Monday, 04 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

A correspondência de comadres

Dona Opinião Pública,


Para início de conversa, não fui eu que inventei essa história de ser chamado Quarto Poder. É verdade que sempre lancei olhos de inveja aos demais Três Poderes. Ante meus olhos o Legislativo criava leis, normas e até regras para assegurar uma boa convivência entre temas tão distintos quanto capital e trabalho, cidade e campo, latifúndio e nãofúndio. Não era menor o exagerado apreço que dediquei ao Executivo. Ora, era este que fazia e desfazia, lançava mão de um expediente aqui e outro ali para obedecer a leis feitas na medida ou mesmo para ter certeza de que nas próprias leis brechas seriam criadas para não lhe tolher o espaço e a margem, sempre imensa, de manobra. Ao Judiciário me encantava a idéia da estátua grega de olhos vendados. Por ali tudo poderia acontecer, pois outro refúgio não existia e foi assim que aos pés da dama vendada observava o despudorado desatar de nós. Mas tanto insistiram que hoje não me apraz atender por outro nome que o de Quarto Poder. Admito ser o quarto quando sei que na verdade tenho cacife para ser o primeiro e me transformo no guardião dos outros três.


Sei que quando me alcunharam Quarto Poder a motivação era tão-somente de me advertir, de me mostrar as limitações, quando não minhas vulnerabilidades. Ledo engano. A cada dia e a cada semana mais alargadas são as minhas fronteiras. Se antes me contentava em ser apenas espelho da realidade, hoje sou muito mais que isto, sou a realidade que desejo espelhar. Se antes tinha que vestir aquela velha camisa de força das seis perguntinhas básicas – quem, o que, quando, onde, como, por que – hoje posso até dispensá-las por sua total desimportância. Se antes me obrigavam a uma perda de tempo imensurável ouvindo o sempre açodado outro lado, fonte intermitente de reclamações e queixumes, hoje camuflo tudo isso na forma de generosos espaços e preciosos minutos dedicado a preencher lacunas do tipo ‘entenda o caso’ ou ‘saiba mais’.


Rio liberal


Antes minha lealdade era total à verdade. Transmutava-me em detetive e investigava tudo e todos e só liberava a notícia após conferir minhas fontes, fontes classificadas quanto à sua credibilidade e idoneidade. Hoje deixei de ser tão exigente, pois do contrário iria à bancarrota. Com verdade ou sem verdade fico polindo minha matéria antes de chamá-la de notícia. Escrevo primeiro aonde quero chegar e depois vou ajeitando aqui e ali de forma a não me afastar muito da meta a ser alcançada.


Não trabalho no curto prazo, o que me seduz é o longo prazo. Para cada assunto tenho uma fonte de estimação. Se é tema econômico falo com Antonio, se é político pergunto a José, se é comportamento telefono para Maria, se trata de esportes não deixo de ouvir o André. Minhas fontes estão sempre em primeiro lugar e há muito elevei o nível delas para o de Oráculos. Nada mais justo; afinal, elas entendem melhor do que vai acontecer do que já aconteceu.


Confesso que tal promoção vertiginosa de mera fonte a cultuado oráculo não surgiu de forma espontânea – antes, foi uma imposição delas mesmas. Em troca ofereceram-me exclusividade, lealdade, anonimato, segurança. Sempre soube que para manter sua palavra a fonte invariavelmente passava a servir a dois senhores, e isso significava que a fonte seria sempre tentada a plantar notícias, defender interesses escusos e a cometer traições em pequena e em larga escala.


Antes abominava qualquer rótulo ideológico. Virava fera quando o concorrente me chamava remanescente da ditadura, de dedo-duro da direita ou mesmo carinhosamente como sendo daquela conhecida direita enrustida. Em minha seara os que pontificavam sempre apareciam associados às utopias, aos sonhos de bem-estar geral e àquela antiga história dizendo que os operários quando morrem seguem direto para o paraíso.


Hoje as coisas mudaram bastante. Não hesito em condenar qualquer movimento social, principalmente se for movimento que incite o populacho a invadir a propriedade alheia, que leve a massa ignara a se armar de facões e foices para tomar na marra o latifúndio por eles chamado de improdutivo. Não titubeio ao fazer a mais veemente defesa dos fabricantes de armas nem que para isso tenha que penhorar toda a minha escassa credibilidade. Não deixo de dormir uma boa noite de sono se passei uma ou duas semanas reunindo artilharia pesada para detonar gente como aquele médico argentino morto na selva boliviana conhecido como Che. Também não me aborrece desancar livro de uruguaio destrambelhado falando de umas tais veias abertas dessa nossa América Latina.


Antes criticava veladamente os que abraçavam o credo marxista. Hoje organizo vigílias e procissões para incensar o deus Liberalismo. Minhas páginas, colunas, seções, perfis, blocos, editoriais e comentários são como afluentes do imenso rio liberal prestes a desaguar no mar do consumo desenfreado e do capital que preenche de vazio a minha e a sua vida.


Realidade virtual


Antes tinha o cuidado de empunhar bem alto minha isenção. Se viajava a outro país para cobrir uma cúpula de governantes do continente fazia questão de dizer quem estava pagando as passagens e se fosse ele, o Governo, rapidamente alardeava que valor equivalente foi destinado a um programa social de preferência o mais vistoso. Ah, esse tempo da juventude com seus sonhos envelhecidos! Hoje pauto um assunto com um olho no bolso e outro no futuro. Como todo mundo, tenho também dívidas a pagar e muitos empréstimos a rolar em bancos oficiais. Esse assunto, agora me vem esta percepção, ainda me traz algum constrangimento. Daí que não me apetece demorar muito nele.


Antes observava os ataques freqüentes da concorrência interna. Era o pueril embate corporativo. Como o sarampo, só aparecia nos primeiros anos de existência da publicação e da emissora de rádio e tevê. O embate sempre se dava para ver quem defendia mais e melhor a dignidade humana, quem lutava contra o obscurantismo das ditaduras de plantão, quem recebia mais a visita daquela senhora tresloucada e senil que atendia pelo nome de Censura. Hoje as coisas mudaram. Amaduremos como veículos de comunicação e passamos a ver que existiam apenas dois lados. Um deles era o nosso, nos irmanava a todos. O outro representava os governos e populações com suas instituições e corporações.


O nosso lado passou a ter o hábito de defender com unhas e dentes, centimetragem generosa em todas as publicações e presença constantes nos telejornais de maior audiência, os nossos ícones sagrados mais preciosos: a liberdade de expressão, a liberdade de impressão, a liberdade de pressão. O outro lado passou a nos ver com razoável desconfiança e chegaram ao ponto de nos acusar dos mais hediondos dos crimes: viramos justiceiros, membros não fardados de tribunais de exceção, e liquidamos de um só golpe a honra e a biografia de pessoas e instituições inocentes.


Não posso negar que, como somos todos humanos, costumamos também errar e, mais ainda, é-nos mais cômodo persistir no erro. Afinal, temos aparências a conservar e, pensando bem, de que adianta vencer a guerra e perder a credibilidade?


Minha maior especialidade é criar mundos fictícios, de trazer para a vida da sociedade a chamada realidade virtual. Amparo-me em pesquisas qualitativas para saber o gosto do freguês. Sei do que ele gosta e o que ele abomina. Sei que o público adora um escândalo político envolvendo algum figurão dos demais Três Poderes. Quanto mais escabroso o escândalo mais assombrosa é a audiência, é a venda de meus jornais e revistas. Sei que o público detesta saber de escândalo envolvendo meu pessoal; não, represento um segmento social sempre acima de qualquer suspeita e isso não rende ibope algum. Sou capaz até de criar um encontro inexistente entre um ministro de Estado e uma autoridade do segundo escalão a este subordinado. E para dar contornos de verossimilhança em um estalar de dedos consigo levar o assunto para uma comissão parlamentar de inquérito no Congresso Nacional. E não importa se, apesar de todos os meus esforços, os tais depoimentos na CPI redundarem no vazio da ausência de fatos, ainda assim continuarei reverberando minha versão. É a realidade virtual imitando a própria vida. Como você vê, entendo bem de sua vida e sei até dos seus gostos e segredos mais bem guardados.


Orgulho incontido


Antes o negócio era assegurar o livre trânsito da informação. Penávamos para enviar correspondentes aos confins do mundo para cobrir aquela enchente em Xangai, aquela perseguição estatal movida contra os bahá´ís em Teerã, aquele terremoto em Yokohama ou os estragos daquele furacão sobre a costa da Flórida. Mas tudo isso mudou e estive muito presente na mudança. A internet passou a fazer o trabalho completo: está acontecendo e a cobertura já começa ao vivo e em cores, com som e imagem e tudo acessível a custo zero por qualquer pessoa conectada à Grande Teia.


Para que a informação circule livre, leve e solta como dizia o antigo reclame publicitário, não é mais necessária a mediação do jornalista e sua pesada parafernália. Cada testemunha ocular de um evento – trágico ou não – se transforma rapidamente em correspondente de um sem-número de corporações midiáticas. Mas falham em um ponto: na maioria dos casos não conseguem analisar o fato dentro de seu contexto real. Isso é o que nós fazemos com excelência. Damos sentido às imagens e aos seus sons. E, de quebra, contextualizamos tudo dentro da linha editorial responsável pelo pagamento de nossos salários.


Desculpe se fui muito direto ao ponto, mas havia coisas por dizer e também já estou naquela idade – 200 anos não são duzentos meses! – em que as idéias parecem confusas. Tenho dificuldades para ordenar os pensamentos e já não sei o que é real e o que é ficção, o que é fato e o que é versão.


Sei apenas que palavras como ética, verdade e imparcialidade, expressões muito conhecidas como bem comum, presunção de inocência e direito de resposta exalam cheiro de naftalina e vagam bêbadas em hipotético dicionário de boas intenções – ou melhor dizendo, em manuais do bom jornalismo.


Antes que me esqueça, gostaria que você soubesse que não faltam elementos que desejam nos ver pelas costas. Vivem tentando nos intrigar. Não os leve a sério e lembre-se que estarei sempre lhe representando. Saiba também que falar em seu nome, além de me encher de orgulho, é o que de melhor aconteceu em minha bicentenária existência.


Atenciosamente, Opinião Publicada

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Mestre em Comunicação pela UnB e escritor; criou o blog Cidadão do Mundo