O acontecimento foi produzido em tom de blague e poderia ser arquivado no anedotário nacional, entre as muitas bobagens destes tempos em que tudo tem que se transformar em espetáculo. No entanto, acaba se configurando como mais uma demonstração de falta de sensibilidade de comunicadores e autoridades, num episódio típico do contexto cultural em que vivemos, no qual certos protagonistas da mídia acham que tudo pode ser transformado em piada.
O episódio de que tratamos nasceu de uma tentativa da Companhia do Metrô de São Paulo de melhorar sua imagem pública, desgastada pela sequência de panes e incidentes, pela superlotação dos trens na maior parte da rede e soterrada pelas denúncias de um esquema de corrupção que dura quase duas décadas. Sobre esse monte de entulho, a direção do Metrô achou por bem patrocinar uma série de anúncios para convencer o usuário de que vagões lotados são uma condição natural desse sistema de transporte em todas as metrópoles.
O plano era inserir o texto produzido pela agência de propaganda em programas populares de rádio, colocando locutores e comentaristas para reforçar a mensagem – modelo que os publicitários chama de “testemunhal”.
O problema aconteceu quando entrou em cena o personagem conhecido como “Gavião”, que atua na Rádio Transamérica com intervenções supostamente cômicas durante um programa de esportes. Ao se referir às ocasiões em que ocorre excesso de passageiros, o suposto comediante afirmou: “Pra falar a verdade, até gosto do trem lotado, é bom pra xavecar a mulherada, né, mano?”
O comentário poderia cair no vazio de sua própria bizarrice machista, não fosse o contexto social a que se refere: desde janeiro, o Metrô de São Paulo já registrou pelo menos 23 incidentes de abuso sexual em seus vagões lotados, com alguns casos graves de ataques contra mulheres.
Existem sites na internet que estimulam a prática, como uma competição entre tarados, e as autoridades não têm ideia do número total de ocorrências, porque a grande maioria das vítimas tem vergonha de prestar queixa e sabe que seria impossível identificar os autores da violência.
Corrupção sem corruptos
Voltamos, então, ao patético senso de humor e de oportunidade do comunicador que se faz chamar de “Gavião” e, por extensão, da direção da emissora e dos responsáveis pela estratégia de comunicação do Metrô.
A emissora divulgou nota dizendo que “toda propaganda que a rádio veicula é aprovada pelo contratante”. A Companhia do Metrô informa que “a produção desse infeliz comercial” é de inteira responsabilidade da Rádio Transamérica. Segundo a empresa, a encomenda era para “mostrar a modernidade do Metrô de São Paulo” e explicar que a lotação nos horários de pico “acontece em todas as grandes cidades do mundo”.
Acontece que não há como dizer para as mulheres que são assediadas, tocadas e agarradas por sujeitos desequilibrados que isso é modernidade, que no mundo inteiro os metrôs são lotados pela manhã e no começo da noite, e tudo bem.
Não há redator de publicidade capaz de transformar em mensagem positiva o fato de o sistema de transporte urbano sobre trilhos ter se tornado um pesadelo para os usuários mais vulneráveis. Não há criatividade capaz de encobrir o fato de que as linhas são precárias e insuficientes porque, durante muitos anos, a corrupção desviou boa parte da verba que deveria ser usada para expandir e melhorar o sistema.
Na quarta-feira (26/3) em que os principais jornais do país abrem espaço para a desastrada campanha publicitária do metrô paulistano, a imprensa noticia que o Ministério Público denunciou à Justiça trinta executivos de doze empresas acusadas de fraudar licitações para a compra e manutenção de equipamentos do sistema de transporte sobre trilhos em São Paulo. O pacote de denúncias se refere ao período de 1998 a 2008 e, como se tornou praxe nesse escândalo, aponta apenas os supostos corruptores.
Os jornais não parecem estranhar o fato de que alguém pagou propinas milionárias, mas curiosamente ninguém apareceu para receber o dinheiro. Nesse contexto, uma campanha tentando convencer o cidadão de que metrô é assim mesmo em todo mundo, com ou sem piadas de gosto duvidoso, equivale a chamar o usuário de estúpido.