‘O que nós hoje compreendemos como violência urbana é um fenômeno especificamente brasileiro. A violência no Rio de Janeiro é resultado de uma acumulação social da qual participam vários atores, entre eles a mídia’, afirmou o professor dr. Michel Misse, coordenador do Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana (NECVU/IFCS), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em sua palestra na disciplina e curso de extensão de Jornalismo de Políticas Públicas Sociais, no dia 17/03, uma realização do NETCCON.ECO.UFRJ e da ANDI sob a coordenação do professor Evandro Vieira Ouriques.
De acordo com o professor Michel Misse, ‘quando se nomeia que algo é violento, ou se diz de alguém que este alguém é violento, este enunciado não é apenas descritivo, mas performático, pois é uma ação que demanda uma reação’. Portanto, segundo Misse, ‘quando a mídia fala da violência, ela está agindo, é um ator, assim como a polícia, como os criminosos e nós, vítimas, também somos atores’. Ele considera que a mídia, ao tratar da violência, não está apenas descrevendo e noticiando o fato. ‘A mídia é um ator, ela seleciona quem acusar, quais políticas públicas que deveriam ser aplicadas e confere prestígio aos que praticam os crimes’, ressaltou.
Nesta semana, o tema levantado por Misse foi ‘A Violência que Acusa a Violência: a degradação de Si e do Outro através da Mídia’. Em sua palestra, lembrou Norbert Elias, quando ele afirma que somos mais civilizados na medida em que menos violência introduzimos nas relações sociais. ‘O que vai caracterizar a sociedade moderna de acordo com Elias e Foucault é que se passa a criminalizar o recurso à força física e a utilizar a justiça, que dará tratamento racional, burocrático e institucional aos conflitos que lhe cheguem ao conhecimento.’
Força física e armas
Em sua apresentação, o professor Misse – que, entre várias premiações e reconhecimentos, recebeu em 2005 a Comenda de Oficial da Ordem da Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro, outorgada pela Secretaria de Segurança Pública do Estado – mostrou que no Direito moderno, quando a sociedade européia começou a se organizar a partir do século 17 e especialmente a partir do século 18 para pacificar as relações de violência que compareciam na vida de suas sociedades (o que nada tem a ver com as guerras), o que há de mais importante é o direito à vida: ‘Como o trabalho dos médicos nos hospitais, buscando salvar quem vai até ali para salvar-se, enquanto nas sociedades pré-modernas a saúde era um problema da família, pois não havia nenhuma preocupação pública.’
É assim que surgem, na sociedade moderna, os movimentos pela paz. ‘Hoje, nos EUA, já há práticas de aproximar os criminosos das vítimas para que ali se encontre, no encontro das humanidades de ambos, uma solução maior do que a pena, que é necessária, fundamental. Não se trata de eliminar a punição, mas sim, fazer com que ela seja minimamente utilizada.’ Para o pesquisador, o crime mais grave na sociedade moderna talvez seja o homicídio, que era antes um ato restrito às relações privadas entre as famílias.
O professor Misse perguntou insistentemente em sua palestra: ‘Por que nós vivemos num ambiente social com tanta violência, com tanta representação da violência?’, a qual, em sua percepção, ‘tememos como a um sujeito’. Para ele, isso é um fenômeno, ‘o criminoso ou suspeito de ter cometido um crime não se rende, e prefere correr o risco de morrer a ser preso. E, mesmo assim, o bandido que é rendido muitas vezes acaba sendo executado pelo policial’. Em um ambiente em que a representação da violência é generalizada, as práticas criminosas incorporam a força física e o recurso às armas – ‘um recurso indiscriminado à violência’.
Pesquisas de vitimização
De acordo com Michel Misse, não há violência; há violências, no plural, ‘são muitas e não são uniformes’. Para ele, a palavra violência é vista como um sujeito abstrato e a sociedade ‘trata uma multiplicidade de eventos distintos como se fosse uma única coisa; isso é um equívoco, uma ilusão; e esse pensamento induz a erros, mesmo para o estabelecimento de políticas públicas’. E acrescenta: ‘É preciso ter cuidado com o uso da palavra violência, não há violência sem ofensa moral, ela decorre de um ambiente cultural; o que era violência antes, hoje pode não ser interpretado como tal.’
Michel Misse chamou a atenção para as pesquisas de vitimização, as surveys (que começaram a ser feitas nos anos 1980 na Inglaterra e no Brasil), perguntando se as pessoas foram vítimas de atos criminosos. ‘[Elas] são mais realistas e revelam dados mais verdadeiros do que as estatísticas criminais realizadas pela polícia devido à sub-notificação de informações oficiais, pois não é todo ato violento que chega ao conhecimento das autoridades, e dos que chegam. muitos não são registrados.’
Ele citou mais exemplos concretos: ‘Nos EUA, elas são feitas anualmente. Aqui, não, são poucas e por isto dá para lembrar de cabeça. Na Inglaterra, na França, nos EUA e no Brasil os índices são semelhantes, com cerca de 10% de vitimização. Como isto é possível, se a percepção que temos aqui da violência nos diz que é ela muito maior?’ E afirma: ‘A nossa percepção é de que a violência é maior do que na Inglaterra, apesar da pesquisa de vitimização ser análoga e demonstrar números bem parecidos. Embora as taxas possam ser semelhantes entre países da Europa e dos EUA, e a quantidade de furtos e roubos seja igual, o recurso à violência é muito maior aqui no Brasil.’
Tráfico de drogas
Lembrando que na Europa, por exemplo, os atos de vandalismo são muitos, o professor Misse destacou ainda que ‘aqui, quando se responde aos surveys, ninguém lembra destes atos’. Ele compara a taxa de homicídio na Inglaterra ou em países europeus, que gira entre um ou dois homicídios por cem mil habitantes. No Brasil, a taxa é cerca de 25 a cada cem mil pessoas e no Rio de Janeiro, já chegamos a ter 70 assassinatos pela mesma quantidade de habitantes. Hoje, no estado, o número fica em torno de 50 homicídios por cem mil.
A respeito da violência com que a polícia age, o professor afirmou que, só em 2007, 1.500 pessoas suspeitas de crimes foram mortas pela polícia no Rio de Janeiro, enquanto nos EUA esse número não chegou a 200. A taxa de esclarecimento de assassinatos na Inglaterra ou em países considerados desenvolvidos é de 90%. E no estado do Rio, o índice de elucidação de assassinatos é de 8%, ‘ou seja, em 92% dos casos ninguém é preso’. E por que isto? ‘Se você pergunta ao oficial da PM ou acompanha a operação, verifica um processo estranhíssimo, pois o criminoso não se rende, mas responde a tiros, enquanto no mundo inteiro eles se rendem. E outro fato importante é o bandido que é rendido e é fuzilado por alguns policiais’. Para ele, a pena de morte continua sendo aplicada indiscriminadamente.
Misse ainda fez críticas ao pensamento único, no Rio de Janeiro e em cidades brasileiras, que associa o tráfico de drogas à violência: ‘Não é certo falar que a violência vem só do tráfico. O tráfico responde por uma parcela das práticas criminais. Você pode ter tráfico sem violência, existe tráfico de drogas no mundo inteiro, algumas vezes de forma até mais ostensiva do que no Rio de Janeiro. O que chamamos de ‘traficante’ aqui no Rio não é apenas um comerciante de drogas ilícitas, o tráfico adquiriu características que incorporam práticas de violência.’
Disputas intermináveis
Para o professor Michel Misse, ‘a associação que parte importante da mídia faz da violência com o tráfico não é verdadeira, pois ela não se dá em outros países desta maneira: temos o exemplo de um tráfico de classe média que compra drogas no morro e tem seus próprios meios de comercialização e que rejeita a violência, pois ela torna seus agentes vulneráveis.’
Para ele, isto ocorre porque aqui o tráfico que existe em todos os lugares assumiu uma posição de violência que não existe em qualquer outro lugar do mundo, isto ‘para tiranizar a população, para exercer o poder naquela área. Uma parte destes traficantes faz isto para territorializar o seu comércio, enquanto o tráfico de classe média não o faz; cada traficante de classe média tem seus contatos e pronto’.
O pesquisador afirmou que o tráfico está territorializado e, por isso, tornou-se mais ‘vulnerável a incursões policiais e de outros grupos que queiram dominar esse território’. Para ele, ‘é essa vulnerabilidade que obriga os traficantes a ter que se armar – é a concepção armamentista para defender o território’. Esta territorialização, como no caso do Estado, leva a uma militarização, a um sentimento de pertencimento, de comunidade, de redes de proteção que começaram nas penitenciárias, protegendo o presidiário.
E sobre o que se acredita ser o crime organizado, ‘não é uma máfia, não tem nada a ver com uma organização do tipo mafiosa. São redes de proteção horizontais, e não verticais, são precárias; não conseguem se organizar e monopolizar o mercado e vivem de disputas intermináveis entre si e pelos pontos de venda, dada a mesma origem da dedicação ao tráfico: ambição desmedida, desconfiança absoluta’. Isto, de acordo com Misse, acontecia com o jogo do bicho, com disputas intermináveis, até que se chegou a um equilíbrio diante da concorrência das loterias de toda sorte. ‘O tráfico não tem relação com o bicho, pelo menos no varejo. No atacado, não sabemos.’
Impedir ou suprimir
‘O que hoje compreendemos como violência urbana é um fenômeno especificamente brasileiro. Mesmo na Colômbia, a violência estava mais vinculada aos cartéis, e não às redes horizontais, como o tráfico no Rio de Janeiro’, considerou Misse.
Em sua palestra, Misse ainda questionou as abordagens positivistas: ‘Não estudamos indivíduos, mas interações sociais, e é nestas que se dá a acusação.’ Fez uma crítica ao pensamento de que ‘o crime existe só no outro’. É o que ele considera como ‘sujeição criminal’: a concepção de que o sujeito carrega o crime nele mesmo, e assim, não se caracterizaria como uma prática criminal. Essa concepção faz parte de uma política de eliminação.
De acordo com esta concepção, o criminoso seria constituído pela existência de uma regra; estaria tomado de uma essência e precisa ser impedido, ou suprimido. Deixa de ser um estigma e um rótulo, mas reunindo-os para ser uma marca indelével. ‘Aquele indivíduo carrega uma essência da qual ele não pode retornar para a sociedade, não pode ser ressocializado, apenas através de um processo de conversão que entende que o criminoso não é aquilo, mas está tomado por um mal que precisa ser resolvido.’ Calcula-se que dez mil suspeitos de crimes tenham sido eliminados no Rio nos últimos dez anos.
Calendário
Palestras a serem realizadas em 2008/1:
Semana 4 (31/03): O Paradigma do Desenvolvimento Humano como orientador da cobertura.
Palestrante: Flavia Oliveira (O Globo)
Semana 5 (07/04): Lições Africanas para a Igualdade na Diversidade Humana: a questão da não-violência.
Palestrantes: Mãe Beata de Iemanjá e professor Evandro Ouriques.
Semana 6 (14/04): A desigualdade social no Brasil e os processos de formulação das políticas públicas sociais compensatórias.
Palestrante: Mirella de Carvalho (IPEA)
Semana 7 (28/04): Orçamento nacional: As possibilidades de intervenção e orientação para o social.
Palestrante: Leonardo Mello (Ibase)
Semana 8 (05/05): O desafio de aumentar a presença das políticas públicas na grande imprensa.
Palestrante: Bia Barbosa (Intervozes)
Semana 9 (12/05): A cobertura das políticas públicas na área da Educação no Brasil.
Palestrante: Antônio Góis (Folha de S. Paulo)
Semana 10 (19/05): Cobertura de qualidade em meio à violência estrutural: A força política da não-violência e a responsabilidade dos atores sociais e dos jornalistas.
Palestrante: Professor Evandro Vieira Ouriques (NETCCON.ECO.UFRJ, NEF.PUC.SP)
Semana 11 (26/05): A Questão das Políticas Públicas Sociais e a Mídia Contra-hegemônica.
Palestrante: Paulo Lima (Viração)
Semana 12 (02/06): A Comunicação criada pela Periferia no Rio de Janeiro.
Palestrante: Professor Augusto Gazir (Observatório de Favelas e ECO.UFRJ)
Semana 13 (09/06): O paradigma dos Direitos da Criança e do Adolescente: A Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança e o Estatuto da Criança e do Adolescente.
Palestrante: Wanderlino Nogueira Neto (Abong)
Semana 14 (16/06): A Mídia e a Questão das Políticas Públicas Sociais no Brasil.
Palestrante: Guilherme Canela (ANDI)
Semana 15 (23/06): O Paradigma da Diversidade Cultural.
Palestrante: Professora Sílvia Ramos (CESEC)
Semana 16 (30/06): Jornalismo prospectivo e o futuro das políticas públicas sociais como pauta.
Palestrante: Rosa Alegria (NEF-PUC/SP, NETCCON.ECO.UFRJ, Millennium/UNU)
Palestras já realizadas em 2008/1:
Semana 1 (10/03): Interesse, Poder e Dádiva: a questão do domínio dos estados mentais e da generosidade na positivização da rede de comunicadores-cidadãos.
Palestrante: Professor Evandro Vieira Ouriques (NETCCON.ECO.UFRJ, NEF.PUC.SP)
Semana 2 (17/03): A Violência que Acusa a Violência: a degradação de Si e do Outro através da Mídia.
Palestrante: Professor Michel Misse (NECVU.IFCS.UFRJ)
Semana 3 (24/03): A Abordagem de Temas Sociais junto a Públicos Não-iniciados: o Caso dos Jornais de Grande Circulação e Distribuição Gratuita.
Palestrante: Professor José Coelho Sobrinho (USP)
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Estudante de Jornalismo da Escola de Comunicação da UFRJ, Rio de Janeiro, RJ