Mais do que nunca, a conclusão de que a lógica puramente binária, cultivada no âmbito midiático, além de provocar a anestesia da faculdade de refletir, denunciada num texto de Luciano Martins Costa neste Observatório [‘A imprensa não estimula a inteligência‘], vem a se tornar francamente danosa para a totalidade dos indivíduos, mesmo os que não a esposem, está sendo confirmada pelo caminhar dos fatos. Em outro momento, cheguei a afirmar que ‘a lógica binária (‘comigo ou com meus inimigos’) muitas vezes acaba provocando os patrulhamentos de todos os matizes, em que não há o diálogo, mas uma superposição de monólogos, e quem perde com isto é principalmente a liberdade de manifestação do pensamento, como observa Ivo Lucchesi [ver ‘A informação e a filtragem, tempos assimétricos’ I e II].
‘[…] A lógica aberta vai além do dualismo consistente na crença do `quem não está alinhado comigo está automaticamente alinhado com os meus inimigos´. Mesmo as xilogravuras em preto e branco de Albrecht Dürer têm matizes de cinza para poderem ser vistas de modo a que se tenha a ilusão de terceira dimensão e, mesmo, a transmissão de emoções na medida em que o autor pretende comunicá-las (as xilogravuras Melancholia I e Os Quatro Cavaleiros do Apocalipse têm índoles bem diferentes). É um dado curioso este, de como os sectários se agarram fisicamente a seus preconceitos de um modo tal que precisam calar quem não pensa como eles pelo simples perigo de que a posição contrária possa estar certa. Pelo simples fato de alguém adotar uma posição sobre determinado assunto, já muitos se sentem insultados e julgam-se no direito de partirem para o achincalhe.’ [‘O rei, o caudilho e a lógica binária‘].
Os desafios para agora
O mais refinado exemplo teórico de lógica binária, por sinal, encontra-se na obra de Carl Schmitt, o grande jurista do nazismo, que transplantou para o âmbito do Direito Constitucional e da Ciência Política a distinção ‘amigo/inimigo’ (O conceito jurídico do político). Um exemplo prático é a conduta da mídia em relação aos fatos que antecederam o inquérito 2.245 e os que antecederam o inquérito 2.280 – o primeiro já convertido em ação penal e o segundo ainda em fase inicial, ambos no âmbito do Supremo Tribunal Federal, inclusive com o mesmo relator designado, ambos referentes a fatos de gravidade idêntica, mas com diferenças significativas em termos de simpatia dos personagens envolvidos, o que vem, inclusive, a dar razão ao que expus em outra oportunidade [‘História e conveniências‘].
A questão do aquecimento global é algo que transcende o problema da luta entre os partidos políticos no Brasil. E transcende porque um tucano ou um ‘democrata’ ou um integralista teria tanta chance de sobrevivência num contexto de um aquecimento para além do suportável da Terra, quanto um petista ou um integrante do PSOL ou um apartidário. Exige medidas que, inclusive, colocam em xeque alguns dos mais caros dogmas dos defensores da mais ampla privatização da economia e mesmo da redução do espaço dos serviços públicos. Não foi por acaso que a Veja minimizou o problema – e bem assim o Mídia Sem Máscara –, deixando ver nas entrelinhas que seria mais uma arma dos inimigos do sagrado sistema de mercado para justificar medidas de intervenção do Estado no domínio econômico, até porque a tendência de quem tem a plenitude dos poderes inerentes à propriedade em relação a qualquer coisa é a de usá-la até a exaustão – por sinal, é exatamente este o pressuposto do conceito de economia de rapina de Ratzel. O objeto de propriedade vem a se converter num verdadeiro ídolo, numa verdadeira razão de viver. Intensifica-se o objeto almejado enquanto mediador de relações sociais – consumidores de um mesmo produto aproximando-se (como cúmplices, sócios ou rivais) e distinguindo os que não o consomem como integrantes de um outro grupo a eles estranho. Klingsor ambiciona apropriar-se do Santo Graal para submeter a própria divindade, nele simbolizada, à condição de propriedade sua (metáfora fornecida pelo Parsifal, de Wagner). Os problemas ambientais e, conseqüentemente, a promoção do que desde o relatório Bruntland se chama desenvolvimento sustentável, são desafios para agora.
Exploração sustentável de petróleo?
O tratamento da mídia ao aquecimento global ofertado merece ser, sim, objeto de reflexão – como, aliás, fez Luiz Weis [‘Cobrindo o `maior desafio da nossa era´‘] como algo que ultrapassa o fundamento para a outorga do Prêmio Nobel da Paz em 2007 a Al Gore e à ONU. Este problema, com efeito, foi levantado quando da descoberta do poço Tupi, recebida, ora com indiferença, ora com ufanismo, ora com reticência, como salientei em outra ocasião [‘A partidarização das informações sobre o poço Tupi‘].
O problema ambiental decorrente da utilização de combustíveis fósseis vem a se mostrar muito mais grave nos tempos que correm do que mesmo em meados do século 20. Dir-se-ia que há uma tendência, por conta disto, a eles serem abandonados em prol de fontes alternativas de energia. Mas é correta, também, a observação de que o petróleo não é apenas fonte de energia, mas também matéria-prima de inúmeros produtos, inclusive do revestimento do computador no qual estou a teclar. No meu entender, o petróleo, enquanto fonte de energia, embora não possa ser de todo descartado – e, creio, não o será de logo –, estará na mesma situação que as velas e o sextante na navegação. Já se obsolesceram com o motor e com a navegação pelo radar ou pelo radiogoniômetro, mas ainda têm a sua utilidade numa emergência. E aí vem o outro desafio: será possível falar-se em uma forma sustentável de se explorar petróleo? E qual seria o papel da mídia? O que esta, afinal, tem que ver com o problema do aquecimento global e com o petróleo?
Conquistar o mercado consumidor
Embora as respostas às duas últimas perguntas sejam aparentemente óbvias, o fato é que o desenvolvimento de tecnologia para a exploração sustentável do petróleo envolve investimentos – seja diretamente, seja financiando pesquisas desenvolvidas por outras pessoas, físicas ou jurídicas, particulares ou públicas –, o que vai um pouco na contramão da lógica que tem sido defendida pela maioria das empresas de comunicação nos últimos tempos, de que o Estado tem de gastar o menos possível. Conforme as simpatias ou antipatias de quem resolva enfrentar este problema, teremos ou o tratamento louvaminheiro ou o tratamento de tais despesas como ‘desperdício de dinheiro público’.
O Brasil ingressando no campo de batalha do petróleo passa a se situar numa posição semelhante à de qualquer iniciante num mercado altamente oligopolizado, isto é, com os custos de transação maiores do que os que existiriam em um mercado onde houvesse efetiva concorrência. Não é, aliás, por outro motivo que Paulino Cícero, falando em entrevista à TVE em Brasília, no ano de 1993, defendeu o monopólio da Petrobras com o argumento de que não existe, na realidade, concorrência efetiva neste setor dominado pelas ‘irmãs’ e pela OPEP.
Quando ingressamos em uma luta, é necessária a estratégia, sob pena de aquele que tem o interesse antagônico vir a nos sobrepujar – e a conformação das relações internacionais, ainda hoje, é francamente hobbesiana, quando cada um vê o Outro como o obstáculo à satisfação de suas necessidades em um mundo de bens escassos. Emerge a questão de se saber se o Brasil detém o capital financeiro e tecnológico para isto, para ingressar neste campo de batalha, onde vale a regra posta por Ricardo III em sua fala aos aliados respectivos antes do confronto de Bosworth, de acordo com a pintura feita por Shakespeare na tragédia homônima, tradução de Beatriz Viégas-Faria: ‘Consciência não passa de uma palavra que usam os covardes, criada em primeiro lugar para manter os fortes respeitados e temidos. Que nossos braços fortes sejam a nossa consciência e nossas espadas, a nossa lei’ (aliás, no Hamlet, Shakespeare repete a idéia de que ‘a consciência faz covardes de todos nós’).
A absoluta falta de escrúpulos deste personagem seria vista, no século 19, como virtude cardeal, como observou Werner Sombart no seu O apogeu do capitalismo porque, afinal de contas, traduziria o estímulo a que se empregassem todos os meios para vencer a concorrência e, pois, esmerar-se em conquistar o mercado consumidor – pressuposto que, modo certo, parece presente no texto que Paulo Bento Bandarra [‘A questão de uma moralidade certa‘] escreveu para refutar meu texto intitulado ‘Consumidor também é influenciado pelo conteúdo‘].
Catástrofes e capital político
De outra parte, uma cobertura midiática a respeito do aquecimento global em relação à exploração do petróleo haveria de seguir a lógica de tratar o problema como algo que transcende os interesses partidários, e não como se fosse de o enfatizar, no caso de o governo não ser simpático, e de o minimizar, no caso de o governo ser simpático. O discurso do conde de Richmond em Ricardo III, antes da batalha de Bosworth, ganha verossimilhança devido ao pleno comando que tem o dramaturgo sobre a trama e os personagens: ‘Se os senhores lutarem contra o inimigo de Deus, Deus, por ser justo, vos protegerá, pois vós sois os soldados Dele.’
Na vida real, os fatos têm de ser compreendidos para além dos aspectos puramente convenientes à dama que se esteja a defender (a mundana Aldonza converte-se, na imaginação de Dom Quixote, na etérea Dulcinea del Toboso). O que determina que as providências referentes ao aquecimento global tenham de ser tomadas imediatamente ou postergadas não é a simpatia midiática, mas, sim, o problema em si mesmo.
Em outra ocasião, foi referido, reportando lição do jornalista gaúcho Fábio Carvalho [‘De previsibilidades e torcidas organizadas‘], o problema da infeliz tendência de se converterem as catástrofes em capital político [‘Causalidades e brutalidades‘].
Apenas um palpite?
E, por outra banda, é necessário não enveredar por um ecologismo à outrance, que implica a própria estagnação das atividades econômicas, com o que não se pode ignorar o alerta de Carlos Brickmann [‘Coração quente, cabeça fria‘]:
‘Uma comissão da ONU diz que o ser humano é responsável pelo aquecimento global? Isso significa apenas que uma comissão da ONU acha que o ser humano é responsável pelo aquecimento global. Pode ter razão, pode não ter. A nós, da imprensa, que não entendemos de clima nem ganhamos para isso, cabe divulgar a conclusão; e cabe divulgar também outras conclusões contrárias a ela. Não faz muito tempo, um especialista internacional informava que, em alguns anos, a Terra estaria terraplenada, todas as depressões preenchidas por lixo. Não aconteceu; ele tinha errado na conta.
E de onde viria o aquecimento global? Há especialistas que sustentam que faz parte dos ciclos naturais da Terra – que incluem, também, eras glaciais; e que ocorrem com ou sem a intervenção dos seres humanos.
Há fenômenos climáticos que são causados pela humanidade. O fog de Londres, aquela neblina escura que pontuava as histórias de Sherlock Holmes, desapareceu quando a população da cidade deixou de usar carvão para aquecimento e cozinha. Outros independem das parcas forças humanas: El Niño e La Niña simplesmente nos ignoram.
Ninguém, é óbvio, é a favor da poluição. Carros não-poluentes, produtos que utilizem menos energia, poupança de matéria-prima, redução de emissões de gás carbônico e outros também nocivos na atmosfera, reciclagem, expansão de florestas, tudo isso é desejável, urgente e essencial para o futuro da Humanidade. Mas será que os carrões americanos, os rebanhos do Brasil e da Nova Zelândia e o desenvolvimento da China estão mesmo aquecendo a Terra? Não será este mais um palpite, apenas?’
Barbárie e romantismo infantil
De qualquer sorte, em matéria ambiental, fala-se da precaução como um princípio pelo qual se inverte a equação tradicional: deve-se, antes, provar que a atividade não seja danosa ou cause menor impacto ambiental do que o contrário. A escassez de informações, pois, impõe muito mais prudência do que, propriamente, afoiteza, sob pena de os resultados se tornarem irreversíveis. Assim, com efeito, me pronunciei ao versar a transposição do Rio São Francisco. [O problema da informação e sua influência na apuração da juridicidade das medidas de política econômica: identificando os mistérios da denominada ‘transposição do Rio São Francisco.‘]
Tomemos um dos maiores orgulhos da época do ‘milagre brasileiro’ e o tratamento ufanista que necessariamente tinha de lhe ser dado àqueles tempos. Quem conhece o solo arenoso da floresta amazônica compreende perfeitamente por que a Transamazônica terminou não sendo, efetivamente, utilizada, por que as estradas líquidas – para usar uma expressão cara ao saudoso Darcy Ribeiro – ainda são ali a melhor opção para transporte, afora, evidentemente, o avião. Entretanto, apontar, à época, este tipo de problema era considerado suspeito de ‘colaboracionismo com as forças que queriam sabotar o Brasil, que queriam que o Brasil não desse certo’ e outros que tais. Algo que não deixa de evocar mais este exemplo da lógica binária versado em artigo de Ivo Lucchesi:
‘De um modo geral, a mídia brasileira tende a tratar a questão da preservação-industrialização da Amazônia com certo olhar desfocado. Confere-lhe matérias episódicas por conta de ocorrências de impacto ou sensacionalistas, como grandes queimadas, ocupações seguidas de mortes e fatos equivalentes. Quando esta não é a receita, outra não menos deformada toma lugar: um certo tom nostálgico, contaminado de visão romântica na qual se reafirma a atmosfera tão idílica quanto ingênua a evocar o `santuário da mãe-natureza´, sem mencionar o fato do quanto o tema serve para reavivar chamas de nacionalismo fervoroso. A mídia, com raras exceções, não se interessa pelo tema, ou não sabe como lidar com ele. Assim, ela se vê inclinada a oscilar entre o tratamento da barbárie e o infantil romantismo. Ambos são igualmente objeto de distorções que afugentam o encaminhamento de possíveis soluções. A única via plausível e racional diz respeito a uma análise científica e política’ [‘Amazônia: o perigo mora ao lado‘].
Onipotentes e oniscientes
O tema da redução do conceito de razão à razão instrumental é dos que mais me têm preocupado, justamente porque é a mais evidente manifestação da submissão do intelecto ao ânimo, o conhecimento pautado exclusivamente pelo que é conveniente a quem, em uma dada relação, ocupa uma posição de poder (não precisa, necessariamente, ser público tal poder). A razão instrumental é teleologicamente condicionada, o que a faz, em termos kantianos, visivelmente ‘pouco racional’. Schopenhauer, aqui, pode rir-se de Hegel e de sua astúcia da Razão…
O investimento no culto ao prazer, num certo sentido, pode ser considerado decorrência daquela redução: afinal, o que provoca algum tipo de desconforto, em regra, não se procura, e um dos maiores desconfortos a que se pode submeter alguém é convidá-lo a sacudir o sistema de crenças no qual se movimenta com tranqüilidade. A possibilidade de identificar, com segurança, o Mal e destruí-lo é algo que conforta, que tranqüiliza, porque implica a possibilidade de arredar o que perturba o estado de tranqüilidade. A possibilidade de identificar o Bem com o que agrada também conforta.
Mesmo que, hoje, estejam os consumidores mais críticos em relação ao entretenimento e à informação temperada pelo intuito de induzir comportamentos e decisões, ainda se pode dizer que se trata de minoria, pois quando a mensagem se dirige mais à emoção do que à razão torna-se muito difícil fazer com que esta última venha a se colocar para a reformulação dos pontos de vista: afinal, muitos gostam de ser bajulados com a visão de que são onipotentes e oniscientes, e detestam o que quer que lhes mostre o contrário, tema que, por sinal, foi ilustrado por um fato ocorrido há quatro anos, protagonizado pelo grande escritor peruano Mario Vargas Llosa [‘Nossa imprensa nem soube‘].
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Advogado, Porto Alegre, RS