Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

A imprensa registra. Mas não discute

Semana passada ficamos sabendo que 43% das mulheres em idade produtiva estão acima do peso, que as mulheres estão começando a vida sexual cada vez mais cedo (e sem a devida orientação e proteção para evitar gravidez indesejada), que as mulheres continuam sendo espancadas e mortas pelos maridos (apesar da Lei Maria da Penha) etc., etc.

Portanto, a situação da mulher, a julgar pelo que se vê na imprensa, não está nada boa. O que a imprensa tem a ver com isso, além de noticiar?

A imprensa escrita poderia, para enfrentar a disputa com os veículos mais velozes (como rádio, TV e internet), procurar um caminho de maior profundidade, começando a analisar as notícias, ao invés de se limitar ao simples registro das informações fornecidas pelos interessados na divulgação dos fatos.

Vítimas de aborto

Um bom exemplo dessa superficialidade é a matéria da Folha de S.Paulo (2/7/2008) sobre o estudo feito pelo Centro Feminista de Estudos e Assessoria, que registrou, no ano, 250 mil internações de mulheres decorrentes de abortos ilegais:

‘`Encontramos uma situação bastante dramática. Visitamos duas maternidades, que atendem mulheres que recorrem por complicações de aborto. O volume de casos nessas unidades é muito grande e, muitas vezes, comparável ao número de mulheres que chegam para ter filhos´, diz Beatriz Galli, coordenadora do estudo. Ela destaca que as mulheres internadas por complicações decorrentes de abortos sofrem com a discriminação – às vezes, segundo a especialista, chegam a ser colocadas no último lugar da fila, durante o processo de triagem. Beatriz relata que, em Pernambuco, houve caso, inclusive, de erro de diagnóstico. Uma mulher que deu entrada no hospital, mas não explicou que tipo de procedimento havia provocado o sangramento vaginal que apresentava, chegou a ser diagnosticada com dengue hemorrágica e leucemia. Em seguida, foi levada ao Recife, onde acabou morrendo. Depois é que se descobriu que ela tinha provocado um aborto e estava com um sangramento por conta disso. `É uma situação muito grave, que mostra um descaso do Estado e o impacto da criminalização do aborto no dia-a-dia dos serviços de saúde´, disse Beatriz Galli.’ (Folha de S.Paulo, 2/7/2008)

O que faltou na notícia: dar algo mais que a posição da autora do estudo e verificar se são apenas as mulheres que fizeram aborto as discriminadas. A julgar pelo caso dos bebês mortos no Pará, parece existir, no país, uma grave crise no atendimento de saúde pública, que mereceria tanto destaque quanto a situação das mulheres vítimas de aborto. Dizer que a descriminalização do aborto resolveria o problema parece uma simplificação que a imprensa jamais deveria aceitar.

Espancadas e mortas

Outro exemplo é a divulgação da pesquisa do Centro Brasileiro de Análise a Planejamento – Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde da Criança e da Mulher – que verificou:

‘A idade mediana da mulher na época do nascimento do primeiro filho caiu, em dez anos, de 22,4 anos para 21 anos (metade das mães é mais nova que essa idade). O acesso a métodos de prevenção da gravidez também cresceu, mas não chegou a provocar impacto no número de filhos não planejados. Dos bebês nascidos entre 2001 e 2006, 18% foram indesejados e 28% estavam nos planos das mulheres só para mais tarde. Isso leva a pensar em falhas dos métodos (de anticoncepção), uso intermitente de métodos ou eventual descontinuidade na distribuição gratuita de métodos, afirma a demográfa Elsa Berquó, coordenadora da pesquisa’ (Folha de S.Paulo, 4/7/2008).

Não seria o caso da imprensa mobilizar vários repórteres para descobrir, nos postos de saúde, como é feita a distribuição de métodos anticoncepcionais e, com exemplos reais, confirmar – ou desmentir – a suposição da especialista?

Outra matéria que mereceria um tratamento mais profundo afirma que ‘43% das mulheres em idade fértil têm excesso de peso’ (Folha de S.Paulo, 4/7/2008). A notícia aparece apenas como um dado curioso. Mas seria interessante saber o que está levando a isso. As emissoras de TV dedicaram um bom espaço à notícia, como a rede Bandeirantes, que, no seu noticiário, mostrou imagens de mulheres acima do peso e entrevistou pessoas. Mas, segundo a TV, a culpa é das próprias mulheres que, segundo informação de uma dona de restaurante por quilo, ‘preferem guloseimas’. Nem a TV, nem os jornais, tiveram a preocupação de falar com nutricionistas e especialistas em saúde pública para descobrir por que, nesses tempos de culto ao corpo e dietas (tão divulgadas pelas revistas femininas), as brasileiras estão cada vez mais gordas.

E quanto às mulheres espancadas e mortas por maridos? Seria preciso ir além da notícia de oito ou dez linhas e verificar se a Lei Maria da Penha, tão divulgada quando sancionada, está fazendo o efeito esperado? A imprensa bem que poderia – e tem meios para isso – levantar quantas mulheres preferem continuar apanhando a ver seu algoz na cadeia.

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Jornalista