Todo ano, a mesma vergonha. Santa Catarina, estado brasileiro com índices invejáveis em tantas áreas – na pujança de sua economia, no desempenho das pequenas propriedades, com destaques valiosos na cultura e nas artes, no esporte; com líderes políticos de renome nacional – tem que passar por isso: apresentar ao Brasil e ao mundo a abominável farra do boi.
Que a imprensa busque a opinião de figuras cuja voz é ouvida e faça reboar suas declarações condenando a farra. Duvido que uma personalidade como o tenista Gustavo Kurten aprove tamanha safadeza que esses insensatos fazem na farra do boi. Que escritores como Edla Van Steen, Salim Miguel, Maria Odete Olsen e Sérgio da Costa Ramos – os dois últimos com espaços diários na televisão e nos jornais de Santa Catarina – sejam ouvidos sobre o tema. Afinal, é a terra catarinauta apresentando uma coisa horrorosa como a farra do boi.
Que seja dado espaço, não apenas aos que praticam o horror, mas aos que dele discordam e o condenam, pois, no Brasil, entre as funções da imprensa está a de educar e formar os cidadãos. Mesmo que seja pela denúncia associada às alternativas para erradicar os males que registra e comenta.
Corruptos e trapalhões
Este ano, a farra do boi voltou ao proscênio, como ocorre todos os anos. ‘Doze pessoas permanecem presas no Presídio de Florianópolis, acusadas de depredação de patrimônio público, durante uma farra-do-boi, no município de Porto Belo’, informava Tina Braga na versão online do Jornal do Brasil ( 5/4/04).
Os sadistas, além de maltratarem o pobre animal, ainda investiram contra os carros da Polícia Militar, na tradicional desordem que tinha o fim de liberar um boi para martirizá-lo com requintes de crueldade na madrugada de domingo (4/4). Para proteger o animal e cumprir a lei estadual que em boa hora proibiu a farra, os policiais formaram uma barricada. Foram, então, agredidos com pedras e paus pelos – como direi? — manifestantes. Cinco adolescentes foram conduzidos ao Juizado de Menores.
O confronto lembrou os tempos em que os catarinenses politizados impediram que a arrogância do governo do general João Figueiredo homenageasse o marechal Floriano Peixoto, que comandou a covarde execução de catarinenses que já se haviam rendido sob promessa de anistia, nos célebre embates da Revolução Federalista de 1893.
Até hoje, ainda que o episódio não seja devidamente conhecido do resto do Brasil, a memória catarinense brota e lembra, com tristeza e amargura, o quanto teve que desconfiar das autoridades republicanas. E é neste contexto que deve ser entendido o que se passou em Florianópolis cerca de cem anos depois da Revolução Federalista, no último governo militar pós-64.
No governo João Figueiredo, o próprio presidente quase foi agredido fisicamente por populares. Seu ministro das Comunicações, César Cals, pagou o pato pela audácia e pela ignorância dos auxiliares do general-presidente. Quando hoje são criticados os enganos e trapalhadas de auxiliares do presidente Lula – que devem ser criticados, evidentemente, mas não com o implícito de que apenas este governo comete os deslizes –, é freqüente que sejam esquecidos os desmandos e agressões dos tempos da ditadura.
Também os generais tiveram seus trapalhões e seus corruptos. O general Médici demitiu um governador – do Paraná – e seu governo recolheu uma edição inteira da Veja, que mostrara as fotos e transcrevera os diálogos entre o próprio governador e o homem forte de uma empreiteira, numa praia do Rio de Janeiro, tratando das comissões.
Regime de cotas
É neste contexto que a farra-do-boi deve ser examinada. Como é que um estado tão culto e politizado ainda passa pela vergonha da farra-do-boi? Talvez porque proibi-la, como sempre, foi pouco. E a educação, a conscientização? Os governos gastam tanto com publicidade que apregoam as excelências dos seus maioriais. Gastem também com uma campanha que preceda a Páscoa e advirta para o escândalo que todo ano, nesta época, é planejado e executado.
O mais doloroso é registrar que dois adolescentes também integravam a turba da farra-do-boi. Os hospitais da região, certamente já assoberbados de serviços para atender os doentes, ainda são obrigados a tratar de feridos de um confronto que durou mais de quatro horas, espalhando o pânico entre a população e provocando engarrafamento de trânsito nas vias de acesso a Porto Belo e municípios vizinhos, em outras épocas tão festejados por suas belezas naturais e boa acolhida aos turistas.
Além de uma campanha a ser veiculada nos meios de comunicação social, escolas e universidades poderiam empenhar-se mais no estudo e na pesquisa da rica e complexa cultura catarinense, que contou com a afluência açoriana, africana, italiana, alemã, polonesa e de diversas outras etnias, com o fim de educar o povo para os novos tempos, os de consolidação de uma sociedade democrática.
Do jeito que desaba a farra do boi sobre os brasileiros, parece que os açorianos, que tantas contribuições deram a Santa Catarina e ao Brasil meridional, legaram-nos apenas a farra do boi, tamanha é a devastação que faz no imaginário popular.
Em tempo
Qual foi o regime de quotas que garantiu o êxito descomunal e estonteante da ginasta Daiane dos Santos? O de Pelé? O mesmo que ensejou as glórias literárias que são Machado de Assis, Lima Barreto e João Antônio! Nas quotas tão controversas, que a universidade examine estes êxitos. A única reserva é a que garante apoio ao talento e à disciplina, não a demagógica manipulação de estigmas de classe social travestidos de preconceitos raciais!