Os jornais de quinta-feira (20/2) noticiam com grande destaque a morte da jovem Génesis Carmona, de 22 anos, durante conflitos de rua na Venezuela. Ela foi atingida durante troca de tiros entre grupos de motociclistas que se enfrentavam na cidade de Valência.
A cobertura da imprensa brasileira dá ênfase ao clima de beligerância que se estabeleceu entre partidários do governo de Nicolás Maduro e seguidores do empresário Leopoldo López, atual líder da oposição. O noticiário acentua a percepção de que o país está irremediavelmente rachado ao meio, com a população mais pobre engajada majoritariamente no regime inaugurado por Hugo Chávez, enquanto a classe média e os mais ricos se alinham com as forças oposicionistas. O pano de fundo é uma crise econômica que prejudica o abastecimento de produtos industrializados, agravada pela percepção de que faltam recursos ao governo para romper o círculo vicioso criado pela extrema dependência do petróleo.
Há dez anos, quando Chávez governava, era visível nas cidades venezuelanas um clima de entusiasmo, com grandes obras de infraestrutura, como a nova ponte sobre o rio Orinoco, novas rodovias e muitas escolas e mercados comunitários. Nas regiões de fronteira com a Colômbia, era possível visitar ambiciosos projetos de urbanização de antigas aldeias e a construção de redes para fornecimento de água encanada e tratamento de esgotos.
O modelo bolivariano previa a entrega da gestão desses serviços a membros das próprias comunidades. Em todos esses lugares era possível observar a grande profusão de jornais regionais, muitos dos quais se dedicavam cotidianamente a criticar o governo. Os textos chamavam atenção pelo uso constante de adjetivos, e havia um diário em Maracaibo que chamava o presidente Chávez de “cachorro” em suas manchetes. Todos circulavam livremente e eram vendidos ou distribuídos gratuitamente nas ruas.
Passada uma década, há indícios de que a nova classe média, composta por muitas famílias que foram beneficiadas pela política econômica baseada no intenso protagonismo do Estado, virou a casaca. Sem o carisma de Chávez e acumulando erros estratégicos, Nicolás Maduro corre o risco de perder o apoio daqueles que mais sofrem com a falta de produtos básicos e com a inflação.
Situação de alto risco
A situação na Venezuela tende a se agravar, se não houver uma intervenção de organismos multilaterais, e espera-se que o Brasil cumpra um papel relevante nesse processo. No entanto, como a mídia tradicional resiste a reconhecer que políticas de Estado possam dar melhores resultados que a liberdade dos mercados, o histórico recente do jornalismo não autoriza a expectativa de que esses fatos venham a ser narrados com a mínima objetividade.
Um exemplo de objetividade é o documento vazado pelo Wikileaks em 2009, no qual se lê que o governo dos Estados Unidos considerava pouco confiável o agora líder da oposição venezuelana, Leopoldo López, tido como “arrogante, vingativo e sedento por poder”. Essa informação, presente em textos de agências internacionais, foi citada pelo Estado de S. Paulo e pelo portal G1, do grupo Globo, em notas curtas, mas a tendência geral do noticiário é a de condenar liminarmente o governo, embora o movimento de López seja efetivamente uma tentativa de golpe.
É esperado que, nas sociedades que passam por intensa mobilidade social, parte dos cidadãos beneficiados pela ascensão se torne mais conservadora, pelo simples fato de que, em sua nova condição, adquirem uma percepção maior do risco de perdas. Quem vive da mão para a boca se vê obrigado a enfrentar condições mais adversas; quem já conta com o básico e passa a ambicionar mais bem-estar tende a privilegiar a estabilidade e o conforto.
Essa é uma característica das classes médias. Essa é também uma condição presente nos países latino-americanos que passaram nos últimos anos pelo fenômeno da mobilidade social produzida pela intervenção do Estado na economia.
O ganho de bem-estar proporcionado por políticas de geração de renda entre os mais pobres tem sido registrado por pesquisadores independentes desde 2006. Mas essas conquistas raramente ganham destaque na imprensa do continente.
A figura populista e ruidosa de Nicolás Maduro, com sua jaqueta colorida, certamente se choca com o que se espera de um estadista, mas há muito mais a ser dito sobre a crise na Venezuela do que os jornais estão dispostos a publicar.