Segundo de uma série de quatro artigos sob o título geral ‘A imprensa e o dever da liberdade – A responsabilidade social do jornalismo em nossos dias’
Não há razoabilidade, como já ficou demonstrado [ver ‘A missão de servir ao cidadão e vigiar o poder‘] em supor que a liberdade de imprensa deva se condicionar à inexistência de erros. Ela não é uma recompensa que se outorgue aos veículos que acertam ou um privilégio que se interdite aos que erram; é, sim, premissa inegociável para a prática do jornalismo, seja ele bom ou ruim. A ninguém no governo pode caber a tarefa (ou a veleidade) de melhorar (ou de pretender melhorar) o nível do jornalismo. Isso não faz sentido.
Desde que o governo, qualquer que seja ele, não atrapalhe, o jornalismo, qualquer que seja ele, pode se dedicar a se aprimorar – e ele só melhora quando cumpre o seu dever de ser livre. Dever: esta é a palavra. Fala-se muito no dever da verdade, e com razão. Fala-se na fidelidade com que se devem reportar os fatos e o debate das idéias, também com razão. Mas a busca da verdade factual começa pela busca da verdade essencial do jornalismo, cujo nome é liberdade. Esta é a verdade interior que o anima e, sem cultivar sua verdade interior, ele seria incapaz de divisar a verdade que lhe é exterior. O profissional do jornalismo não pode admitir – nem a sociedade pode admitir que ele admita – a hipótese de que o exercício do jornalismo não seja livre, afirmativamente livre.
Ser livre é um imenso desafio, o maior de todos. A liberdade não é apenas letra. Ela só existe se for exercida de fato, por meio da visão crítica, do rigor, da objetividade, na obstinação por tornar públicas as informações que o poder preferiria ocultar. A liberdade floresce mais no conflito que no congraçamento, tanto que alguns a confundem com a mera falta de educação – o que também é uma forma de rebaixá-la. De um modo ou de outro, por um caminho ou por outro, ela precisa ser explícita, ostensiva mesmo, pois disso depende a confiabilidade, a credibilidade e a autoridade da imprensa. Se não reluzir na liberdade quente, a imprensa morre.
Cânones da ética
Quanto à responsabilidade, esta não deve ser entendida como um contrapeso da liberdade. Ao contrário, a liberdade é a maior e a primeira das responsabilidades do jornalismo. O resto vem depois: justiça, equilíbrio, ponderação, elegância etc. As chamadas virtudes do ofício existem para sustentar seu bem maior, a liberdade. Ela é a virtude-mãe, diante da qual as demais são acessórias.
Nem mesmo o apartidarismo, um cânone da boa prática de imprensa, é para o jornalista um imperativo tão alto quanto o de ser livre. O apartidarismo é uma exigência? Sem dúvida, é uma exigência – mas apenas porque reforça o primado da independência editorial, que está na base da qualidade da informação. Isso significa que uma revista ou um jornal têm todo o direito de apoiar abertamente uma causa partidária, desde que não o faça com dinheiro fornecido pelos cofres públicos – nesse caso, teríamos o erário financiando uma legenda em detrimento de outras, o que configuraria uma forma de uso da máquina pública para fins partidários ou pessoais.
Essa distinção não é menor. Basta ver que uma emissora de TV ou de rádio, sendo concessão pública, sofre – e deve sofrer – restrições que a impedem de promover editorialmente uma candidatura a cargo público, por exemplo, pois os serviços públicos não devem se prestar à promoção partidária, o que também caracterizaria uma forma de apropriação privada de serviços públicos. Quanto a um veículo impresso ou eletrônico que não seja concessionário da administração pública, este pode, dentro da sua esfera de liberdade, lançar apelos para que seus leitores se filiem a uma campanha ou mesmo que votem num determinado candidato.
Claro que, no plano ético, não se deve burlar o pacto de comunicação com o público. Para o seu próprio bem, não é recomendável que uma publicação dissimule o seu conteúdo, fingindo que está veiculando uma coisa – informação objetiva – para entregar outra – proselitismo. Agindo assim, além de ameaçar a si mesma com o risco do descrédito, ela macularia as bases da instituição da imprensa. Fora isso, no plano da legalidade ou da normalidade institucional, um veículo impresso pode muito bem exercer a sua liberdade abraçando uma bandeira que o identifique com um determinado partido, num determinado momento.
Assumirá o risco: se o seu gesto deixar a impressão de que renunciou à sua própria liberdade para se converter num apêndice de uma agremiação ideológica, a perda de credibilidade virá. Esse veículo terá jogado no lixo a razão pela qual um dia mereceu o respeito do público, mesmo daquele público que, eventualmente, concorde com as causas que ele abraçou. De resto, o apoio a uma causa de um partido, num momento delimitado, não significa partidarismo, mas, é bom ter claro, até mesmo a prática ou a aparência de prática do partidarismo, que contraria um dos cânones da ética de imprensa, só é um problema para o jornalismo porque implica a renúncia da liberdade – esse sim, o valor maior.
Direito e dever
Em resumo, a liberdade não funciona como redoma, um manto protetor que acolhe maternalmente os profissionais, livrando-os de cobranças, de julgamentos e condenações. Liberdade não é impunidade, mas um fator que impele o jornalista a se expor a julgamentos e punições. É uma bandeira que a imprensa tem o dever de empunhar, por mais que isso lhe custe – e custa. Quando negocia algumas de suas franjas, ainda que mínimas, ela deixa de ser imprensa e se converte na sua pior negação, traindo suas origens passadas e turvando o seu futuro.
Para o jornalista, exercer a liberdade é um dever porque, para o cidadão, ela é um direito. Para que este possa contar com o respeito cotidiano ao seu direito à informação, o jornalista não pode abrir mão do dever da liberdade. [Continua.]
******
Formado em direito e jornalismo pela Universidade de São Paulo, é doutor em Ciências da Comunicação pela mesma universidade e autor de alguns livros, entre eles Sobre Ética e Imprensa (São Paulo: Companhia das Letras, 2000); foi presidente da Radiobrás entre 2003 e 2007