Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

A verdade se alevanta

A imprensa já tem uma garantia: há juízes no Pará que reconhecem a importância da crítica. Jornalista que procede corretamente na fiscalização do poder, em nome da sociedade, abordando temas de interesse público, pode exercer o seu ofício. É a posição firmada pela juíza da 7ª vara penal de Belém. Ela está sozinha ou demarca uma nova posição no judiciário?

A liberdade de imprensa ainda não foi varrida do Pará. Esse é o principal significado das decisões tomadas no final do mês passado pela juíza da 7ª vara penal de Belém, Odete da Silva Carvalho. Ela rejeitou todas as cinco queixas-crimes que lhe foram submetidas, tendo-me como alvo, por Ronaldo e Romulo Maiorana Júnior, principais executivos do grupo Liberal.

As ações tiveram como pretexto artigos que escrevi em vários números do Jornal Pessoal. Algumas das matérias noticiavam e analisavam a agressão que sofri em 21 de janeiro de 2005, praticada por Ronaldo Maiorana, diretor-editor corporativo do grupo Liberal, além de – estranhamente – presidente da Comissão em Defesa à Liberdade de Imprensa da OAB do Pará, mantido no cargo na atual gestão.

Fui surpreendido pelos murros e chutes de Ronaldo (19 anos mais moço do que eu, que tenho 57), quando almoçava com amigos no restaurante do Parque da Residência, onde a Secretaria Estadual de Cultura tem sua sede, diante de pelo menos 150 pessoas. O agressor contou a cobertura de dois suboficiais da Polícia Militar, que há vários anos atuam como seus seguranças particulares. Um deles também me agrediu. Nada lhes aconteceu, nem na Auditoria Militar, nem na corporação. Não estavam no exercício da função quando do incidente, concluiu o IPM (Inquérito Policial-Militar), sem se perguntar se eles não deviam estar trabalhando no quartel, onde estavam lotados.

Outros artigos trataram da origem do império de comunicação, formado por Romulo Maiorana a partir da década de 60, depois de atuar no comércio de Belém e nele ser associado ao contrabando, fato que iria complicar sua relação com o governo federal, na época do regime militar, sobretudo durante a concessão do canal sete de televisão. Em virtude do veto dos órgãos de informação, Romulo teve que organizar uma outra empresa, a TV Belém, colocando-a em nome de cinco funcionários. Quando a restrição foi eliminada, os donos da TV Belém transferiram o canal para a TV Liberal, registrada em nome de RM, que a partir daí conduziu pessoalmente todos os seus negócios.

Direito da prova

Os artigos também criticavam o procedimento editorial do grupo Liberal, subordinado aos seus interesses comerciais. Quem não se submete a esses interesses pode ser vítima de campanhas de descrédito, como aconteceu com a Companhia Vale do Rio Doce, Banco da Amazônia, Rede/Celpa e Universidade Federal do Pará. Acertadas as contas, a vítima da véspera se transforma subitamente em herói, sem que o grupo Liberal se sinta obrigado a prestar explicações à opinião pública. Os veículos de comunicação das Organizações Romulo Maiorana desrespeitam o direito de resposta de terceiros, ignorando as cartas que recebe quando elas lhes são incômodas ou as questionam.

Os Maiorana requereram à justiça meu enquadramento na Lei de Imprensa, de 1967, pelos crimes de injúria, calúnia e difamação, que eu teria cometido nos artigos. Numa das ações, os autores se declararam ofendidos porque também me referi à agressão que sofri como espancamento. Não puderam negá-la, mesmo porque o fato foi reconhecido em outra ação pelo próprio Ronaldo Maiorana: ele aceitou pagar uma multa de 6,5 mil reais, estipulada pelo Ministério Público do Estado, em transação penal da qual o MP foi o autor (na forma de cestas básicas destinadas a instituições de caridade), para se livrar do procedimento penal.

Nesse processo, a vítima não fala, exceto para dizer se aceita ou não um acordo (que rejeitei), conforme estabelece a lei que instituiu esses juízos especiais, em 1995. Mas os Maiorana disseram que houve ‘apenas’ agressão e não espancamento. A diferença (que, evidentemente, inexiste, pois se trata de sinônimos, tanto na linguagem comum quanto na terminologia jurídica) serviria de pretexto para o enquadramento legal e o ressarcimento pelo dano moral sofrido pelo agressor – e não espancador. Um processo mais para o kafkiano do que para o judicial.

Em todas as cinco ações instruídas pela juíza da 7ª vara penal, os Maiorana se limitaram a apresentar o exemplar deste jornal que motivou as queixas. Não juntaram qualquer outro documento nem produziram qualquer tipo de prova. Apenas na primeira das ações, quando ainda em tramitação pela 16ª vara criminal (de onde todas acabaram sendo transferidas quando a titular, Maria Edwiges de Miranda Lobato, reconheceu sua suspeição.por mim suscitada), Ronaldo Maiorana compareceu a uma audiência. Depois, tanto ele quanto Romulo Jr. não se apresentaram mais. Os oficiais de justiça sequer conseguiam ter acesso a eles para intimá-los dos atos processuais, para alguns dos quais suas presenças eram indispensáveis.

Não produzindo provas e ignorando as audiências, durante as quais poderiam esclarecer as falhas e obscuridades de seus pedidos, responder a perguntas e apresentar suas razões, os Maiorana pareciam certos de que lhes bastava pedir para serem atendidos. Uma vez protocoladas as petições iniciais, minha condenação viria por gravidade, impulsionada pelo poder do grupo Liberal, ao qual todos têm que se submeter. Daí a marca insólita dessa demandas: os autores das ações completamente desinteressados de promover sua tramitação, recusando-se até a serem intimados sobre os procedimentos.

Havia abundância de provas nos autos, tanto na forma de documentos (inclusive oficiais) como em provas testemunhais, e nos meus depoimentos. Fiz questão de ser interrogado em todos os processos, inclusive pelos advogados dos meus algozes. Sempre que cabível, pedi para exercer o direito de provar minhas afirmativas, através da exceção da verdade. Apresentei documento comprovando cada um dos trechos dos artigos inquinados de ofensivos, algumas vezes extraídos maliciosamente no meio de uma frase. Em uma das ações, a frase supostamente ofensiva foi desmembrada do conjunto do parágrafo porque exatamente a seguir eu oferecia as provas do que dizia.

Base nos fatos

Examinando com equilíbrio e sensatez os volumosos autos, a juíza Odete Carvalho entendeu, ao sentenciar uma das queixas-crime, que minhas matérias jornalísticas ‘foram fundadas em fatos reais e amparadas pela tutela legal da Lei de Imprensa e da Constituição Federal, além de pautadas, exclusivamente, pelo interesse público’. Logo, não tinham o ânimo de ofender, não atribuíam falsamente crimes, não extrapolavam os limites legais e estavam perfeitamente ao amparo das garantias constitucionais ao direito de expressão e de crítica.

Rejeitando todas as preliminares que argüi, inclusive a nulidade da dispensa arbitrária – pela julgadora anterior – da minha principal testemunha de defesa, Déa Maiorana, à revelia da minha disposição para ouvi-la, a dra. Odete Carvalho examinou o mérito de todas as ações. Em duas delas a magistrada não conseguiu identificar provas ou tipificação para punir o réu. E declarou perempta outra ação porque o autor, Ronaldo Maiorana, mesmo intimado, não compareceu à audiência designada para ouvi-lo. Essa foi a única vez em que um oficial de Justiça conseguiu localizar um dos Maiorana: em todas as outras ocasiões, os servidores eram simplesmente barrados à frente da sede do jornal ou informados que os irmãos não estavam ou viajavam.

As sentenças da juíza da 7ª vara penal contrastaram com as anteriormente lavradas e com decisões da juíza da 16ª vara penal em ações dos Maiorana – e de outros autores, contrariados por matérias do Jornal Pessoal. A juíza Maria Edwiges de Miranda Lobato, titular da 16ª vara, que é a especializada nos crimes de imprensa na comarca de Belém, depois de se manifestar sistematicamente contra mim, foi obrigada a reconhecer sua suspeição quando levantei sua tendenciosidade. Uma representação que fiz contra a magistrada ainda está sendo apreciada pela Corregedoria Metropolitana de Justiça.

As ações foram então redistribuídas. Além das cinco que couberam à 7ª vara, há uma ação em tramitação perante a 3ª vara e outra na 10ª, ainda pendentes de decisão. Os Maiorana também requereram indenização por danos morais e materiais, pelos mesmos motivos, em quatro ações protocoladas no Fórum Cível, uma das quais foi rejeitada, por insubsistente. Em todos os casos, cíveis e penais, eles têm recorrido à instância superior, do Tribunal de Justiça. Agora, no órgão recursal, diante do colegiado de desembargadores, a franquia conferida pelo juiz singular vai ser submetida a um novo teste: há mesmo liberdade de imprensa no Pará?

Quem escreve baseado em fatos, comprovando o que escreve, na defesa dos mais legítimos interesses públicos, vai poder continuar o seu sagrado ofício, tutelado pela Constituição, mesmo quando precisar enfrentar um grupo com poder tão grande como os donos das Organizações Romulo Maiorana? Ou a vontade deles continuará a ser lei nesta terra, abençoada por Deus, mas infelicitada por sua péssima elite?

Com a palavra, agora, o TJE.

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Jornalista, editor do Jornal Pessoal (Belém, PA)