Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

A corrida de obstáculos da inclusão

O Observatório da Imprensa exibido ao vivo na terça-feira (3/12) pela TV Brasil discutiu como os meios de comunicação podem contribuir para que o Brasil tenha mais acessibilidade para os portadores de necessidades especiais. Mais de 6% dos brasileiros têm algum tipo de deficiência física. Além dos que vivem aqui, nos próximos dois anos o Brasil receberá cerca de 4 milhões de pessoas para a Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos. O país está preparado para acolher os visitantes com qualquer condição física?

Para discutir esta questão, Alberto Dines recebeu no estúdio do Rio de Janeiro Solange Maria da Rocha, diretora geral do Instituto Nacional de Educação de Surdos (Ines), e Juliana Oliveira, apresentadora do Programa Especial, da TV Brasil, que é cadeirante. Formada em História pela Universidade Federal Fluminense, Solange é mestre em Educação Especial pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e doutora em Educação pela PUC-Rio. Juliana é publicitária, mestre em Administração e atua como analista em Comunicação Corporativa no Inmetro. Em São Paulo, o programa contou com a participação de Lucas de Abreu Maia, repórter do Estadão Dados. Formado em Jornalismo pela PUC-Rio, é mestre em Ciências Sociais pela Universidade de Chicago. Recebeu a bolsa Jornalista de Visão do Instituto Ling e a Person of the Year Fellowship, da Brazilian-American Chamber of Commerce. Lucas é deficiente visual e foi ao programa com o auxílio de um cão-guia.

Antes do debate ao vivo, em editorial, Dines sublinhou que os portadores de necessidades especiais, na prática, não têm os mesmos direitos do restante da população e a sociedade sequer é solidária em relação a este problema. “Numa das fases deste Observatório oferecíamos aos telespectadores a tradução simultânea na Língua Brasileira de Sinais – a Libras – usada pela comunidade surda. Lamentavelmente, fomos obrigados a desistir. Este é o problema: não conseguimos avançar na integração dos deficientes. E este não é só problema dos governos, também é problema dos governados, da cidadania – nós. E esta situação ficará escancarada, dramatizada em 2014 e 2016 por conta dos grandes eventos esportivos internacionais”, disse Dines.

Obstáculos na porta de casa

A reportagem exibida antes da discussão no estúdio entrevistou pessoas com deficiência e profissionais da área. Heloísa Frontin, cadeirante há 12 anos, relatou a rotina de quem depende de cadeira de rodas para se locomover: “Quando você vai andando, de repente tem um poste, calçadas estreitas, buracos, bueiros. Em certos bueiros, se você passa muito perto, você desliza e a cadeira vira”. Heloísa explicou que situações como essas fazem com que ela se sinta excluída da sociedade. “Por mais cultura que você tenha, por mais que você procure ser igual aos outros, tem hora que você desanima”, afirmou.

Em 2007, quando os Jogos Panamericanos foram realizados no Rio de Janeiro, Heloísa tentou assistir às competições, mas não havia acesso adequado. E mesmo para os atletas havia barreiras. “Só consegui ver as do Engenhão porque as outras não tinham ônibus para chegar. E me narraram uma coisa que eu achei absurda. É que quando vieram os [atletas das] Paraolimpíadas para se acomodarem nas suítes da Vila Olímpica, simplesmente tinha o quarto e tinha uma escada para descer e ir ao banheiro”, disse a entrevistada.

O estudante de cinema André Fuentes usa a cadeira de rodas desde os três anos de idade. Ele contou que até os atos corriqueiros, como usar banheiros públicos, podem ser um problema. “Isso não é acessibilidade. Pegar um banheiro e deixar ele trancado, você só está resolvendo uma parte do problema, que é o problema legal, de você ter que ter um banheiro adaptado”, criticou.

A estudante Ana Carolina Ruas, atleta do Instituto Benjamin Constant, convive com a deficiência visual desde os 14 anos e diz que a questão da acessibilidade em outros países está mais avançada. “Eu, como atleta, já passei por vários países e lá é totalmente diferente da realidade do Brasil, as calçadas são bem [aplainadas]. Eu já estive conversando com pessoas que têm essa experiência lá fora, e eles são muito mais independentes do que a gente. Eu tenho que matar 300 leões por dia para vencer os obstáculos. É andaime, é a obra, é a calçada esburacada”, comentou Ana Carolina. Para ela, a sociedade deveria estar mais atenta para facilitar o dia a dia dos portadores de necessidades especiais.

Lei só no papel

Para comprovar as dificuldades enfrentadas no cotidiano pelos deficientes, a Associação de Defesa do Consumidor Proteste acompanhou pessoas com deficiência pelas ruas do Rio de Janeiro e de São Paulo. O resultado foi alarmante. Árvores, postes, “fradinhos”, buracos e desníveis ainda são um desafio permanente, 13 anos depois de a legislação sobre o tema ter entrado em vigor. “Segundo a lei, os prédios públicos que não possuíam anteriormente acesso aos deficientes terão que promover esse tipo de modificação, e as novas obras já serão projetadas visando ao acesso dessas pessoas que têm algum tipo de dificuldade”, disse Weberth Costa, advogado da associação. Para ele, se desde 2000 há regulamentação, o Brasil já deveria estar mais bem adequado.

Cid Torquato, coordenador de Relações Institucionais da Secretaria dos Direitos da Pessoa com Deficiência do governo de São Paulo, assegura que o acesso das pessoas com deficiência aos estádios durante a Copa do Mundo está garantido. “Se me perguntassem se tudo vai ser 100%, ou seja, se em todas as cidades você vai ter todos os recursos e serviços adaptados e acessíveis, eu imagino que não. [Mas] imagino que em São Paulo a questão seja bastante tranquila. Em grande medida, as cidades estão sendo preparadas. Os estádios foram projetados com acessibilidade. Eu estou confiante com relação à questão da pessoa com deficiência na Copa do Mundo”. Já o professor Paulo Sérgio Miranda professor, do Instituto Benjamin Constant, enfatizou que a cidade em si deve ser adaptada, não apenas os locais dos eventos.

Humberto Gripp, que é professor do Ines, ressaltou que nem as forças de segurança pública estão preparadas para lidar com os surdos: “As delegacias de uma maneira geral não têm muita experiência no caso de surdos, e a gente acaba tendo alguns prejuízos. Quando essas pessoas chegarem, esses surdos de outros países, como vai ser isso? Uma experiência que aconteceu comigo: a minha moto foi furtada e eu tive que ir a uma delegacia policial. E, aí, a principal dificuldade: a comunicação”.

A Libras e a legendagem permitem que os deficientes auditivos acompanhem filmes e programas de televisão. A legislação sobre o assunto tem mais de dez anos, mas os canais ainda não se adaptaram completamente às normas. Marta Morgado, deficiente auditiva que vive em Portugal, defende o pleno acesso ao noticiário. “Isso é o mais importante, informação através de legendagem. No dia a dia, quando acontece alguma coisa, os surdos veem a imagem, mas falta perceber exatamente o que está acontecendo”, explicou Marta. Para Humberto Gripp, falta incentivo para que os canais passem a usar a legenda ou a janela para o intérprete de Libras. Na avaliação do professor, a janela é mais abrangente porque nem sempre é possível acompanhar a legenda e a imagem ao mesmo tempo.

Cultura para todos

O acesso a produtos culturais é uma das principais dificuldades das pessoas que têm necessidades especiais. “A maioria das salas de cinema do Rio de Janeiro são assim: os caras te botam com o nariz encostado na tela. Eu, pessoalmente, o que eu faço? Pego minha cadeira, esqueço que ela existe e vou me arrastando até o lugar que eu acho confortável. Eu tento participar dos cursos que são oferecidos pelo Anima Mundi e simplesmente não consigo porque todos os anos eles colocam em prédios que não têm rampa. Eu ligo: ‘E aí, o que eu faço?’. O cara fala: ‘Bom, ou você vem e a gente te carrega aqui pra cima, para o 2º andar – que nem um saco de batata – ou você não faz o curso’. Eu simplesmente me recuso de subir dessa forma”, disse André Fuentes.

Uma série de ferramentas tecnológicas facilita a inclusão. Deficientes visuais contam com a audiodescrição, que complementa as informações de filmes, peças teatrais e programas de televisão. O recurso ainda não está popularizado. “Talvez a própria sociedade não saiba lidar com portador de necessidade especial, não saiba como conduzir ou como prestar ajuda à nossa necessidade. A gente ainda está engatinhando nesse quesito cultural. Porque a gente vai a um teatro, vai a um museu e ainda não tem essa audiodescrição das figuras, das imagens”, constatou Ana Carolina Ruas. Na avaliação da atleta, poderia haver mais programas para incluir pessoas com necessidades especiais nas instituições culturais.

Para deficientes auditivos, o uso de intérpretes facilita a compreensão e é um estímulo para a inserção na cena cultural. “Pouco tempo atrás eu fui ao teatro e fiquei surpreso ao ver um intérprete. Mas a imagem do intérprete era muito obscurecida. Então, ainda falta um pouco de técnica para poder melhorar. O intérprete lá escuro, com roupa preta, ficou muito confuso. Enquanto o teatro era ótimo, o intérprete ficou obscurecido”, disse o professor Gripp.

Em São Paulo, um espetáculo leva para os palcos a dificuldade da família de um deficiente auditivo em lidar com as limitações do personagem. Montada originalmente nos Estados Unidos, a peça “Tribos” pretende discutir a ética e o preconceito. Bruno Fagundes, produtor do espetáculo, contou que uma vez a cada mês a peça é encenada com acessibilidade. “Você percebe que na verdade as pessoas que não escutam são os ouvintes e o único que realmente é capaz de olhar no olho de alguém e perguntar: ‘Você está bem? Eu estou vendo que você não está bem’. O mais sensível a ouvir sem escutar é o deficiente auditivo. Essa é uma discussão morta no Brasil. Agora se começou a falar sobre inclusão, sobre acessibilidade, mas é uma discussão apagada”, disse.

A tecnologia como aliada

No debate ao vivo, Solange Maria da Rocha defendeu que haja uma atualização contínua da tecnologia para facilitar a rotina dos deficientes. Com a internet, os surdos conseguem conversar entre eles em qualquer local do mundo usando a Libras. “Tudo isso é muito fácil de realizar. Quando você faz políticas públicas, muitas vezes não ouve esse segmento e faz políticas um pouco distantes dessa realidade”, lamentou a diretora do Ines.

Um telespectador questionou se os gestores públicos podem ser denunciados por não cumprirem medidas de inclusão. Solange explicou que existe um decreto que regulamenta a Libras e a reconhece como língua: “É claro que o cidadão pode ir para as instâncias jurídicas para tentar fazer valer os seus direitos, e é desejável que faça. Os programas de televisão precisam cumprir [a lei] também. Eles são alcançados por uma série de legislações. Eles preferem, muitas vezes, pagar multa ou jogar [os programas com legenda] para outro momento da sua programação”. A diretora do Instituto Nacional de Educação de Surdos ressaltou que os surdos e os portadores de outras necessidades especiais são também consumidores, e os canais de televisão não percebem este detalhe que poderia aumentar o faturamento das empresas.

De acordo com Solange, grande parcela dos surdos gosta acompanhar as telenovelas, mas acaba não conseguindo porque poucas têm legendas e nenhuma conta com a janela para o intérprete de Libras. “Eles gostam de ver música também e ter o tradutor-intérprete. Eles estão prontos e aguardando – às vezes pacientemente, outras vezes, não – que o mundo faça sentido e não seja apenas um monte de bocas falando sem sentido. É preciso que a gente fique atento”, afirmou. O Ines está criando, em parceria com a TV Brasil, um canal de televisão via web sobre os surdos e para os surdos, mas aberto a todos.

Um mundo de possibilidades

O repórter Lucas de Abreu Maia explicou que o que torna o cão-guia caro no Brasil é a falta de locais especializados para o treinamento sistemático e bem estruturado dos animais. “O governo federal chegou a se envolver nisso, mas não é muito claro o plano de metas, onde as escolas serão instaladas, quais são as equipes de treinamento”, disse. Os cegos, muitas vezes, buscam por conta própria treinadores capacitados ou compram o animal já treinado no exterior.

O repórter contou que durante o mestrado que fez no exterior estudou um pouco de neurociências e aprendeu que os deficientes visuais acabam aperfeiçoando outros sentidos. “Hoje a gente sabe que as regiões do cérebro que não são usadas por determinado sentido são cooptadas para outros sentidos. No meu caso, por exemplo, o córtex visual provavelmente foi cooptado para a audição”, disse o jornalista. Atualmente, ele examina dados estatísticos, como os do Enem e do Censo, por exemplo, para gerar pautas. “É um pouco atípico, mas eu sou um cego que trabalha com matemática”, brincou.

Lucas foi repórter de Política por dois anos. “Eu cobria eleição presidencial, saía para fazer entrevista coletiva, cobria Assembleia Legislativa, fazia centenas de entrevistas”, lembrou. Ele sempre foi tratado com respeito pelos entrevistados e, por uma questão de postura, não costuma avisar que é deficiente visual. “Não é relevante para as entrevistas que eu ia fazer. Se fosse relevante, eu avisaria. Eu chegava com o cão-guia e às vezes notava alguma surpresa, mas era uma surpresa muito constrangida porque eu não dava espaço para isso”, sublinhou o repórter. Ele defendeu que é preciso agir com naturalidade diante da deficiência.

Acessibilidade na TV

Juliana Oliveira explicou que o Programa Especial é transmitido em Libras, é legendado e tem audiodescrição. “A gente fala para os deficientes. Nada mais coerente do que ter o programa totalmente acessível. Mas eu acho podemos servir de modelo para qualquer outro programa que passe na televisão. Hoje em dia é possível. A tecnologia permite que a gente faça tudo, é só uma questão de vontade”, disse a apresentadora.

O Programa Especial está completando dez anos no ar. Juliana resumiu a experiência: “As pessoas ficam muito surpresas até hoje quando eu falo que sou apresentadora de um programa de TV. É uma realidade nova não só no Brasil, mas no mundo. Eu já tive oportunidade de conversar com pessoas com deficiência de outros países e não existe um programa na TV aberta falando sobre a deficiência de uma forma tão alto astral e otimista como a gente. O Programa Especial é do Brasil e nós brasileiros podemos nos sentir orgulhosos por termos um programa como esse”.

 

Exemplos de exclusão

Alberto Dines # editorial do Observatório da Imprensa na TV nº 712, exibido em 3/12/2013

Todos os brasileiros têm os mesmos direitos – certo ou errado? Errado: há uma legião de brasileiros ostensivamente prejudicados, menos iguais do que os demais.

O Estado brasileiro oferece a todos os seus cidadãos o mesmo acesso e a mesma liberdade de movimentos – certo ou errado? Errado: um grande contingente de brasileiros não têm acesso e não goza do pleno direito de ir e vir.

A sociedade brasileira é solidária com os deficientes – certo ou errado? Errado: a sociedade brasileira geralmente não presta atenção aos portadores de deficiências físicas, são esquecidos.

Numa das fases deste Observatório oferecíamos aos telespectadores a tradução simultânea na Língua Brasileira de Sinais – a Libras – usada pela comunidade surda. Lamentavelmente, fomos obrigados a desistir. Este é o problema: não conseguimos avançar na integração dos deficientes.

E este não é só problema dos governos, também é problema dos governados, da cidadania – nós. E esta situação ficará escancarada, dramatizada, em 2014 e 2016 por conta dos grandes eventos esportivos internacionais. Na ocasião, os visitantes deficientes vão se dar conta de que os estádios e ginásios foram construídos para atender às exigências de acessibilidade da Fifa. E do COI. Mas no resto do país há uma vastíssima coleção de obstáculos para os nossos cadeirantes, deficientes visuais e auditivos. Intacta e intocada.

Esta edição do Observatório da Imprensa talvez seja algo incômodo para alguns. Esperamos que facilite a vida daqueles que são prejudicados ao longo de vidas inteiras.

 

A mídia na semana

>> A acusação de ignorar o pluralismo vale para a TV brasileira, mas não vale para os Estados Unidos. Nossos canais de notícias por assinatura diferenciam-se muito pouco em matéria política, mas não é o que acontece na terra de Tio Sam, onde o canal MSNBC, progressista, considerado mais à esquerda, em novembro ultrapassou a CNN, considerada centrista. A campeã do segmento continua sendo a ultradireitista Fox News, embora seus números de novembro deste ano sejam piores do que os do ano passado. O “fenômeno” MSNBC surpreende ainda mais quando se sabe que, tal como as concorrentes, é uma empresa privada e algumas de suas posições estão mais à esquerda do próprio presidente Barack Obama. Seus anunciantes não reclamam: sinal de que nosso capitalismo tem muito a aprender com o capitalismo americano.

>> O Supremo Tribunal Federal deu mais um sinal de que não está inclinado a aceitar o pretendido embargo às biografias não autorizadas. Por unanimidade, o colegiado decidiu não acolher o pedido de recolhimento da obra editada pela editora Cosac-Naify que não chega a ser uma biografia de João Gilberto, criador da bossa-nova, mas apenas uma coletânea de entrevistas e artigos, a maioria elogiosa. A censura perdeu mais uma batalha, falta a batalha final que será decidida pela relatora, a ministra Carmen Lúcia.

>> Na pátria do corporativismo até mesmo a grande imprensa é contra a livre concorrência e a favor das reservas de mercado. Dois dias depois do lançamento do site em português do diário espanhol El País, um dos melhores do mundo, a Associação Nacional de Jornais (ANJ) anunciou uma investigação sobre uma possível transgressão ao artigo 222 da nossa Carta Magna, que impede empresas de comunicação instaladas no país de possuírem mais de 30% do seu capital nas mãos de estrangeiros. A ANJ é uma defensora intransigente da liberdade de expressão – exceto quando esta liberdade fere os interesses comerciais dos seus associados. Além de xenófoba, a atitude da ANJ fere o interesse dos jornalistas brasileiros contratados para traduzir o material em espanhol, além disso impede o acesso dos leitores brasileiros a fontes diversificadas. Depois de juízes favoráveis às mordaças, agora corremos o risco de ter jornais-censores.

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Lilia Diniz é jornalista