Maísa Silva, 7 anos, recebeu chorando os insultos e a verve maledicente de seu patrão Silvio Santos. Tudo transmitido em horário nobre pelo SBT. Deprimente ver a pequerrucha em lágrimas, pois ao correr para o colo de sua mãe esbarrou em uma câmera e segundos depois voltou ao palco dizendo que ‘está doendo, está doendo muito’. E para completar o pastelão e o descaso do apresentador e dono da TV com a segunda maior audiência do país, Maísa se apressou a dizer: ‘Vou hoje, mas prometo gravar dois programas nesta semana!’
Enquanto isso, tudo era levado na mais estrita galhofa. O caso Maísa já deveria ter sido encerrado há muito tempo. Trata-se de uma menor de idade sendo explorada por seus pais que vêem nela, além de uma menina-prodígio (o que realmente é), uma mina de ouro com potencial vistoso para nublar a descoberta de petróleo no campo de Tupi e até mesmo o sempre falado pré-sal.
Silvio Santos viu que a petiz – além de talento – poderia alavancar seus índices de audiência, quase sempre emparelhando ou perdendo a segunda posição no Ibope para a concorrente Record. O Ministério Público ameaçou interditar Maísa e a forma como estava sendo ‘usada’ pelo SBT. O Youtube vem bombando milhares de visualizações com essas cenas, como já disse, deprimentes (ver aqui e aqui).
Frase emblemática
Não é de hoje que a busca por audiência televisiva faz uso de crianças da mais tenra idade. Nos anos 1970 existia programa na finada TV Tupi comandado pelo Lúcio Mauro, Essa gente inocente. Era tudo ensaiadinho, nada saía do roteiro e se saía tinha como consertar antes de ir ao ar. Foi de lá que surgiu o menino-prodígio conhecido como Ferrugem. Detalhe: Ferrugem padecia de uma enfermidade que lhe impedia ou retardava o crescimento.
Nos anos 1980 tivemos Xuxa com programas em que era endeusada e onde ser chamada Rainha dos Baixinhos era o de menos. Muitas eram as cenas vistas ao vivo pelas lentes da Globo em que a apresentadora empurrava a cabeça da criança contra o microfone ou simplesmente chamava a criança de burra.
Maísa se veste como Shirley Temple, moda comum na primeira metade do século 20. A original Temple, além de falar e contar piadas, cantava e sapateava. Encantava a classe média e pobre e encantava mais ainda as classes dirigentes dos Estados Unidos. Eram os anos da Grande Depressão. É provável que dali tenha nascido o termo ‘menina-prodígio’.
Já naquele tempo não era nada fácil para a artista-aprendiz-de-adulto. Temple iniciou aula de dança aos 3 anos de idade e foi contratada para participar de Baby Burlesks, uma série de curtas que parodiavam estrelas e astros adultos, mais notadamente Marlene Dietrich. Foi estrela da Fox e da Paramount. Seus cachinhos e covinhas, além do talento para o palco e a idade, renderam-lhe um Oscar aos 6 anos.
Estudiosos do tema são unânimes ao afirmar que Shirley Temple foi a salvadora da Fox e do público na época da Depressão. Filmes com sua participação eram garantia de bilheteria. Já adulta, após aposentar-se em 1949, aos 21 anos, foi embaixadora de Washington em Gana e na Tchecoslováquia.
Duas frases da pequena Shirley Temple mostram à medida o que significou ter uma infância roubada: ‘E se quando eu crescer não for tão bonita quanto hoje?’; e a não menos emblemática ‘Deixei de acreditar em Papai Noel quando tinhas 6 anos. Minha mãe me levou em uma loja e ele pediu meu autógrafo’.
Lição de profissionalismo
Desde setembro de 2008, com a quebra do Lehmann Brothers nos EUA, o que não faltam são analistas para dizer que vivemos um período de caos econômico muito similar aos vivido nos anos 1930 e conhecido como a ‘Grande Depressão’. Sintomático que o Brasil passe a conviver com sua Maísa Silva assim como o Grande Irmão suportou as agruras daquele tempo com sua Shirley Temple.
Não há como negar o forte apelo de uma criança contracenando com o dono da empresa e fazendo coisas hilárias, como tentar arrancar sua possível peruca ou chamar a atenção para as muitas rugas no rosto do chefe.
Como também não há como negar que na defesa de crianças e de adolescentes no Estatuto da Criança e do Adolescente parece ser mais obra literária do que um conjunto de normas para proteger a dignidade de nossas crianças e seu direito à infância.
O que não podemos esquecer é a promessa de Maísa de que irá gravar dois programas em uma só semana. Mais responsável, impossível.
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Mestre em Comunicação pela UnB e escritor; criou o blog Cidadão do Mundo