Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

A mídia atordoada pelo movimento

A rua dita a pauta da imprensa e comanda a agenda política. Articulados nas redes sociais, os protestos que tiveram início há duas semanas em São Paulo, por conta do aumento nas tarifas de ônibus, espalharam-se pelas principais capitais e acolheram reivindicações mais amplas no campo da política. Milhares de cartazes pediam mudanças urgentes em diversas áreas. Descontentes com os rumos do país, os manifestantes surpreenderam o governo e a imprensa em plena Copa das Confederações. De uma postura crítica ao movimento nos primeiros dias, a mídia passou a dar voz aos manifestantes quando jornalistas que cobriam os protestos foram agredidos pela polícia.

Em meio a cenas de baderna, grupos de manifestantes mais radicais chegaram a hostilizar a imprensa e atearam fogo em veículos das emissoras SBT e Record. Em resposta aos protestos, a presidente Dilma Rousseff propôs à nação um pacto de cinco pontos, que envolvem reforma política, responsabilidade fiscal, educação, saúde e transporte. O Observatório da Imprensa exibido ao vivo pela TV Brasil na terça-feira (25/6) examinou a cobertura da imprensa e os desdobramentos das manifestações que sacudiram a apatia dos brasileiros de Norte a Sul do país.

Alberto Dines recebeu no estúdio do Rio de Janeiro os jornalistas Pedro Doria e Lúcio de Castro. Doria é editor-executivo de plataformas digitais e colunista de O Globo. Foi editor-chefe de conteúdos digitais de O Estado de S.Paulo e colunista da Folha de S. Paulo. É um dos fundadores dos sites No. e NoMínimo. Lúcio de Castro é repórter e comentarista da ESPN Brasil. Formado em História e em Comunicação Social, trabalhou no Jornal do Brasil, O Globo, TV Globo e Sportv. Em São Paulo, o programa contou com a presença da cientista política Alessandra Aldé, que também é jornalista. Professora da Faculdade de Comunicação Social da UERJ e do Instituto de Estudos Econômicos, Sociais e Políticos (IESP), Aldé estuda temas relacionados à comunicação política. Dirigiu, com Vicente Ferraz, o filme Arquitetos do Poder.

Na abertura do programa, em editorial, Dines questionou a ausência do chefe da pasta dos Transportes no noticiário das últimas semanas: “Como se chama o ministro dos Transportes? Pois é, ninguém sabe. No meio deste turbilhão que entrará para a história do Brasil por causa de um aumento das tarifas dos transportes públicos, não apareceu uma única vez no noticiário o nome do ex-governador da Bahia, César Borges, velho parceiro do cacique ACM, empossado na pasta em 3 de abril. Simbólico e dramático: aquele que seria o protagonista do episódio evaporou e pelo visto não fez nenhuma falta. Seria mais um aturdido, mais um surpreendido pela dinâmica das ruas” (ver íntegra abaixo). Dines sublinhou que a mídia foi uma das instituições mais atordoadas durante os protestos, sobretudo nos primeiros dias.

Fogo nos carros

Antes do debate no estúdio, o programa apresentou uma reportagem com a opinião de jornalistas. Ascânio Seleme, diretor de Redação do jornal O Globo, assegurou que a cobertura da imprensa não mudou, mas evoluiu: “Uma manifestação de alguns milhares de paulistanos evoluiu para uma manifestação de quase 1 milhão de brasileiros em todas as grandes cidades brasileiras com um índice de participação de diversas camadas da população impressionante. E, depois, com o vandalismo exacerbado que a gente viu nos dias seguintes, obviamente que a cobertura tinha que mudar. O que era cobertura de uma página de jornal no primeiro dia virou cobertura de cadernos de alguns jornais e de 10, 12 páginas do nosso jornal”.

O jornalista ressaltou que a imprensa está tentando entender os desdobramentos dos fatos junto com a população e que esta cobertura é difusa e complicada do ponto de vista editorial. “Você não tem líderes, porta-voz e as demandas são inúmeras. Você não pode eleger uma [delas], embora nesse caso tivesse uma demanda inicial que foi a diminuição [do preço] das passagens de ônibus, ou simplesmente a eliminação de qualquer tarifa de transporte coletivo”, disse Seleme.

Carlos Marcelo, editor-chefe do jornal Estado de Minas, avaliou que essa cobertura tem sido particularmente desafiadora e complexa pela natureza dos eventos. “Ela começou com um fato local, com manifestações localizadas em São Paulo. Subitamente, após aquela manifestação ostensiva de força por parte da Polícia Militar, especialmente contra jornalistas lá em São Paulo, ela adquiriu uma dimensão nacional. Eu acho que nós, da imprensa fora de São Paulo, demoramos um pouco para perceber esse alcance e a irradiação dessa manifestação”, admitiu o editor.

Para Nilson Vargas, editor-chefe do jornal Zero Hora, a imprensa foi surpreendida pelos protestos: “A forma de organização, a maneira rápida como tudo aconteceu, o fator redes sociais, a liderança difusa, a pauta ampla dos movimentos, tudo isso baratinou a imprensa. Eu tenho dito para alguns colegas que no passado era mais fácil cobrir esses movimentos. Tinha palanque, tinha protesto, tinha megafone, tinha show de artista no fim, as coisas pareciam estar no seu lugar. Agora mudou, e mudou bastante”.

O jornalista ressaltou que é o momento de pensar na desconexão do poder público com a sociedade. “A gente tem que olhar para frente e não ser refém da discussão [sobre] se é maioria, se é minoria, quem é violento, quem não é violento. É entender que existe um fenômeno, [que] existe uma novidade”, disse Vargas. Outro ponto importante, na visão do editor, é que a imprensa deve evitar glamourizar ou criminalizar o movimento.

Para a jornalista e professora Sylvia Moretzsohn, a postura da mídia teve oscilações nas duas últimas semanas: “A grande imprensa estava o tempo todo falando: são vândalos, estão atrapalhando o trânsito. A cobertura era toda essa. Folha, Estadão, O Globo, todos falando a mesma coisa. Aliás, mais grave – naquela manifestação marcada na quinta-feira [13/6], houve dois editoriais, um da Folha e outro do Estadão, que pediam mais repressão. A Folha falava ‘dentro da lei’ e o Estadão [dizia] que era preciso agir com a força que fosse necessária, e de fato eles agiram. E agiram de uma maneira tão violenta que inclusive ganhou a imprensa internacional. Os jornais voltaram atrás e fizeram uma autocrítica disso”.

A professora comentou o papel das novas mídias na organização dos protestos. “As redes sociais têm um papel importante de aglutinação, de organização, de comunicação, de interligação dessas pessoas que estão aí dispersas, mas ao mesmo tempo têm um polo de atração. O problema das redes sociais é exatamente a credibilidade. O que há de disseminação de boatos é uma coisa impressionante. [Naquela] quinta-feira, quando houve a manifestação no Rio, muitas coisas foram disseminadas nas redes que não eram verdadeiras”, afirmou Sylvia Moretzsohn.

O programa entrevistou Pedro Brandão, um dos organizadores do Movimento Passe Livre. Para ele, a mídia tem falhado ao incluir outras pautas dentro do movimento. “O que ficou bem claro foi uma posição que está tentando separar esses manifestantes que colocam fogo no carro da Record dos manifestantes pacíficos. Existe crítica dentro do movimento a esse tipo de atitude, mas ninguém é sujeito à autonomia de ninguém. Se a pessoa enxerga como ação política colocar fogo no carro da Record, ela coloca fogo no carro da Record. E isso está sendo usado como uma forma para criminalizar o movimento”, explicou o manifestante.

Risco calculado

No debate ao vivo, Dines perguntou a Pedro Doria qual foi o fator que empurrou as multidões para as ruas no Brasil. Para Doria, somente duas semanas após o início do movimento é possível entender as manifestações com mais clareza. O jornalista destacou que as redes sociais foram importantes ferramentas de mobilização em outros movimentos recentes, como a Primavera Árabe no Oriente, o Occupy Wall Street, nos Estados Unidos, e a articulação dos Indignados, na Espanha.

Doria lembrou que o professor catalão Manuel Castells chamou atenção para o fato de que o Brasil se destaca no contexto desses protestos porque há pleno emprego, situação diferente da Europa e dos Estados Unidos, e existe democracia, o que não ocorre na maioria dos países que passaram pela Primavera Árabe. Para Castells, o movimento das ruas no Brasil é novo, mesmo se comparado aos que ocorreram recentemente em outros países.

“Tanto nós na imprensa, um pouco incomodados, quanto os políticos, esses certamente nem um pouco incomodados, tínhamos a impressão de que o povo – com Copa aqui, Olimpíada, pleno emprego – estava tranquilo, dava para fazer o desaforo que fosse. O que a gente percebeu é que existe um limite para o nível de desaforo e a população foi para a rua”, disse Doria. O jornalista pontuou que a cobertura das manifestações foi desafiante porque o fenômeno é surpreendente. Era preciso entender o que estava acontecendo, qual era a gravidade dos fatos e identificar os principais personagens. E, ao mesmo tempo, a mídia tinha que informar e apresentar análises.

O jornalista contou que O Globo fez um levantamento em parceria com o site Avaaz, que disponibiliza ferramentas de mobilização popular, para tentar traçar o perfil dos manifestantes. As 10 mil respostas recebidas nas primeiras horas mostraram que mais de 60% das pessoas tinham entre 18 e 35 anos e renda de um a cinco salários mínimos. O jornal listou 21 questões para os participantes escolherem as que fariam parte da pauta de reivindicações, entre elas casamento gay e aborto. Quatro destas questões tiveram mais de 70% dos votos: a PEC 37, a reforma política, a classificação de crime hediondo para corrupção e hospitais de qualidade. “Você tem três questões que no fim das contas representam o símbolo de uma mesma ideia, que é: ‘a gente está de saco cheio da maneira como a política é conduzida no Brasil’”, disse Doria. O jornalista destacou que, a partir de levantamentos como esse, não é mais possível dizer que os objetivos das manifestações são difusos.

Alessandra Aldé afirmou que este movimento político tem referências no passado, mas apresenta novidades importantes. A mobilização pela internet é dispersa e reúne pessoas com motivações e interesses políticos distintos: “As redes sociais na internet funcionam por ondas. Foi uma onda que chegou à rua, transbordou para os meios de comunicação”. A professora ressaltou que, antes dos protestos em São Paulo organizados pelo Movimento Passe Livre, jovens de várias cidades já haviam organizado protestos motivados por sentimento de insatisfação generalizada.

“A vitória é que as pessoas foram se encontrar na rua por motivação política. Por mais que isso tenha efeitos que a gente não pode dominar, é um fato em si muito animador”, ressaltou a cientista política. A internet, na avaliação de Alessandra, é segmentada em grupos que têm afinidades, mas as redes sociais permitem que algumas pessoas funcionem como difusores de notícias ou ideias.

Para ela, a insatisfação é constante na população ao longo da história. A cientista política destacou que as passeatas abertas abrigam quaisquer tipos de grupo, inclusive de pessoas que querem apenas “surfar” no movimento ou fazer baderna. “Estar junto na rua é um aprendizado. As pessoas vão ver as bandeiras umas das outras, identificar coisas com as quais se afinam ou discordam. E tem sempre o risco dos oportunistas de todo o tipo. Os bandidos e assaltantes vão acabar participando da manifestação, infiltrados de um lado ou de outro. Não tem como colocar um abadá e um cordão de isolamento em uma manifestação”, analisou.

Jornalismo e entretenimento

Dines comentou que havia a premissa geral de que um evento esportivo do porte da Copa das Confederações anestesiaria as insatisfações populares e, surpreendentemente, o povo optou por acompanhar os jogos e também protestar nas ruas. Lúcio de Castro avaliou que o futebol acabou virando um símbolo dos muitos desaforos que a população vinha enfrentando, como os bilhões gastos com os grandes eventos esportivos programados para ocorrerem no Brasil nos próximos anos. “Com a soma de desaforos, o futebol acabou sendo o moinho de vento, o símbolo maior. A imprensa foi negligente na cobertura desses desaforos. Como o futebol foi tratado muitas vezes como festa, perdeu-se a dimensão do desaforo que estava sendo feito”, avaliou o repórter da ESPN.

Alberto Dines afirmou que a cobertura de futebol é feita, na maioria das vezes, pelas editorias de esporte, que precisam agradar ao torcedor e, por isso, não se detêm sobre os gastos com os grandes eventos esportivos. Lúcio comentou que diversos meios de comunicação já optaram por migrar a cobertura para a editoria de política. “É uma decisão editorial de cada jornal e o grande problema é a diferenciação entre o que é entretenimento, o que é comercial e o que é jornalístico. Por muito tempo a imprensa negligenciou o que era jornalismo a favor desse entretenimento, desse comercial. E nessa confusão houve uma grande lacuna – e agora as pessoas estão cobrando”, disse o jornalista.

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A cobertura dos protestos

Alberto Dines # editorial do Observatório da Imprensa na TV nº 689, exibido em 25/6/2013

Bem-vindos ao Observatório da Imprensa.

Como se chama o ministro dos Transportes? Pois é, ninguém sabe. No meio deste turbilhão que entrará para a história do Brasil por causa de um aumento das tarifas dos transportes públicos, não apareceu uma única vez no noticiário o nome do ex-governador da Bahia, César Borges, velho parceiro do cacique ACM, empossado na pasta em 3 de abril.

Simbólico e dramático: aquele que seria o protagonista do episódio evaporou e pelo visto não fez nenhuma falta. Seria mais um aturdido, mais um surpreendido pela dinâmica das ruas.

Nesta quinzena de perplexidades, a mídia foi uma das instituições mais atordoadas: quando o governador paulista e o prefeito paulistano, em uníssono, designaram os manifestantes como vândalos, a mídia não teve dúvidas, foi atrás – a PM também. E quando acabou a batalha entre canibais e antropófagos – no dizer de Elio Gaspari – descobriu-se que as maiores vítimas das balas de borracha foram os repórteres.

Foi uma das mais portentosas coberturas dos últimos tempos: a mídia eletrônica esmerou-se, esteve presente no país inteiro, em tempo real – mas do alto, de helicóptero. Nos estúdios e bancadas, âncoras e professores convidados tentavam teorias e interpretações.

Até agora não se sabe exatamente o que aconteceu – as puxadoras das multidões foram apenas as redes sociais? Ou foi o exemplo da Turquia? Estamos novamente, como em 1968, diante de um mundo de pavio curto?

Este capítulo da nossa história ainda não foi batizado. A imprensa logo o entenderá e lhe dará um nome.

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Lilia Diniz é jornalista