A imprensa brasileira finalmente volta a colocar na pauta o problema da violência policial, mas em alguns casos quase pede desculpas ao público.
O protagonismo agressivo dos grupos conhecidos como Black Blocs nas recentes manifestações de protesto criou um paradigma que ainda não foi assimilado pelos jornalistas: o padrão de ação civil violenta contra a violência institucional. Essa nova circunstância, que confunde até mesmo bons analistas da vida social, limita o discurso jornalístico, fundado no conceito segundo o qual toda questão tem dois lados.
Se, por um lado, há intelectuais enxergando nos atos de vandalismo uma nova expressão política capaz de despertar a consciência social em jovens lúmpens comprometidos com a delinquência como modo de vida, por outro ângulo se observa que a matriz dominante na imprensa evita condenar liminarmente a violência policial, como se tal escolha significasse justificar ou reconhecer o direito dos Black Blocs ao vandalismo e à agressão. Por esse motivo, certas edições dos jornais do fim de semana e de segunda-feira (4/11) fazem uma sutil diferença.
Curiosamente, os dois principais jornais paulistas, O Estado de S.Paulo e a Folha de S.Paulo, são os diários que parecem menos confortáveis quando os fatos obrigam a vasculhar os crimes atribuídos a policiais.
Em geral, os casos envolvendo violência institucional duram no máximo três dias no noticiário, o tempo necessário para registrar os protestos de familiares e amigos das vítimas e as costumeiras promessas de “rigorosa apuração dos fatos”. Já os crimes envolvendo delinquentes comuns costumam permanecer até cinco dias nas páginas dos jornais.
O processo de reintegração de posse na comunidade Pinheirinho, em São José dos Campos, ocorrido em janeiro de 2012 e considerado emblemático pelo uso excessivo de violência por parte da polícia, ganhou novo capítulo na sexta-feira (1/11), com a denúncia de um coronel da PM por abuso de autoridade, mas saiu apenas uma notinha no Estado, sem maiores referências.
A Folha de S. Paulo, que no domingo (3/11) publicou longa reportagem sobre a expansão e “profissionalização” dos Black Blocs, evitou qualquer referência ao tema correlato da violência policial.
Racismo e violência
Nos últimos dias, o problema da violência policial foi abordado em maior profundidade pela revista IstoÉ, que nos últimos meses se destaca por retomar a tradição de ampla cobertura das publicações semanais, e pelo Globo, que publica na edição de segunda-feira (4) uma página inteira dedicada à impunidade dos crimes cometidos por policiais.
O jornal carioca observa que a polícia brasileira é uma das mais letais do mundo, com uma média de cinco civis mortos por dia em 2012, e ainda assim – ou talvez por isso mesmo – os controles internos e externos da atividade policial são falhos.
A reportagem faz um amplo diagnóstico que revela a negligência com que os governos estaduais tratam as corregedorias, sinalizando uma atitude política de absoluto desinteresse em disciplinar seus agentes de segurança. O texto observa ainda que o Ministério Público é omisso quando trata de crimes atribuídos a policiais, a própria população se habituou à violência como parte da natureza da polícia, e a sociedade não costuma questionar a letalidade da ação institucional. O jornal carioca destaca o caso da Brigada Militar do Rio Grande do Sul, com assassinatos seguidos de manipulação de provas para dificultar as investigações.
Na revista IstoÉ que circula desde quinta-feira (30/10, ver aqui), destaque para entrevista do antropólogo e cientista político Luiz Eduardo Soares, tido como um dos maiores especialistas brasileiros em segurança pública, na qual ele afirma que a transição democrática ainda não chegou às instituições policiais. Ele defende a desmilitarização das polícias e o fim da Polícia Militar em todo o país, uma das reivindicações que se pode ouvir nos gritos das manifestações de protesto que se repetem nas ruas das grandes cidades brasileiras desde junho.
Soares observa que a cultura militar é problemática para a democracia, porque traz embutida a ideia da guerra e do inimigo. O correto, segundo o especialista, seria ter uma polícia mobilizada para defender a cidadania e garantir direitos.
Basta contextualizar a entrevista do antropólogo com os dados da recente pesquisa do Ipea (ver “O genocídio dissimulado”) sobre violência policial e racismo, e o leitor terá uma ideia de como esse tema deveria ser encarado com seriedade pela imprensa.
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