Em emocionado desabafo durante o quadro “O que vi da vida”, exibindo em 20/5 no Fantástico, a apresentadora Xuxa Meneghel revelou ter sofrido abuso sexual em diversas ocasiões na infância e na adolescência. Os agressores seriam amigos da família e até um professor. Xuxa contou que a violência deixou sequelas em sua vida adulta. O Observatório da Imprensa exibido ao vivo pela TV Brasil na terça-feira (29/5) discutiu a exposição da fragilidades de celebridades na mídia as consequências dessas revelações para a sociedade. Nos últimos anos, o relato de famosos sobre questões pessoais delicadas tem estimulado a população a procurar ajuda.
A reação às declarações da apresentadora foi imediata e o assunto repercutiu nas redes sociais. A iniciativa de Xuxa foi elogiada por especialistas em crimes contra a criança, por encorajar a discussão do tema. A ministra dos Direitos Humanos, Maria do Rosário, destacou a coragem da apresentadora. Nos dias seguintes à exibição do quadro, houve um aumento de 30% nas denúncias de abuso sexual recebidas pelo ministério. A postura da apresentadora também encontrou críticas, segundo as quais a exploração da intimidade da artista teria sido um golpe de marketing.
A entrevista foi exibida dois dias depois da sanção da Lei Joanna Maranhão, que ampliou o prazo para a prescrição de crime sexual contra crianças. A lei leva o nome da nadadora porque, em 2008, a atleta denunciou um treinador por abusos quando ainda era criança. De acordo com o Ministério da Saúde, o abuso sexual é o segundo tipo de violência mais comum contra crianças e adolescentes. Na maior parte dos casos, o agressor é alguém da família ou uma pessoa próxima da criança.
Alberto Dines recebeu Eduardo Ferreira-Santos no estúdio de São Paulo. Psiquiatra e psicoterapeuta de adultos e adolescentes, Ferreira-Santos é formado pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP). Em Brasília, o programa contou com a participação de Veet Vivarta e Debora Diniz. Vivarta é jornalista e secretário executivo da ANDI – Comunicação e Direitos. Coordena a implementação das metodologias de monitoramento, análise e capacitação da mídia criadas pela entidade e hoje replicadas internacionalmente. Antropóloga, Debora Diniz, é professora da Universidade de Brasília (UnB) e pesquisadora da ANIS – Instituto de Bioética Direitos Humanos e Gênero. É representante no Brasil do Research Project Review Panel (RP2) – Department of Reproductive Health and Research (RHR), da Organização Mundial da Saúde (OMS).
Quando a realidade se impõe
Antes do debate no estúdio, em editorial, Alberto Dines comentou que a sociedade foi obrigada a encarar uma realidade que costuma ignorar. “O fato de esta violência ter ocorrido em uma família da classe média, aparentemente estruturada e distante da miséria que geralmente associamos à promiscuidade, torna ainda mais dramáticas as revelações da apresentadora”, afirmou o jornalista. Dines ponderou que a artista recebeu apoio da sociedade, mas também foi alvo de “chacota e cinismo” de quem atribuiu a atitude a uma busca pelos holofotes da mídia.
A reportagem exibida antes do debate no estúdio entrevistou o psicanalista Chaim Samuel Katz. Na avaliação de Katz, ao falar sobre o abuso a vítima pode se sentir aliviada: “A mídia é um modo de difundir várias opiniões já sedimentadas na vida social, mas também um modo usado por muitos para fazer uma catarse. A pessoa purga uma certa situação já vivida anteriormente e à qual ela não pode dar vazão. A pessoa quer contar alguma coisa, quer que repercuta para os outros, mas, especialmente, quer que repercuta para si próprio. Ela quer ser ouvida naquilo que, na intimidade, ela não conseguiu dizer ou se fazer ouvir suficiente”. Katz ressaltou que, ao escutar o relato de uma celebridade, o telespectador é fortemente impactado e o tema ganha uma importância afetiva.
A mídia pode ser um importante aliado no debate de temas considerados tabus. Em 2010, o Ministério Público do Distrito Federal procurou a parceria da imprensa para estimular as denúncias. A TV Brasília fez uma série de reportagens sobre abuso sexual. Daiane Garcez, repórter que participou da série, disse ao Observatório que o papel da imprensa foi mostrar que a denúncia é a principal forma de combate: “Se não se denuncia não se pode investigar, não se pode agir, não se pode acabar com o problema. O segundo ponto é mostrar às pessoas como elas podem identificar esse problema. Então, a partir do momento em que a pessoa está sentada, assistindo a uma reportagem, ela pode identificar que o vizinho dela se comporta daquele mesmo jeito que a vítima apresentada na reportagem se comporta”.
O papel da mídia
No debate ao vivo, Veet Vivarta destacou que Xuxa “levou para a sala dos telespectadores” uma questão ampla que permanece invisível. “A família acaba ignorando, se omitindo, ou até buscando preservar o abusador em função de todas as questões que seriam geradas por um processo de denúncia, de trazer a público essa questão. Esse ato da Xuxa é corajoso porque ajuda a sociedade a olhar para algo que acontece com muito mais frequência do que a gente imagina, mas está sempre cercado de medo, de vergonha, de negação desta realidade”, disse Vivarta.
Para o secretário executivo da ANDI, os números oficiais de abuso sexual contra crianças e adolescentes não refletem a realidade porque esta é uma questão de âmbito familiar pouco notificada. As vítimas, em geral, sentem-se culpadas, têm medo das consequências da revelação e as famílias protegem o agressor. Vivarta sublinhou que educadores e profissionais de saúde pública deveriam ser capacitados para reconhecer os sinais de abuso e, assim, auxiliar as famílias das vítimas.
Dines perguntou o que pode ser feito para que o debate sobre abuso sexual no Brasil não fique restrito ao noticiário sobre revelações pontuais. Veet Vivarta comentou que a imprensa poderia qualificar a discussão sobre o assunto e contextualizar as informações. Além de refletir sobre como e por que o abuso sexual contra crianças e adolescentes ocorre, a mídia deveria, sobretudo, estimular as famílias a buscar ajuda profissional: “Existe muito espaço e necessidade para uma informação que vá além do sensacional, que reconheça o quanto é impactante esta situação, mas ajude a sociedade a lidar com esta questão. Eu acho que esse é um trabalho que cabe à imprensa no pós-denúncia”, disse.
Em outros países, de acordo com Vivarta, celebridades têm se engajado de forma mais consistente nas causas sociais: “A gente acaba desenvolvendo um modelo perverso onde a celebridade entra na sua casa, não tem o menor pudor em vender ‘n’ produtos nos comerciais, na publicidade, não tem problema em vender no merchandising das novelas, mas se acha constrangida em assumir uma causa”. O jornalista ponderou que a imprensa deveria questionar essa situação.
De quem é a culpa?
O psicanalista Eduardo Ferreira-Santos explicou que há diferentes tipos de abusadores. Os contumazes têm um desvio de personalidade e não sentem vergonha ou remorso. Raramente procuram tratamento no campo da psiquiatria. Já alguns pacientes relatam que, em momentos específicos, e particularmente delicados, tiveram a oportunidade de viver uma “situação de sexualidade” com uma criança. “Eles confessam com muita vergonha porque não faz parte das suas características, do seu traço de personalidade”, disse o psiquiatra.
Ferreira-Santos contou que a polêmica em torno do abuso é antiga: “No final do século retrasado, quando começou a estudar seus pacientes com histeria, Freud denunciou, naquela Europa vitoriana, que havia casos de abuso sexual contra as crianças. E a sociedade como um todo se revoltou contra essa revelação: ‘Isso não é possível, não existe’. Isso levou o próprio Freud, o grande pai da psicanálise, a voltar atrás e criar a Teoria da Sedução, que é o que muita gente acaba usando hoje em dia. [A teoria diz que] a criança não foi abusada, ela imagina que foi abusada. Quando, na verdade, de fato, ela foi abusada, muitas vezes com violência. Ela acaba ficando com vergonha e assumindo a culpa por algo que foi cometido por um maior que está ali perto dela”.
Apenas no início da puberdade a vítima tem consciência plena das agressões. Eduardo Ferreira-Santos explicou que vergonha, medo e culpa são os sentimentos mais comuns quando o adolescente depara com a verdade. A vítima, então, sente-se profundamente deprimida e pode desenvolver importantes transtornos de personalidade. O psiquiatra ponderou que as páginas policiais estão repletas de serial killers que cometeram crimes sexuais bárbaros e se referem, em seus depoimentos, a casos de abuso praticados contra eles por pessoas mais velhas da sua própria família.
Sinais de alerta
Apesar dos questionamentos sobre a conduta de Xuxa, na avaliação de Ferreira-Santos é inegável que ela está sendo a protagonista de um drama vivido pela sociedade. Ele alertou aos pais e parentes para que fiquem atentos aos sinais de abuso contra as crianças e que denunciem o abusador. “Que essa denúncia não se perca arquivada como tantos inquéritos se perdem nesse Brasil e nesse mundo hipócrita que se esconde atrás de uma falsa moral, de uma falsa religiosidade, de uma falsa apresentação daquilo que é certo quando, debaixo do pano, tudo está acontecendo de uma forma errada”.
Para quem está fora do contexto familiar de silêncio e violência que cerca o abuso sexual, é chocante perceber que grande parte das mães não denuncia o agressor. A antropóloga Débora Diniz explicou que, na maioria dos casos, o abusador faz parte do regime doméstico de convivência com as crianças – é seu pai ou padrasto, por exemplo – e também é violento com as mães. Além disso, há uma série de dependências econômicas e emocionais que tornam o agressor poderoso perante a vítima.
“Por isso é tão importante uma figura pública como a Xuxa contar a própria história, falar da mãe, do silêncio que ela manteve em relação aos irmãos, porque permite que as instituições do Estado digam que a casa não tem portas fechadas diante dos atos de violência. Cabe ao Estado dizer: isso aqui também é um espaço de proteção e de proteção das crianças”, afirmou a antropóloga.
Debora Diniz ponderou que, embora ocorram casos de abusos contra meninos, sobretudo em ambiente religioso, a cena mais comum nas famílias é a de violência contra as meninas. Ela destacou uma frase do depoimento de Xuxa em que a apresentadora conta que se questionava sobre os motivos que teriam provocado o abuso, como o modo de se vestir ou de se comportar. Debora Diniz relatou que, em geral, as meninas costumam fazer essas mesmas perguntas em casos de abuso sexual e destacou que a sociedade brasileira devolve para o corpo da vítima a responsabilidade pelo crime.
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A repercussão do caso Xuxa
Alberto Dines # editorial do Observatório da Imprensa na TV nº 641, exibido em 29/5/2012
No momento em que a sociedade brasileira se dispõe a pagar o alto preço da busca da verdade, a apresentadora Xuxa Meneghel entra em cena com uma contribuição corajosa e penosa.
A confissão que fez no programa Fantástico (20/5) sobre os abusos sexuais de que foi vítima quando criança até a adolescência chocaram o país. A sociedade cordial, complacente e despreocupada, de repente foi obrigada a defrontar-se com uma violência que não parece rara, mas teima em ignorar.
O fato desta violência ter ocorrido numa família da classe média, aparentemente estruturada e distante da miséria que geralmente associamos à promiscuidade, torna ainda mais dramáticas as revelações da apresentadora.
A extraordinária repercussão acionou um movimento de respeito e solidariedade em todos os escalões e esferas, chegando à Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, ministra Maria do Rosário. Não faltou a dose habitual de chacota e cinismo atribuindo-se o gesto de expor tão cruamente sua vida íntima a uma compulsão marqueteira de quem está no show-bizz.
O deboche não colou: no programa seguinte foi lembrado outro caso, no interior de São Paulo, envolvendo um pai, advogado defensor de direitos humanos, que durante anos brutalizou não apenas a filha, também um filho menor.
Esta violência não é isolada, ela nos remete às revelações de pedofilia em entidades religiosas e à noção de que o pecado pode ser amenizado no confessionário.
Xuxa sacudiu uma sociedade que não gosta de ser sacudida nem incomodada. A imprensa tem o dever de ajudá-la a derrubar a hipocrisia.
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A mídia na semana
** Uma entrevista feita por uma repórter do programa Brasil Urgente, da Band, em Salvador, foi parar na internet e causou revolta. Mirella Cunha agiu de forma agressiva com um jovem acusado de estupro e ainda debochou no ar por ele não saber o nome do exame que a vítima deve fazer para comprovar uma violência sexual. O vídeo bombou na rede e gerou notas de protesto do Sindicato dos Jornalistas e da OAB da Bahia. A Band emitiu um comunicado prometendo que adotará medidas disciplinares contra a repórter. Ainda não adotou.
** No Tocantins, outro repórter da Band teve que ouvir uma lição de moral do entrevistado. Após um acidente, um motorista ajudava os bombeiros a prestar atendimento à vítima quando foi interpelado pelo jornalista – que falou o que quis mas ouviu o que não quis.
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[Lilia Diniz é jornalista]