Eliza Samudio provavelmente vai fazer parte de uma estatística que coloca o Brasil acima do padrão internacional: o assassinato de mulheres (são dez por dia no nosso país) por motivos torpes. Elisa – por enquanto considerada desaparecida – é a ex-namorada (ou amante, como preferem alguns jornais e revistas) do goleiro Bruno, do Flamengo.
O estudo Mapa da Violência no Brasil 2010 mostra que as taxas de assassinatos femininos no Brasil são mais altas do que as da maioria dos países europeus, cujos índices não ultrapassam 0,5 casos por 100 mil habitantes, mas ficam abaixo das nações que lideram a lista, como África do Sul (25 mulheres em cada 100 mil). No Brasil são 4,2 mulheres por 100 mil habitantes: ‘Quanto mais machista a cultura local, maior tende a ser a violência contra a mulher’, diz a psicóloga Licursi Prates em matéria publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo (4/07/2010). Segundo o estudo, mulheres são mortas por questões domésticas: os assassinos são atuais ou antigos maridos, namorados ou companheiros. ‘Por serem ocorrências domésticas, às vezes a prevenção é mais difícil’, disse a delegada Elisabete Sato, chefe da divisão de Homicídios do DHPP, ao jornal.
O caso de Eliza Samudio poderia até não vir a ser parte das estatísticas de mulheres assassinadas, mas já figura entre os dados de agressão. Em outubro de 2009, ela foi entrevistada pelo jornal Extra, do Rio de Janeiro, depois de prestar queixa de agressão (por parte do goleiro Bruno). Na época, grávida de cinco meses, ela declarou ter sido drogada e espancada pelo goleiro, que teria feito ameaças de morte a ela – e suas amigas – caso fizesse denúncia de maus-tratos por parte dele (e seus amigos).
A notícia, então, não repercutiu. Afinal, tratava-se apenas de mais uma mulher agredida pelo companheiro. Nem o fato do agressor ser uma celebridade, tão ao gosto da mídia, causou repercussão maior.
Intimidação ‘de arma em punho’
A história de Eliza só virou manchete depois do seu desaparecimento e foi capa de Veja desta semana. Uma história sórdida, onde não há mocinhos. Ao falar da moça, a revista mostra Eliza como uma ‘maria chuteira’ (mulheres que estão sempre atrás de jogadores de futebol) e termina, por meio da análise de um psicólogo, dizendo que ela sofria (ou sofre) de um distúrbio chamado transtorno de personalidade dependente. Como explicou à Veja o psicólogo Antonio de Pádua Serafim, do Hospital das Clínicas de São Paulo, ‘a pessoa passa a ser dominada por pensamentos obsessivos pautados pela ameça de perda e tenta, a todo custo, reconquistar o objeto do desejo’. Dava a impressão de que era uma daquelas matérias em que a vítima era analisada, julgada e condenada. Como no tempo em que os homens matavam mulheres, alegavam legítima defesa da honra e saíam impunes do tribunal.
Mas, felizmente, a revista escapou dessa armadilha ao falar do goleiro Bruno. O goleiro, entrevistado pela revista, declarou ter conhecido Eliza numa orgia (‘Tinha mulher, homem, amigas dela, jogadores, uma p…. Essas festas são comuns no nosso meio.’) e disse: ‘Rezo para que Eliza apareça. Quando isso acontecer, se eu for o pai, vou brigar pela guarda, porque abandonar uma criança é coisa que não se faz.’ Concedido o direito de defesa, a revista fala do acesso de fúria do jogador quando Eliza ameaçou tornar púbica a gravidez e diz, no condicional, que ele ‘teria intimidado a ex-amante de arma em punho’.
Motivo torpe
Mas, de toda a matéria especial de Veja, talvez o melhor seja o box ‘Famosos acima da lei’. Logo no início, diz que ‘Bruno Fernandes é o terceiro jogador do rubro-negro a protagonizar um caso de polícia nos últimos meses’. Todos, segundo a revista, ‘tratados com a complacência habitualmente reservada aos jogadores famosos pegos em flagrante desvio de conduta’. Depois de citar os casos envolvendo jogadores, a revista conclui: ‘Diante de tanta naturalidade perante comportamentos que beiram o banditismo, parece natural que alguns craques ajam como vêm agindo – como se estivessem acima da lei.’
Talvez essa complacência policial explique por que a delegacia encarregada do exame toxicológico feito em Eliza em outubro (para saber se ela tinha sido forçada a ingerir medicamento abortivo) só agora tenha sido divulgado. Errou a polícia, mas errou também a imprensa, que não deu a menor importância à denúncia feita por Eliza quando ela dizia que tinha sido drogada pelo jogador que, segundo ela, se declarou capaz de matá-la e ficar impune ‘porque sou frio e calculista‘. Se Veja tivesse se dado ao trabalho de assistir à entrevista da moça ao jornal Extra, ainda hoje disponível no YouTube, o tom de toda a matéria poderia ter sido outro. Talvez a revista tivesse mostrado uma jovem assustada, e não apenas a moça promíscua que teve, como ponto alto de sua carreira, a participação em um filme pornô de título impublicável.
A revista também esqueceu de dizer que, seja qual for o comportamento, Eliza – ou qualquer outra pessoa – não poderia ser espancada ou morta por motivo torpe.
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Jornalista