A crise das UPPs é o nosso tema. Crise das UPPs e também o jornalismo, a julgar pela manchete do Globo de quarta-feira (12/3), que anuncia um ataque a policiais na Rocinha. Só esquece de dizer que essa agressão ocorreu no dia 25 de dezembro, portanto há quase três meses. Essa informação só aparece no texto da página interna.
Que interesses estarão por trás de uma atitude dessas, que subverte completamente as normas elementares do jornalismo e confunde deliberadamente o leitor?
O vídeo que mostra a agressão foi captado por uma câmera de segurança e exibido no Jornal Nacional de terça-feira (11). Foi apenas o mais recente capítulo de uma série de reportagens sobre os problemas que as Unidades de Polícia Pacificadora vêm enfrentando. Na semana passada, dois policiais foram mortos no Complexo do Alemão. Em dois meses, já são três assassinatos semelhantes, na mesma região.
Diante disso, o secretário de Segurança, José Mariano Beltrame, chegou a anunciar a possibilidade de apelar às Forças Armadas e à Polícia Federal para uma nova ocupação desse conjunto de favelas, onde tem ocorrido a maioria dos conflitos.
Mas nem assim a imprensa aceita falar em crise. Pelo contrário, O Globo abriu espaço para artigos que defendem a necessidade de apoio ao projeto e alertam para o perigo de desvalorização da polícia, especialmente num ano eleitoral. Como se a “pacificação” não fosse um trunfo a ser utilizado pelos candidatos favoráveis ao atual governo.
Em seu editorial de terça-feira, inclusive, O Globo estimula a polícia a uma resposta dura, “até desproporcional”, aos ataques sofridos pelos agentes de segurança.
Resposta desproporcional é normalmente o que o Estado costuma dar. Aliás, não foi diferente no episódio que vitimou a soldado Alda Rafael Castilho, em 2 de fevereiro, também na região do Alemão: foram seis mortos em contrapartida, todos de jovens, alguns sem passagem pela polícia. No dia seguinte, o jornal ouviu um legista que levantou a hipótese de que alguns dos mortos tenham sido executados.
Mas desproporção pouca é bobagem: em 2007, nos tempos anteriores à UPP, o assassinato de dois soldados foi o pretexto para o cerco ao Complexo do Alemão. A operação durou três meses e resultou em 44 mortos – 19 num só dia.
A questão de fundo é a legalização das drogas
Todo mundo se lembra das reportagens que trombeteavam a “retomada do território” nos morros do Alemão e da Rocinha, onde ocorriam os principais conflitos entre facções de traficantes, e entre traficantes e policiais.
Conflitos nunca deixaram de ocorrer, mas eram minimizados pela imprensa, que procurava vender uma imagem positiva das UPPs. Os veículos das Organizações Globo, em geral, atuaram e continuam atuando como porta-vozes desse projeto.
Mas a situação foi piorando desde o ano passado. Em maio, um tiroteio retardou a corrida batizada de “Desafio da Paz”, no Alemão. Em junho, a sede do grupo AfroReggae foi incendiada. No Pavão-Pavãozinho, em Ipanema, e na Rocinha, tiroteios voltaram a ser frequentes. Mas em todas essas ocasiões o noticiário sustenta a versão da fonte oficial: se isso está acontecendo, é sinal de desespero dos traficantes diante do sucesso das UPPs. Ou seja, quanto mais mortes ocorrerem, mais correta estará essa política.
Mas como é possível dizer que existe resistência dos traficantes, se eles supostamente fugiram com a chegada das UPPs?
Nesse meio tempo, desapareceu o pedreiro Amarildo, mas esse caso vem sendo tratado como um desvio de rota. Na época, o secretário Beltrame disse que esse episódio não arranhava a imagem das UPPs.
É claro: nada arranha a imagem das UPPs, tão bem cuidadas por essa agência de propaganda mal disfarçada de jornalismo, e que deu o ar de sua graça novamente agora, quando o Globo “atualiza” um fato ocorrido no Natal do ano passado. Qual o objetivo? Seria ajudar a criar um clima favorável ao endurecimento da repressão na favela?
Desde 2012, foram dez policiais mortos em áreas supostamente pacificadas. Na raiz dessa espiral de violência está a ilegalidade do comércio de drogas. Semana passada, no Globo, a socióloga Julita Lemgruber citou a legalização como saída para o impasse. Mas, infelizmente, a declaração ficou no pé da reportagem.
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Sylvia Debossan Moretzsohn é jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Repórter no volante. O papel dos motoristas de jornal na produção da notícia (Editora Três Estrelas, 2013) e Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)