamente o seu valor, do que resulta um poder extremamente instável.
No caso do jornalista carismático, a necessidade de legitimação é em parte
satisfeita através da publicação, se possível diária, de suas matérias
assinadas. Segundo Paulo Francis – ele mesmo herdeiro de um jornalismo
carismático da década de 50 – ‘os jornais tinham uma personalidade e os
jornalistas também. Hoje, os últimos mais me sugerem celebridades que fazem um
determinado `número´ dentro de formatos predizíveis, raramente `fazendo fora do
penico´ […] A irresponsabilidade é da essência do jornalismo criador’ (FOLHA
DE S. PAULO, 1986, p. 29)
De qualquer forma há, submerso, mais potencial carismático dentro de uma
redação do que a empresa de notícias conseguiria suportar. A localização dentro
de um espaço editorial privilegiado, a assinatura de matéria, a atribuição de
pautas especiais em condições adequadas à sua realização – tudo isso é objeto de
autorização exclusiva do alto clero. Apenas a alguns é dada a liberdade,
e até o estímulo, de romper com as regras dos manuais e expressar suas opiniões.
Aos redatores iniciantes, a primeira recomendação é ‘mexer o menos possível’ no
texto dessas personalidades. Esses jornalistas carismáticos reforçam o poder
burocrático, pois, com freqüência, proclamam que seu jornal ‘dá liberdade aos
jornalistas’. A licença não é generalizada: ao tomarem a sua parte pelo todo da
categoria, fabricam uma mera figura de linguagem.
Ao assumir o carisma como sua inteira propriedade, o jornalista corre o risco
de, ingenuamente, deixar de perceber a mudança das condições em que foi
autorizado a exercê-lo. Ricardo Kotscho relata o gesto de Tarso de Castro, logo
após a Campanha das Diretas: ‘A turma que participou disso ficou muito
conhecida, como foi o caso do Tarso, do Clóvis Rossi, eu. Daí vem o Otavinho e
demite o Tarso, que era um porra-louca, mas que participou diretamente da
Campanha e escrevia o que queria na coluna dele. A gente se dirigia diretamente
ao Velho [Octavio Frias, pai], que ficava muito à vontade conosco. O Tarso foi
demitido por telefone porque tinha escrito em sua coluna um texto, `O filho do
dono´, esculhambando o Otavinho’ [em depoimento ao autor].
Uma das origens do carisma do jornalista é ser bem informado, conhecer fontes
que lhe façam revelações exclusivas, inacessíveis à maioria absoluta dos mortais
– o público em geral e, sobretudo, seus colegas. Esses informantes fazem parte
do repertório secreto do profissional e ele não os revela a ninguém. Anunciar
uma revelação é um momento altamente contraditório. Para ser bem informado, um
jornalista precisa contar com seu talento e experiência pessoal. Mas pesa muito
o fato de ele estar possuído pelo mandato do jornal: o repórter será mais bem
atendido na relação direta do prestígio do veículo em que trabalha. Ao ir à rua,
ele assume socialmente a personalidade, a aura da empresa de notícias – afinal,
ninguém faz reportagem em nome próprio. Ora, se o repórter retornar com uma
informação que vale a pena, seu poder só será reconhecido se ele o alienar de
si, se ele entregar seu segredo. E nesse momento – e mais ainda quando for
publicado – deixará de ser segredo, para se tornar uma revelação, já não mais do
jornalista, mas do jornal. Muitas vezes, o repórter tem o sentimento pessoal de
que é mesmo um mensageiro da verdade que, no entanto, lhe é necessariamente
expropriada pelo jornal. A onisciência, frustrada pela impotência, é um processo
diariamente reiterado.
Iniciação e ‘possessão‘ – O ingresso na profissão é repleto de
rituais e configura quase que uma possessão. Os neófitos do jornalismo passam
por uma fase de espera que pode durar muito tempo. Antes da informatização, em
muitos jornais esse noviciado era cumprido no setor de revisão. A chegada de um
jornalista novo à redação é marcada por rituais de iniciação, próprios de cada
equipe e cada empresa. Transferido para um universo profissional, o neófito é
submetido a um tríplice isolamento. Primeiro, de si mesmo: suas vivências
não contam para o trabalho padronizado que vai realizar. O que se espera de quem
chega a uma redação – seja iniciante ou não – é o cumprimento da tarefa da forma
como lhe é atribuída, e não a maneira diferente como a realizava anteriormente.
Ora, como o recém-chegado não tem experiência profissional, em geral as novas
tarefas e a filosofia que as regem são assimiladas sem filtros ou resistências.
Lins da Silva ressalta: ‘É provavelmente verdadeiro que as pessoas de faixas
etárias mais baixas tenham menos dificuldade para se adaptar a situações novas,
pelo simples fato de que seu repertório cultural é mais limitado e sua
dependência em relação aos padrões vigentes é menor’ (1988, p. 56).
O segundo nível de isolamento refere-se ao tempo/espaço normal. O
ritmo de trabalho é marcado por uma tarefa movida a solavancos e arranques,
entremeados de fases de marasmo; o tempo natural é rearranjado pelo fato de o
jornalista fazer hoje o jornal que sai amanhã, que fala no tempo presente de
fatos passados. A redação torna-se um espaço fechado, dotado de saberes e regras
próprias e, apesar de tudo, protetor, devido ao poder que possui e que transfere
a quem nele trafega. Quem realiza a tarefa, no entanto, não se localiza frente a
ela: o repórter não sabe a localização e as dimensões da sua reportagem, o
redator ignora de antemão o teor do texto que deverá fazer caber no desenho da
página.
Em terceiro lugar, isolamento frente ao corpo social. Voltado para as
questões da sociedade, devido às exigências de ritmo e de horário de trabalho, o
profissional está condenado à segregação frente a sua comunidade e também a uma
integração estreita com seus pares. Ele ainda se isola frente ao leitor que é
pouco mais que uma quimera: reduzindo o leitor à sua dimensão mercadológica, a
imprensa só o conhece estatisticamente.
Envolvido por dois movimentos complementares – isolamento social e imersão na
redação – o jornalista estreante pode sofrer uma possessão. Não uma possessão no
sentido estrito, entendida como intervenção mística e teatralizada de um
espírito no corpo ou na mente de um indivíduo. Trata-se de um estado discreto,
provocado por influência superior e caracterizado por alterações afetivas, em
que a pessoa perde momentaneamente o controle de sua identidade e pode
apresentar comportamentos anômicos, fora de lugar e dos padrões cotidianos. Essa
possessão assume a forma do discurso de um Outro mítico, a priori
superior e poderoso; tal estado consagra as crenças que o apóiam e sedimenta a
posição social do hospedeiro humano [a possessão está estudada por
Lévi-Strauss em Antropologia estrutural (1967)].
No jornalismo, essa possessão discreta se manifesta através de rituais de
identificação grupal – desde posturas corporais e formas de vestir padronizadas,
passando por fórmulas de texto, chegando até a valores vitais. A referência são
‘entidades superiores’: as chefias, o ideário da própria empresa, as estrelas do
jornal. Na Folha, o curioso hábito de Frias Filho jogar a caneta girando
para o alto e apanhá-la com habilidade, mesmo que esteja olhando em outra
direção, era um hábito que era imitado, com maior ou menor sucesso, por diversas
pessoas. Também Paulo Francis foi modelo de uma legião de assumidos imitadores;
no Estado era reproduzido o modo de se expressar de Nunes – chamado de
‘senador’ pelos mais próximos. Ele comenta:
Existem tribos que se expressam de modo igual. A turma da Gazeta
Mercantil fala `carro de praça´, `aeroplano´, que é o modo de falar do
Roberto Muller. A turma do Mino Carta usa as expressões italianas dele; o
pessoal do Elio Gaspari usa o sotaque dele – no telefone todos se parecem. Você
vai assimilando o modo de falar, de se vestir. A redação é sempre muito parecida
com seu diretor [em depoimento ao autor].
Kotscho atesta que na campanha presidencial de 1989 ‘era possível sacar quem
era da Folha pelo jeito de perguntar, de se apresentar; eles chegaram a
cortar o cabelo igual ao do Otávio. Na Veja tinha uma porção de gente
querendo imitar o Gaspari no jeito de escrever e até de falar’ [em depoimento
ao autor]. Lins da Silva aponta o uso de gravata por quase todo mundo na
redação da FSP como ‘parte da liturgia [grifo meu], como um certo
vocabulário, brincadeiras e modo de fazer reuniões’ [em depoimento ao
autor]. Ricardo Moraes considera que ‘a redação da Folha tende a
reproduzir essa coisa meio dark, sombria, do intelectual voltado para si
mesmo, do Otávio, que é uma pessoa muito contida, e essa tristeza é uma coisa
cultivada. Se for muito alegre, muito brasileiro, já vai pegar mal’ [em
depoimento ao autor].
Rituais
Como se vê, o campo jornalístico está repleto de rituais, que entendo como
comportamentos simbólicos formalizados e prescritivos, sem conseqüências
tecnológicas diretas. Os rituais são uma forma privilegiada de comunicação, um
código a ser decifrado. Por isso, as ciências humanas não os consideram como
comportamentos meramente cristalizados, mas os tratam como um processo produtor
da essência do social, obtida a partir da transformação de fatos do domínio da
vida cotidiana em fatos do domínio do extraordinário, do significativo para a
vida social. Ao darem sentido aos fatos da vida social, cabe aos rituais pôr em
relação – ação própria da religião. Por isso, são considerados a mais elementar
manifestação da vida religiosa. Durkheim (1978, p. 514) ensina que os rituais
são maneiras de agir que nascem no seio dos grupos sociais e que são destinados
a suscitar, a manter ou a refazer certos estados mentais desses grupos.
Há uma afinidade entre os rituais e o jornalismo: ao reforçar o carisma de
instituições e pessoas, e ao suscitar uma predisposição favorável no público, os
jornais servem de suporte à fabricação de mitos. O jornalismo participa da
transmutação de fatos da esfera privada em acontecimentos socialmente
significativos. Assim, a imprensa põe em relação vários grupos sociais: por isso
ela é, em si mesma, um ritual. Esse é o significado da frase de Hegel, em
epígrafe.
Um dos mitos que o jornal fabrica é de que o leitor participa de seus
segredos. Lazarsfeld e Merton questionam esse aspecto:
Este amplo suprimento de comunicações é capaz tão-somente de fazer surgir uma
preocupação superficial com os problemas da sociedade, superficialidade que
muitas vezes encobre a apatia da massa. O indivíduo limita-se a ler relatos de
questões e problemas […] O cidadão interessado e bem informado pode
congratular-se consigo mesmo em razão de seu elevado estágio de interesse e
informação […] Acaba confundindo conhecer os problemas com fazer algo a seu
respeito. Sua consciência social permanece imaculadamente pura. Está preocupado.
Está informado e depois do jantar vai dormir’ (in COHN, G., 1971;
239).
O substrato ritual do jornalismo revela-se numa multiplicidade de
manifestações no cotidiano do trabalho jornalístico. São rituais de discurso, de
situação, lugar e tempo. Os rituais que explicitam a possessão (como roupas,
postura corporal, modos e atitudes profissionais), apontados acima e ativamente
fabricados pela empresa, têm a função de produzir estados mentais – que tanto
podem ser a mística da missão, a submissão ou a identidade/resistência grupal e
individual. No limite, delimitam uma moldura de poderes: os rituais têm sido o
caminho mais natural de impor relações e camuflar conflitos, já que não
interessa à empresa tornar patente a extração de mais-valia, impossível de se
fazer sem que haja um mínimo de adesão. Os rituais permitem traçar uma geografia
do sagrado (‘protegido, perigoso’), cujos símbolos principais e locais de
concentração são a redação e o prédio da empresa. A dimensão ritual da redação
será analisada adiante.
O prédio da empresa, templo de segredos, é protegido por guardas, contra
violações e intrusão. No caso do Estado, os guardiões circulam armados
pelo edifício sem, contudo, suscitar espanto aos da casa; sua atuação torna-se
mais ríspida e ostensiva nas fronteiras – as portarias –, onde selecionam quem
pode ou não entrar. O prédio ressumbra uma emoção sagrada que se torna mais
poderosa à medida que os empregados o comparam com suas condições de
moradia.
A simples existência do edifício emite uma mensagem de poderio do jornal e,
ao mesmo tempo, do despoder dos indivíduos que nele passam a maior parte do dia
e, freqüentemente, o consideram uma outra moradia. É como testemunha Sílvio Le
Sueur, do Estado: ‘Quando se trata de ver a geração passada, basta
atravessar a rua, olhar a imensidão deste prédio e meditar que nunca perdemos a
liderança do mercado, que atravessamos as crises, inclusive financeiras’ [em
depoimento ao autor].
Mística
O discreto clima místico, presente no ambiente jornalístico e que se
cristaliza em torno de experiências como missão e sofrimento, é alimentado pelas
empresas e assimilado pelos jornalistas. Embora não corresponda mais à realidade
de uma atividade que se industrializou, essa mística pode tanto ser fator de
resistência profissional como, transformada em fantasmagoria, contribuir para a
extração de mais-valia coberta por uma gloriosa capa.
Em vários dos depoimentos que colhi, há uma tênue consciência de que o
jornalismo tem uma missão superior a cumprir. Nas palavras de Raul Drewnick,
é comum se dizer que o jornalismo é um sacerdócio. O jornalista se dedica
tanto à profissão que ela acaba sendo uma religião. Se o jornalista não se
afastou muito dos princípios que o levaram a abraçar a profissão, é como uma
religião [em depoimento ao autor].
Essa convicção é confirmada por Clóvis Rossi, repórter especial e
editorialista da Folha: ‘O jornalismo continua sendo uma vocação’. Rossi
admite haver níveis diferentes de envolvimento: ‘Esse espírito ainda existe,
embora haja gente que fica sentada na redação, esperando que a `grande
reportagem´ lhe caia no colo’. Essa mística, avalia, muda com o momento
histórico: ‘Antigamente, a idéia de romantizar a profissão, de que nós éramos os
grandes heróis na luta contra a ditadura, levou a exageros: antes também havia
gente acomodada. Mas creio que a coisa da missão não se esgotou’ [em
depoimento ao autor].
Augusto Nunes também reconhece um forte elemento místico no jornalismo:
‘Nossa profissão tem elementos de seita; é uma certa forma saudável de loucura.
Você não ganha tanto para ser tão obstinado e tão apegado à integridade, como
ocorre aqui’ [em depoimento ao autor]. A mística comporta uma forte dose
de ascetismo e de valorização do sofrimento, que confere um glamour à exploração
sofrida. O psicoterapeuta e jornalista Rui Fernando Barbosa afirma que ‘faz
parte do meio profissional e é muito valorizada a situação de sofrimento; se o
cara chega cedo em casa, tem horários, ele já fica angustiado, porque o bonito
na profissão é sofrer’. A analista Regina Mascarenhas avalia que o ‘sacerdócio
da notícia’ é uma forma sutil de violência: ‘Os jornalistas trabalham 24 horas
por dia. Numa festa, no bar, no cinema; há sempre uma pauta que pode sair desse
ou daquele contato. A profissão ocupa tanto o tempo que a pessoa não pode
exercer seus papéis de homem, mulher, pai, mãe, amigo’ (Revista Imprensa
XV, p. 24).
Do depoimento de Ricardo Kotscho pode-se deduzir que a mística serve à
manutenção econômica das empresas de notícias: ‘É graças ao romantismo de gente
como eu que os jornais sobrevivem. Ninguém vai trabalhar como eu, por doze,
catorze horas por dia. Tem que ter essa paixão. É claro que os empresários não
têm mais isso, ao contrário dos antigos empresários, para quem o jornal não era
apenas um meio de ganhar dinheiro, mas um instrumento de luta política’. Kotscho
considera, porém, que mudaram as condições para que a antiga mística volte a
florescer:
Antes o sujeito ia trabalhar no Estadão, na Folha ou JB,
vestia a camisa e ficava lá vinte, trinta anos. Ele achava que a empresa era
dele, era ele. Hoje, a alta rotatividade afasta a pessoa para outras
atividades: de parte a parte, não tem mais nenhum ideal. O jornalismo hoje é uma
outra profissão, bem diferente de quando eu comecei: virou uma fábrica de
salsicha [em depoimento ao autor].
Apesar das mudanças no quadro geral da profissão, muitos jornalistas ainda
acreditam no mito do trabalhador militante, libertário e independente. Para
Márcia Glogowski, editora de Cidades do Estado, tal situação é sinal de
um conflito não resolvido: ‘Lá no fundo, o foca mais inexperiente ou o veterano
já decepcionado com a vida acham que têm uma missão. Sua função não é salvar o
mundo, mas é defender o interesse do dono do jornal; o jornalista tem uma idéia
da sua missão, mas precisa amoldar-se à empresa e não há como ficar com a utopia
de que ele vai escrever o que quiser. Esse conflito é permanente e não
resolvido. Isso porque o jornal deveria mesmo ajudar a melhorar o País e
denunciar sempre, sem se preocupar com o anunciante’ [em depoimento ao
autor].
Essa divisão entre imaginário romântico e realidade empresarial deixa o
profissional dividido, angustiado. A psicanalista Maria Rita Kehl, que já foi
jornalista, considera que ‘o jornalista é estimulado o tempo todo para a
onipotência e, ao mesmo tempo, sente uma impotência total. Ele se identifica com
o jornal, mas ele não é seu. Ele se identifica com a política, mas não a exerce.
Ele se identifica com a verdade, mas em sua busca é cotidianamente ferido’
(Revista Imprensa XV; 25).
Sobre esse conflito, que não começou hoje, Cláudio Abramo já projetava um
olhar desencantado. Como contraponto a uma mística nascida daquilo que a
profissão deixou de ser. Abramo propõe uma visão mais ética e não mágica, mais
realista e consciente das limitações:
O jornalismo é um meio de ganhar a vida, um trabalho como outro qualquer; é
uma maneira de viver, não é nenhuma cruzada. E por isso, você faz um acordo
consigo mesmo: o jornal não é seu, é do dono… No jornalismo, o limite entre o
profissional como cidadão e como trabalhador é o mesmo que existe em qualquer
profissão (ABRAMO, 1988, p.109).
Referências
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Educação e doutor em Ciências Sociais-Antropologia pela PUC-SP; pós-doutorado em
Sociologia das Religiões pela EHESS e pela Unicamp; professor titular pelo
Departamento de Teologia e Ciências da Religião da PUC-SP